(ultima atualização em março/2022)
Beja, Portugal, 1980.
Vive e trabalha entre Brasil e Portugal.
Membro do Comitê de Indicação PIPA 2015, 2017, 2018 e 2022.
Marta Mestre (Beja, 1980). Atualmente é curadora-geral do Centro Internacional das artes José de Guimarães. Formada em História da Arte e em Cultura e Comunicação, pela Universidade Nova de Lisboa e pela Université d´Avignon, tendo desenvolvido pesquisa sobre arte contemporânea. Foi curadora no Instituto Inhotim, Minas Gerais/Brasil, curadora-assistente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro/Brasil, curadora-convidada e docente na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro/Brasil, coordenadora do Centro de Artes de Sines/Portugal.
“Frente de Trabalho”
Por Marta Mestre
[Texto curatorial de “Frente de Trabalho”, individual de Ícaro Lira exibida entre abril e maio de 2018 na Galeria Jaqueline Martins, São Paulo, SP]
Recém-inaugurada em São Paulo, Frente de Trabalho de Ícaro Lira (1986, Fortaleza) é a primeira individual do artista na galeria Jaqueline Martins e uma excelente oportunidade para aprofundarmos as relações que a arte pode realizar com os mais diversos contextos sociais, políticos e culturais. Em meio ao clima efervescente e festivo da programação paralela à feira SP-Arte, esta exposição traz-nos toda a gramática que o artista vem construindo desde há cerca de dez anos, e incita-nos a olhar os interstícios – nem sempre otimistas – da história do Brasil.
Depois de Desterro – expedição etnográfica de ficção (2014), Museu do Estrangeiro (2015) ou Residência Cambridge (2016), projetos de longa duração que permitiram a Ícaro Lira consolidar uma prática artística para além do circuito “ateliê-galeria-instituição-coleção”, Frente de Trabalho assume um caráter mais decantado ou filtrado, que prescinde do texto e da resenha histórica, e enfrenta a plasticidade visual dos materiais na montagem. No trabalho de Lira, como talvez em nenhum outro artista da sua geração no Brasil, conseguimos entender como a ideia de “objeto de arte” cede relevância à precariedade ou “pobreza material”, não no sentido das proposições desmaterializadas dos artistas dos anos 60 e 70, mas em afinidade direta com uma “estética do subdesenvolvimento” desses mesmos anos, elaborada por artistas como Glauber Rocha, Artur Barrio, Horacio Zabala, Luis Ospina e Carlos Mayolo contra as narrativas colonizadoras do “desenvolvimentismo” (veiculadas pelas alianças com os EUA)¹. Neste sentido, Frente de Trabalho dá continuidade às “obsessões” maiores do artista, empenhado em desenterrar futuros nos escombros do passado, suturar as fissuras da linguagem e restaurar significados que têm vindo a desaparecer, em meio à “obscenidade” política que o Brasil vem atravessando. Mostra-nos ainda um arranjo sensível de materiais (a maior parte descarte, “lixo”, objets trouvés), que são críticos da arte tornada mercadoria de luxo.
Nas palavras do curador Gabriel Boghossian (que assina o texto da exposição) Frente de Trabalho “produz uma reflexão em torno do trabalho e do trabalhar – esse gesto tão cotidiano quanto universal –, sem deixar de lado questões relativas ao trabalho na arte e ao sistema que o sustenta e explora”. Mas ao invés de Lira tecer um comentário panfletário sobre o trabalho na história do Brasil (o que tornaria a proposta uma mera ilustração, como muitas que vemos por aí), a exposição consolida a ideia de que história e a memória são uma “topografia” que articula imagens, conhecimento e lugares que podem ser misturados e editados. O principal risco deste tipo de operações, que jogam luz sobre personagens e temas excluídos da história (a perspectiva benjaminiana dos “vencidos”), é a criação de utopias vãs, crentes na arte como veículo privilegiado de denúncia, capaz de agir na transformação do mundo, o que não é verdade. No sentido inverso, a exposição de Ícaro Lira reitera a ideia de que a arte pensa (o que é diferente de fazer pensar), num esquema ao mesmo tempo sensível e inteligível por meio do qual uma matéria e uma forma se combinam – nesta exposição existe um especial cuidado no enquadramento dos materiais em áreas destacadas coloridas (“Objeto encontrado #1” e “Sem título, parte #1 e #2, da série ‘Frente de Trabalho’”).
