(ultima atualização em julho/2016)
Campina Grande, PB, 1968.
Vive e trabalha em Recife, PE.
Indicado ao PIPA 2016.
Trabalhando com várias linguagens, de performance à instalações e intervenções em paisagens, nos últimos 20 anos Marcelo Coutinho se dedicou exclusivamente ao vídeo, cinema digital e literatura. Autor de “Antão, O Insone” (Documento Areal e Editora Zouk, 2008) e “Isso”, (Documento Areal e Ed. Confraria do Vento, a ser publicado em 2016). Há 20 anos constrói um dicionário em que nomeia sensações vividas por ele que não possuem representação no tecido das línguas. Em seu trabalho de vídeo e cinema digital vem se dedicando a construção lenta de uma particular vereda poética em que desfaz os limites entre a linguagem cinematográfica e as artes visuais.
“Ao buscar entender aquilo que se passa fora da linguagem, Marcelo Coutinho concentra sua pesquisa plástica e audiovisual em torno da criação de palavras que definem sensações avessas aos códigos preestabelecidos da língua portuguesa. Desde 1997, o artista dedica-se aos neologismos – materializados em performances, objetos, filmes e instalações –, que procuram definir os acometimentos provocados por deslizes perceptivos, rupturas espaciais, lapsos corporais, ausências temporais e invasões repentinas de outras lógicas.” (Luiz Perez Oramas)
“Um dicionário para o Incêndio”
(Trecho do livro “Isso”, de Marcelo Coutinho, no prelo, a ser publicado pelo Documento Areal em 2016)
Fora de toda e qualquer linguagem, forte e selvagem, age pungente uma presença. Esta presença é o desmanche das sintaxes. É o colapso das descrições. É a entropia das significações. Esta presença nunca possuiu nome. Por mais que tenha passado por inúmeros batismos no correr da história. Íntegra, ela mantém-se como o eterno avesso dos nomes. Por isso chamo esta força de Isso. Um pronome demonstrativo, genérico e inexato. Um tipo qualquer de resto, de sobra indefinida.
Atingido que fui desde sempre por este incêndio, construí para a arte uma pequena e precária equação. Há quatorze anos atrás criei um dicionário para aquilo que não pode ser dito. Cada uma das palavras que criei para este dicionário reencena como que num palco precário este inútil movimento de contensão, esta débil vontade de domínio sobre aquilo que escapa. Não há como deter aquilo cuja natureza é a fuga. E reencenar o ato de nomear o que foge é para mim acusar, deixar à mostra a falência da ideia de “representação”. Neste dicionário, nascido para acusar a fratura, criado para falar sobre a dificuldade da fala, estruturado para ser um depósito de restos havia, quem sabe, os ares de um antigo estilo de arte chamado “grotesco”. O riso nervoso, a paixão constrangida, o paradoxo de rezar diante de um gigantesco muro de pedras para tocar as vestes de Deus. Sob a face do grotesco, todo empreendimento humano assume para si a aparência de caricatura.
Tremores musculares, desnorteamentos febris, desejos sem objeto, tristezas nucleares, cansaços injustificáveis, tranqüilidades desumanas são sensações sem amparo no mundo dos conceitos. É de outra natureza a matéria que constitui estes arrebatamentos singulares. Estas planícies, abismos e florestas são desfavoráveis a qualquer dizer. Tingem o mundo com seu hálito. E, sou obrigado a dizer, se impõem como o mais sólido miolo da verdade. Estes fragmentos fugazes da verdade, que invadem e se evadem tão rápido dos corpos, são comparáveis a um incêndio.
