(ultima atualização em julho/2018)
Vive e trabalha no Rio de Janeiro, RJ.
Membro do Júri de Premiação 2017 e Comitê de Indicação PIPA 2018.
Artista visual, é considerada um dos maiores talentos da chamada Geração 80. Participou de três edições da Bienal de São Paulo, além de ter passagens pelo MoMA, em Nova York, pelo Centre Georges-Pompidou, em Paris, e muitas outras instituições renomadas no Brasil e no mundo. Formada em 1984 em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo, desde 1986 concilia atuação docente e prática artística, tendo defendido em 2003 um doutorado em artes na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Em 2009, ganhou sua primeira mostra retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo, curada por Ivo Mesquita. Em 2015, exibiu outra retrospectiva, desta vez curada por Jacopo Crivelli Visconti, com trabalhos de 1985 a 2015, no Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza. “O sonho bom” Quando experienciamos um sonho bom, todos os detalhes envolvidos no enredo que se desenrola nos parecem tão completamente perfeitos. Os detalhes, na construção do sonho bom, estão assim adequados ao assunto principal e trazem um requinte de cores, contrastes, temperatura e às vezes até de sabor e cheiro. Por sua vez, como sempre, o assunto principal do sonho envolve a realização fantasiosa dos nossos mais profundos desejos, inclusive os inconscientes, aqueles que temos sem saber que estão lá. Ondas de emoção, bem como de satisfação, são irradiadas da mente para o corpo, mecanismos de recompensa são ativados e tudo caminha prazerosamente bem até que inevitavelmente, a um certo ponto, surge o final – causado por algum tipo de interrupção ou não, um final simples e natural que chega com o amanhecer. Um estranho sentimento de perda acompanha o despertar, assim que nos damos conta de que as imagens tão vivas até então começam progressivamente a esvanecer, a desaparecer. A sensação de prazer ainda presente pode durar até o fim do dia, no entanto à medida que a consciência retoma seu império, todo o enredo tende a se desestruturar. Esse processo de desintegração fica bem pior ainda quando, na tentativa inútil de revivê-lo, tentamos contar o sonho para alguém. Nessa hora, aquilo que nos parecia a perfeita expressão da suprema felicidade se transforma numa história sem pé nem cabeça, sem graça e até mesmo chata e somos invadidos por um sentimento de frustração. Então, num último recurso, recusando o prejuízo do esquecimento eterno, que é o destino geral de todos os sonhos, apelamos para os detalhes. Talvez, se pudermos nos lembrar da arquitetura, da luz, das roupas, objetos e arredores, sejamos capazes de manter por mais tempo a adorável sensação de conforto e bem estar. Ainda, sob o olhar da psicologia, tentar lembrar do sonho bom com perfeição talvez nos ajudasse a compreender os tais desejos inconscientes e entender o que realmente queremos, já que muitas vezes na vida empreendemos enorme esforço em coisas que efetivamente acabam não correspondendo às expectativas iniciais. Fomos ao ateliê do Luiz e recostada na parede continuava a mesma pintura que eu já havia visto um mês atrás. Era agosto e a tela, segundo ele, já estava lá desde fevereiro. Tela grande de paisagem, com muitos detalhes, obsessivamente trabalhada como outras pinturas igualmente grandes e “figurativas” que Zerbini faz. Parecia estar pronta, no entanto assim que iniciamos nossas considerações positivas sobre o resultado obtido, nossos elogios, ele nos interrompeu dizendo que ainda não estava pronta. Qualquer que fosse nosso juízo sobre a pintura, este teria que esperar, pois ele não considerava que essa tela, intitulada ”Serrote”, estivesse definitivamente acabada. Não estava portanto pronta para ser “lida”, interpretada ou avaliada. Deste ponto em diante, Luiz gastou uns vinte minutos enunciando problemas e ausências que ainda deveriam ser resolvidos. Movimentando-se em frente à tela, percorrendo-a com o olhar, apontava, avançava e recuava como numa estranha dança, demonstrando intimidade física com o objeto de sua criação. Falava com cautela, com minúcia, como que para não se esquecer de nada. Tudo que faltava carecia ser listado; como se alguma ausência específica numa imagem que, claramente, já se nos apresentava repleta em todos os seus centímetros lineares, fosse capaz de causar algum tipo de comoção ou impacto. Como se, pelo desfalque gerado por esses elementos faltantes, pelo fato de não estarem presentes junto com os outros tantos, centenas deles provavelmente, que já se alinhavam na composição, todo e qualquer