Sem roteiro pré-estabelecido como em todos os seus projetos, a sensação que temos é que Frente de Trabalho entrega-nos vários “destroços” (como aqueles que encontramos nas praias depois de uma tempestade), e convida-nos a fazer destes as bússolas de navegação para percorrermos esta mostra, numa deriva de fragmentos e índices. O tom por vezes casuístico e niilista, em que os objetos recusam fixa-se em formas definitivas, é deliberado. Resulta de uma aguda percepção dos entraves coloniais que ainda operam no presente, e é visível no “esconde-e-revela” das veladuras, das caixas, das sobreposições, dos áudios distorcidos até à cacofonia, das pedras e objetos insólitos aparentemente deslocados de contexto (como o pacote de leite que o governo italiano distribui gratuitamente aos emigrantes e refugiados).
Mas um único conjunto deste amontoado de “náufragos”, julgo, resume toda a exposição. Trata-se de uma composição de postais da ditadura divulgando as “grandes obras do regime” (Ponte Rio-Niterói, Itaipu e Mausoléu Castelo Branco) e “flagrantes” de quebradores de pedra, tirados nos anos 30, no contexto da “Missão de Pesquisas Folclóricas”, iniciativa do escritor Mário de Andrade (1893-1945), que percorreu o Nordeste documentando a cultura popular. Ambas geradas na absoluta crença na tecnologia da fotografia, a natureza destas imagens é bastante distinta. Enquanto que os postais da ditadura expressam a incursão da tecnologia nos domínios da política – era necessário disseminar propaganda para construir a coesão nacional –, os “flagrantes” dos quebradores de pedras testemunham a urgência em coletar registros de profissões e tradições culturais que estavam a desaparecer. Como escreve Mário de Andrade: “Faz-se necessário que ela [a etnografia brasileira] tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos (…). Nós precisamos de moços pesquisadores que vão às casas recolher com seriedade e de maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor”.
Disseminação e resistência, propaganda e “cápsulas do tempo”, de mãos dadas no nosso presente histórico e nesta Frente de Trabalho. Num tempo de visibilidade excessiva em que, tudo indica, não cabe nem ao artista nem à arte nenhum papel ético, talvez devamos resgatar, como faz Ícaro Lira, a ideia de “despesa improdutiva” da arte, traindo a ditadura do trabalho… Lavorare Stanca [“trabalhar cansa”].
¹ Referimo-nos necessariamente ao cinema “pornomiséria” de Luis Ospina e Carlos Mayolo (Grupo de Cali, Colômbia); aos textos de Glauber Rocha, “Estétyka da Fome” (1965) e “Estétyka do Sonho” (1971); às ações de Artur Barrio nos anos 70, entre outros. Atualmente em cartaz no Museo Jumex, a exposição Memorias del Subdesarrollo: el giro descolonial en el arte de América Latina, 1960–1985, propõe um levantamento exaustivo de práticas relacionadas à crítica do desenvolvimentismo.
“LUT(A)”
Por Marta Mestre
[Texto curatorial de “A pequena morte”, individual de Carla Chaim exibida entre abril e junho de 2018 na Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, SP]
Olhando para a produção artística de hoje, uma grande maioria trata diretamente de problemas sociais. Artistas, curadores, galerias, museus, etc., adotam a linguagem “das ruas”, uma gramática de luta e de engajamento político, que espelha o tom militante que é (ou parece ser) de todos. Não é para menos, aliás. O atual momento do Brasil apresenta-se particularmente difícil e tenso, e a crescente ameaça aos direitos constitucionais dos cidadãos faz reacender os velhos fantasmas da ditadura que imaginávamos enterrados para sempre. (Enquanto escrevia este texto foi executada Marielle Franco, mulher, negra, da Maré, feminista e ativista dos direitos humanos). Este contexto, vaticinado por alguns como o pior momento da história contemporânea do Brasil, imprime urgência às nossas ações e obriga-nos a um posicionamento efetivo, para além das posições privilegiadas. Faz-nos identificar coletivamente na luta e a querer adotar a mesma gramática daquilo contra o qual se combate.
Ocorre, porém, que este sentimento de “luta comum” (e suas correlatas formas artísticas) é, também, aquilo que ameaça separar-nos. Por mais paradoxal que possa parecer, a nossa capacidade “emancipação” não está na convergência no front, mas no poder de (nos) associar e de (nos) dissociar, de criar rupturas e cisões sensíveis, ou seja, na possibilidade de agenciarmos “práticas de pluralidade” (Rebecca Solnit) contra o “embotamento da nossa imaginação política” (V. Safatle).