Criei substantivos para o que surgia como substância. Criei adjetivos para o que parecia ser uma qualidade assumida subitamente pelas coisas. Criei verbos para o que me impelia à ação. Criei pronomes para o que sugeria uma crise entre aquele que empreende uma ação e aquilo que supostamente a sofre. E preposições para a percepção de que certas coisas passam a ter seus sentidos desfeitos quando juntas a outras e tornam-se, junto com o que se unem, sempre uma terceira coisa. Foi o que construí. Um depósito de nomes mudos para o que se apresenta à sombra da linguagem. Um glossário inútil para o que se avizinha quando tal linguagem não mais oferece solo e trânsito. Se teci alguma lexicografia para este dicionário foi através das imagens que criei para cada uma destas palavras e com elas articulei. E se uma semântica, por mais inusual que seja, é capaz de ser extraída de tal léxico seria uma semântica híbrida, construída a partir deste coito entre palavra e imagem.
“Arra”
arra. pron. pess. da 1ª pessoa singular. 1. algo de funcionamento intenso destinado a reter e reconduzir as várias retenções e reconduções vindas de outros algos. 2. algo que balbucia através de outro algo que também balbucia. 3. algo que é fruto de uma matriz perdida, e que, por sua vez, será uma matriz perdida para outro algo.
“Arra olo Raar”
arra. pron. pess. da 1ª pessoa singular. 1. algo de funcionamento intenso destinado a reter e reconduzir as várias retenções e reconduções vindas de outros algos. 2. algo que balbucia através de outro algo que também balbucia. 3. algo que é fruto de uma matriz perdida, e que, por sua vez, será uma matriz perdida para outro algo.
olo. prep. 1. Partícula gramatical usada para pôr em movimento de devir palavras e outros fragmentos da língua. Quando juntas a esta preposição, verbos, adjetivos, pronomes, adverbios passam a ter seus sentidos desfeitos para tornarem-se, junto com o que se unem, uma terceira coisa. 2. Para além de um elemento conectivo puro, olo destitui de sentido particular os termos gramaticais envolvidos em uma sentença para fazer surgir uma terceiro sentido. Diz-se p. ex. “arra olo raar”, “mavio olo africo”, etc.
raar. pron. pess. da 2ª pessoa singular. 1. Enodamento fibroso geralmente momentâneo, cujas inúmeras fibras organizam-se em forma de bola, postado um palmo abaixo do pescoço, mais precisamente entre os dois mamilos. Este enodamento ganha a forma de inúmeros brotos que estendem-se por entre os membros, cabeça, nuca e genitália, ultrapassando a epiderme em busca de floração. 2. Elemento que instaura a ligação orgânica entre duas temporalidades, lançando sobre a presente uma suspensão e sobre a futura um chamado inexato.
“Ô”
ô. v. t. d.1. estado de suspensão em que se instala a percepção instantes antes de apresentar-se a algo por demais vasto e desconhecido. 2. prenúncio, normalmente envolto em uma ampla luz branca, de que algo paralisante e muito amplo está por vir. 3. quando, diante da enormidade de algo desconhecido que se pronuncia, o que resta é a paralisia.
“Soarsso”
soarsso. adj. 1. quando, depois da última imagem ser vista, ainda se insiste em permanecer de olhos abertos. 2. quando o esperado surge em toda sua pujante falta de surpresa e, mesmo assim, se consegue manter os olhos abertos.
Marcelo Coutinho nasceu em maio de 1968 na cidade de Campina Grande, Paraíba, em 1986 mudou-se para Recife, PE. É artista visual e escritor, professor do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco e do Programa Interinstitucional de Pós Graduação em Artes Visuais – UFPE e UFPB. É mestre em Comunicação pela mesma universidade e doutor em Poéticas Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
É autor do romance “Antão, O Insone”, publicado em 2008 pelo Documento Areal de Porto Alegre, RS e Editora Zouk e de “Isso”, a ser publicado em 2016 também pelo Documento Areal e Editora Confraria do Vento, Rio de Janeiro, RJ.
