São Paulo, SP, 1984.
Luísa Nóbrega é artista e seu trabalho se desenrola na zona fronteiriça entre diferentes linguagens artísticas. Borrando a ronteira entre performance, vídeo, som e literatura, investiga as zonas de atrito entre corpo e linguagem, biologia e cultura, voz e identidade. Tem certa obsessão por situações que provocam aporias linguísticas, como o ventriloquismo, a parapsicologia e a possessão.
Paulistana, Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo, não tem morada fixa e divide seu tempo entre residências artísticas e casas de amigos em diferentes partes do Brasil e do mundo. Fez residências em países como México, Guatemala, Islândia, Polônia, Armênia, Ucrânia e Lituânia e participou de exposições como Dias úteis, no Projeto Parede, no Museu de Arte Moderna em São Paulo, Turborealism, breaking ground em Donetsk, Ucrânia, e City as Process, projeto paralelo da Bienal lndustrial Ural em Ekaterinsburg, Rússia. Foi integrante do grupo de música contemporânea menagerie, que integra o projeto Al revés, no qual desenvolvia uma pesquisa de improvisação vocal. É poeta e atualmente prepara quero ser meu lobisomem, sua primeira antologia de poemas.
“Ectoplasma”, 2016, duração: 18’35”
“A escura umidade das nuvens”, 2014, duração: 28’45”
“Eu sou um sinal”, duração: 8’24”
“Frenesí”, duração: 10’50”.
“Prece”, duração 6’58”.
“to konstantin tsolkovsky. one”, duração: 3’04”.
Por Priscyla Gomes e Felipe Kaizer
Os textos a seguir visam explicitar uma série de indagações surgidas durante o processo de desenvolvimento do Arte Atual Festival. As primeiras conversas entre a curadora Priscyla Gomes, o crítico Felipe Kaizer e os artistas Pedro França/Cia Teatral UEINZZ e Luísa Nóbrega geraram rascunhos, correspondências, apontamentos e imagens por meio dos quais se delineou um formato de texto baseado em perguntas, de acordo com as premissas de uma mostra aberta à experimentação e ao acaso. Cada pergunta – escolhida entre inúmeras – suscitou tentativas de resposta por parte da curadora e do crítico. Ao término, a série de textos, discorre sobre essas questões a fim de revisar e publicizar o processo de reflexão iniciado meses antes da data de abertura e até hoje inacabado.
PERGUNTA No 4: É POSSÍVEL DAR VOZ AO INCOMPREENSÍVEL?
É possível que sua chegada tenha sido silenciosa, que tenha enveredado pelo espaço expositivo sem entender o porquê de um microfone ali, logo na entrada; sem perceber que, ao fundo, na penumbra, uma série de gravadores se alinham sobre a mesa. Talvez este texto o leve ao canto da sala, a olhar de perto aquela mesa, a se sentar de costas para a exposição, a estabelecer contato com o trabalho de Luísa Nóbrega.
Também é possível que tenha sido um ruído, um som estrondoso que o tenha convidado a se aproximar, a tentar compreender como surge, quem fala, de onde vêm tais sons. O que se ouve, em cada uma dessas situações, é a voz da artista. Essa voz está presente nas cinco fitas cassete dispostas nos gravadores; está presente no sistema de áudio toda vez que a artista utiliza o microfone aberto.
As cinco fitas sobre a mesa são o resultado de gravações acumulativas realizadas durante os cinco dias de montagem, em uma gradação que vai da fala articulada a gemidos, chios e rangidos. As performances executadas junto ao microfone explicitam a incongruência permanente entre a matéria e os sons produzidos pelo corpo.
Luísa explora as fronteiras entre o ruído e a linguagem. O conjunto de técnicas advindas da sua formação como atriz é capaz de fazer do aparelho vocal o lócus de um acontecimento corpóreo e cênico. Suas ações concebem a voz não apenas como expressão, como articulação da palavra, tampouco a colocam à serviço da clareza narrativa. A profusão de palavras, a repetição desmesurada e a supressão das pausas rompem intencionalmente com as expectativas do público. À medida que Luísa abdica do papel semântico da oralidade, acompanhamos intrigados os caminhos por onde suas ações nos levam.
Se nada nesses sons se oferece imediatamente ao entendimento, se não se sabe ao certo o que é dito e o que é grunhido, podemos ao menos conhecer sua origem?
O que ganha corpo com os gestos de Luísa é algo de incompreensível. O que a artista traz à tona com sua presença e suas gravações não é algo determinado, ao qual possamos dar um nome. Tal como o subtítulo da exposição indica, o que é dito nas performances gravadas e ao vivo é alguma coisa para a qual não temos palavras e diante da qual nos falha a linguagem. Suas tentativas são para dar forma a alguma coisa que continuamos sem conhecer.
Ainda assim, permanecemos à espreita numa cumplicidade silenciosa com esses trabalhos, que chiam e silenciam; que berram e se contorcem. Permanecemos porque, de alguma forma, sabemos que essas coisas incompreensíveis ainda nos dizem respeito, afinal o que não se dá à nossa compreensão é justamente o que mais diretamente nos fala. Suspeitamos daquilo que ouvimos e de onde isso vem: será que algo a mais se acumula nas fitas junto com a voz da artista?
A obra de Luísa Nóbrega, portanto, trafega entre duas regiões. De um lado, a artista nutre uma relação íntima com o inefável que independe da atenção alheia e que não tem ocasião certa para se manifestar, a ponto de turvar a distinção entre performance e vida diária. De outro lado, Luísa domina com maestria as condições materiais do seu trabalho e mantém o controle sobre o que o público ouve e vê. A oscilação entre essas duas disposições produz uma multiplicidade de sentidos e vale ao fim como estratégia para revelar a indeterminação dessas “coisas”.
Somos convidados a participar desses constantes deslocamentos, mas com a condição de que creiamos de antemão naquilo que brota dessa região primeira e que anima os esforços da artista. Precisamos pactuar com a obra para acompanhar seu descortinamento; precisamos nos dispor a escutar. Em acordo com o inexprimível no trabalho de Luísa Nóbrega, tal como no mito da Odisseia, nos atamos ao mastro para suportar a sobrevinda do seu canto.