Esta contradição, que acima situamos no plano dos acontecimentos recentes, chegou-me na conversa com Carla Chaim, no início deste ano. A artista relatou a ação que ela e um grupo de artistas realizaram na Casa do Brasil, em Madrid, por altura da última feira de arte ARCO. Preocupados com a atual situação no país, o grupo optou por um ato público “já que não fazia sentido uma exposição apenas”, e divulgou um curto manifesto. “Ação e Reação”, foi o título escolhido, e o acontecimento reverberou nas redes sociais de forma espontânea.
Tendo este contexto como pano de fundo, a proposta que Carla Chaim agora apresenta na Galeria Raquel Arnaud dá-nos respostas e coloca questões. Com o título sugestivo de “A Pequena Morte”, que é uma outra expressão para o momento do orgasmo, o conjunto de trabalhos desta exposição traduz a síncope do “luto” e do “gozo” que fazem parte da dinâmica do desejo do ser humano. Nas palavras da artista, trata-se de um título para onde convergem simultaneamente “o fim e o êxtase”, de um título capaz de revirar a gravidade que nos prende ao chão.
Vários dos trabalhos aqui apresentados prolongam questões que Carla Chaim vem colocando, em particular desde o ano passado, quando realizou “Óleo Fita Carbono” no Rio de Janeiro. Uma vez mais, interpela-nos sobre a nossa capacidade de imaginar a partir da materialidade, sem que seja necessário adoptar o aparato inflamado das ruas. Na contramão do colorido militante que vemos em algumas exposições atuais, a tonalidade aqui é mortiça e rebaixada – monótona quase -, e provoca-nos a inquietante estranheza de ser uma exposição “calma” em tempos tumultuosos. Trata-se, contudo, de um brechtiano efeito de distanciamento que centra no espectador a sua capacidade ativa de aderir e opinar, sem querer submergi-lo no mundo ilusório da narrativa. As bandeiras pretas de Chaim (da série Ele queria ser bandeira), dispostas em varetas frágeis no piso térreo da galeria, são disso um bom exemplo. O papel carbono pesado, cujo formato “duplica” a planta baixa da própria galeria, destitui a irrupção do gesto. “Como levantar bandeiras em tempos de barbárie?”, parece perguntar-nos a artista.
Estando próxima à “alternativa erótica ou emotiva” (anti-monumental, diríamos) que a crítica Lucy Lippard mencionou a propósito dos artistas do pós-minimalismo da década de 70, Carla Chaim propõe-nos um itinerário especulativo e provisório que convoca o corpo e a memória numa percepção ativa destas propostas. A dobra, característica de trabalhos anteriores, cede agora relevância à composição através da “soma de diferentes superfícies”, donde surgem “terceiros corpos” das contiguidades e das justaposições. Ao espectador é oferecida uma subtil evidência matérica presente especialmente no piso térreo da galeria, em trabalhos como Gruta, quatro grandes desenhos a bastão oleoso, com cerca de 3 metros de altura; Arraias e Dois, duas séries que exploram composições com diferentes tipos de papel; Corte inversão movimento, uma (de)composição de livros a partir de um estudo de formas geométricas contidas no interior dos mesmos (um “mise-en-abîme” do referente); Line Pieces, fragrantes de uma ação em que o corpo “ficciona” ângulos, cantos, seções; e finalmente Luto_luta, um cartaz da autoria da artista Verena Smit, conhecida por desenvolver um preciso trabalho sobre a ambiguidade da linguagem, e que Carla Chaim convidou para integrar esta mostra.
Mas é no piso superior que, julgo, se apresenta um único trabalho capaz de falar por toda a exposição, e de abarcar as lutas (e os lutos) a que nos referimos no início deste texto. Intitulado Somatu, trata-se de uma vídeo-instalação que é um contínuo fair-play entre corpos, convocando a contemplação e a ação, a distância e a aproximidade, o óptico e o háptico. A sua disposição, atravessando toda sala, obriga-nos a um certo tipo de ponto de vista que, somado ao movimento hipnotizante da ação na tela, causam-nos um recuo da linguagem, uma espécie de abertura a uma nova organização do sensível. Investidos de uma densa materialidade, que não busca gêneros ou identidades (difícil identificar se são pessoas, bichos ou amebas), três corpos envolvem-se em uma espécie de “dança de acasalamento” que nos fala de um outro tipo de movimento, dissensual do urbano contemporâneo. Aqui “a artista volta a pensar no mais interno do corpo, nas sensações físicas internas e individuais recriadas por experiências do mundo. Um mundo de luto, mas um mundo também de transformação e prazer”.
Sem convergir para a estética da urgência que vemos ao redor, a exposição de Carla Chaim traz-nos todo o seu léxico, desenvolvido nos últimos anos, e ainda amplia a nossa imaginação sobre outros usos do espaço, mais afetivos e menos possíveis de serem policiados.
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