Há 20 anos Marcelo Coutinho pôs em curso a construção de um dicionário. Este dicionário se monta sobre um paradoxo: nomeia sensações vividas por ele que não possuem representação no tecido das línguas. Tais palavras criadas pelo autor, nomeiam portanto aquilo cuja natureza, escapa das nomeações. Para este dicionário criou verbos, adjetivos, substantivos e pronomes. Estes neologismos procuravam definir os acometimentos, deslizes perceptivos, rupturas espaciais, lapsos corporais, ausências temporais, invasões repentinas de outras lógicas.
Cada uma das palavras criadas para este dicionário reencena como que num palco precário este inútil movimento de contensão, esta débil vontade de domínio humano sobre aquilo que escapa. Não há como deter aquilo cuja natureza é a fuga. E reencenar o ato de nomear o que foge é para Marcelo Coutinho acusar, deixar à mostra a falência da ideia de “representação”.
Neste dicionário, nascido para acusar a fratura, criado para falar sobre a dificuldade da fala, estruturado para ser um depósito de restos há, quem sabe, os ares de um antigo estilo de arte chamado “grotesco”.
Trabalhando com várias linguagens, de performance à instalações e intervenções em paisagens, Marcelo Coutinho, nos últimos 20 anos se dedicou exclusivamente ao vídeo, ao cinema digital e a literatura. Seu trabalho de vídeo e cinema digital desfaz os limites entre a linguagem cinematográfica e as artes visuais. Seja através da herança performática aplicada aos corpos de seus atores, seja através do uso de múltiplas projeções em um tipo ampliado de edição, Marcelo Coutinho vem se dedicando a construção lenta de uma particular vereda poética.
Marcelo Coutinho integrou importantes mostras de arte contemporânea entre as quais se destacam a 30ª Bienal Internacional de São Paulo: “Iminência das Poéticas”, São Paulo, SP, em 2012. Esteve presente em 2014 na coletiva nacional “Grande Área Funarte”; fez parte de várias edições do “Panorama da Arte Brasileira”, produzido pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, SP; foi convidado para a mostra “Caminhos do Contemporâneo: Arte Brasileira de 1952-2002”, ampla mostra retrospectiva dos últimos 50 anos de arte brasileira, produzida pelo Paço Imperial do Rio de Janeiro, RJ; em 1998, participou do Projeto “Novos Rumos Visuais”, produzido pelo Instituto Cultural Itaú, São Paulo, SP; além de várias edições do Salão Pernambucano de Arte. Representou o Brasil na exposição “Mistura + Confronto”, na Cidade do Porto, Portugal e na exposição “Ampazonas”, organizada pelo Ministério de Cultura da Bavária, Alemanha.
Em 2011 ganhou o Prêmio Fundaj Videoarte-2011 realizando o filme “Soarsso”. Em 2007 foi premiado no Edital Arte e Patrimônio Petrobras / Minc /Paço Imperial com “Projeto Dois Vazios”, criado em parceria com o artista André Severo. Em 2005 ganhou a Bolsa de Pesquisa em Artes, do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e Fundarpe, PE. Em 2004 foi contemplado com o prêmio Bolsa Vitae Artes Visuais, da Fundação Vitae, São Paulo, SP com o qual filmou “Arra-Alexandria”. Em 2001 recebeu menção honrosa na mostra “O Artista Pesquisador”, promovida pelo Museu de Arte Contemporânea de Niterói, RJ. Em 1998 foi premiado no XVI Salão Nacional de Artes Plásticas, promovido pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, RJ e pela FUNARTE.
Em 2010 seu filme “Ô” foi indicado para premiação como melhor curta metragem de ficção no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2010 pela Academia Brasileira de Cinema, Rio de Janeiro, RJ. “Ô” também foi premiado em 2010 no XIX Festival de Vídeo do Recife, PE, recebeu indicação para o Prêmio Caríssima Liberdade na Mostra do Filme Livre, Rio de Janeiro, RJ e participou de diversos festivais nacionais de cinema.
Possui obras nos acervos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, SP, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, RJ, Museu de Arte Moderna da Bahia, BA, Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães, Recife, PE, Fundação Bienal de São Paulo, SP, Fundação Joaquim Nabuco, Recife, PE, Fundação Espaço Cultural José Lins do Rego, João Pessoa, PB.
“Marcelo Coutinho”
Por Luiz Perez Oramas
Ao buscar entender aquilo que se passa fora da linguagem, Marcelo Coutinho concentra sua pesquisa plástica e audiovisual em torno da criação de palavras que definem sensações avessas aos códigos preestabelecidos da língua portuguesa. Desde 1997, o artista dedica-se aos neologismos – materializados em performances, objetos, filmes e instalações –, que procuram definir os acometimentos provocados por deslizes perceptivos, rupturas espaciais, lapsos corporais, ausências temporais e invasões repentinas de outras lógicas.
* Sobre o autor:
Curador de Arte Latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, EUA. Curador-chefe da 30ª Bienal Internacional de São Paulo: “A Iminência das Poéticas”.
“Ele moía a escuridão”
Por Marcelo Campos
Muitas vezes nos perguntamos, de que natureza trata o trabalho de Coutinho? Como num canto de Sereias, são obras em porvir. Os projetos acompanham-no por uma extensão de tempo que engendra uma vida. E para empreendê-los o artista inventa palavras e seus respectivos verbetes, fornecendo-nos uma explicação inexata, fantasiosa. Estas criações podem gerar apenas filmes, ou ampliarem-se em instalações inteiras. “raar” é um dos termos criados pelo artista. No verbete, ele explica que se trata de um “pronome pessoal da segunda pessoa do singular (1). É tudo poesia. Os pronomes são usados em lugar dos nomes, então, o artista nos instiga a perceber que não há nome próprio, apenas epítetos, caracterizações, funções no contexto do lugar, da frase, da imagem. Trata-se, ao mesmo tempo, da segunda pessoa do singular, o “tu” . E não do “Eu”, muito menos do “nós”. Estamos, aqui, tratando de um outro. Da alteridade como alegoria de identificação. Na descrição do que poderia ser objeto, imagem, Marcelo Coutinho diz tratar-se de “enodamento fibroso” de forma esférica replicado em “inúmeros brotos”. Aqui temos uma possível chave para a narrativa. Os trabalhos do artista são frutos desta escuridão, do broto antes da explosão, antes do sol ou de se fazerem sombras enganosas. E a nós resta a viagem.
* Notas bibliográficas:
(1) Coutinho, Marcelo. Isso: entre o acontecimento e o relato. (Tese de Doutorado). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.
“Para Voltar a Ver o Oceano”
Por Cristiana Tejo
Todo um preâmbulo é necessário para contextualizar a estratégia de Coutinho de construir sua própria língua, mesmo que ele procure suas razões e seus repertórios fora do campo da arte. Entretanto desde que a arte voltou-se novamente para o mundo, tudo diz respeito a ela e a atravessa. Além disso, o trabalho de Marcelo Coutinho é membrana que se coloca em situação de fronteira de campos distintos.
Pacientemente ele introduz no universo palavras que corporificam sensações esquisitas. Alhime, Africo, Loce, Vêdo, Mvio, Miáflo e Aveclo são alguns dos termos cunhados nos últimos dez anos pelo artista. Seu vocabulário sugere um espaçamento generoso entre palavra/objeto/imagem e significado. Sem ter onde nos apoiar, ou seja, na gramática usual, ficamos à deriva, em busca de sentidos. A exposição a seu trabalho pode ser abismo, se olharmos para muito longe à procura de uma correspondência simples e direta entre verbete e elementos. Ele nos demanda justamente nossa capacidade de sentir e nos entregar aos sentidos. Há de se voltar para as sensações suscitadas pelo embalo sonoro das ondas, o caminhar de tempos humanos em direção à cadeira-mirante, tendo como entorno uma manada. Há de se voltar ao estado de espírito de uma criança, que descortina o mundo e inventa neologismos para expressa-lo. Antes de sentir desconforto perante o incomensurável, o indizível.