observador apontaria o dedo em direção à imagem na tela alardeando para denunciar tal omissão. A imagem carecia completude total para ficar pronta e Zerbini empenhava-se, concentrado, para garantir o feito. No meio, é ditado antigo: escultura é difícil de começar e fácil de acabar, e pintura, fácil de começar e difícil de terminar. Porque para a primeira é necessário reunir material, calcular peso, escala e estrutura, e só quando todas as etapas estiverem devidamente antecipadas, torna-se possível começar e daí seguir o projeto, para sem muita angústia concluir. Já para a pintura, são necessários tão somente tela e tinta. Lançando mão de algum estudo básico ou não, inicia-se com um gesto de preenchimento sobre o fundo branco e vazio. Seguem-se então camadas e sobreposições, inúmeros recursos de recobrimento envolvendo transparências e opacidades, por meio dos quais é possível modificar a imagem. As possibilidades quase infinitas de alteração fatalmente retardam o processo de decisão de quando terminar. Nada mais comum nas aulas de pintura do que os alunos angustiados perguntando seguidamente: E agora? Acha que ficou pronta? Perplexos pela empolgação do artista em nos dizer tudo que faltava ainda, nos sentíamos um pouco embaraçados de questionar sobre a verdade tão óbvia: mas a tela já está tão cheia…? Um mês antes, a luz no céu era cor de salmão, agora apresentava-se num azul reflexivo, metalizado, puxando para o prata. O rio, antes liso de uma cor já difícil de lembrar qual era, tantas foram as mudanças no intervalo de um mês para o outro, corria agora com uma textura de faixas finas e onduladas pintadas com um tipo de amarelão. Afora a questão da superlotação de elementos e detalhes, boias, uma esponja amarela, um garfo espetado numa fruta, folhas e musgos multicoloridos, um pé de cana, chuveiro, esguicho, corda azul de nylon, âncora, um radinho da marca Sanyo entre outros, há que se chamar atenção para a escolha da imagem como um todo. Trata-se aparentemente de um cenário de pescaria protagonizado por uma bomba d’água ajeitada sobre uma caixa d’água plástica redonda e cinza. Seria talvez um quintal, o fundo de algum lugar com vista para um rio que passa atrás. Um lugar bem precário, ainda que funcionando, na ativa, com gambiarras de fios puxados e tomadas em lugares improváveis com a bomba ligada jorrando água. Trata-se de um todo composto por um monte de poucos juntos, o agrupamento resultando em uma paisagem significativa, de caráter niilista. A precariedade do cenário, um canto de um lugar qualquer, parece refletir um estado de humor específico intencionalmente atribuído à cena pelo artista. Esta é composta por elementos simples e dispersos, próprios do lugar, que promovem, em sua desordem natural, uma espécie de caos poético. Nessa obra, Zerbini privilegia claramente o aspecto sublime em detrimento do belo, ao conferir a este cenário um ar melancólico. A escolha do assunto para pintar inicia o processo. Contribui ainda para essa leitura a sensação de umidade, construída não somente pela coisa da água mas também pela temperatura das cores amarelo-esverdeadas, um pouco pálidas. Outro fator é a representação do espaço na tela, algo opressor, comprimido e amontoado na frente e que depois se estende abruptamente na figura poderosa e cheia de velocidade do rio caudaloso que atravessa a cena de um lado ao outro. Em seguida, na outra margem, surge um enorme pedralhão, acima, frações esparsas da luz do céu. O sublime então se impõe pela coadunação do elemento belo associado ao estranho. O belo, refletido no excesso de detalhes e no visível afeto que o artista parece nutrir por eles e o estranho, na escolha da imagem, um lugar de alguém onde não há ninguém. Havia, mas foi embora, deixou o rádio ligado e a bomba funcionando, restaram rastros, vestígios… Os detalhes todos presentes agora, com uns cinco ou seis passarinhos que não havia antes e mais um bocadinho de musgo nas tábuas de madeira, além da trama de uma rede de pesca que finaliza o pedralhão, conferindo uma nova textura onde antes havia um liso, vão fechando a tela toda. A superfície agora pode ser lida como uma trama, uma renda composta por esses detalhes de memórias, desejos e sentidos embaralhados em imagens colecionadas. Foram sendo agrupadas para preencher, para compor e somar, e depois multiplicar e expandir uma visão sensível de um lugar onde normalmente ninguém enxergaria nada. Num mundo prático, orientado para funções cada vez mais rápidas, fazer mais para ganhar mais, gastar, fazer de novo, quase uma vida de formiga. Um mundo exigente que acaba se tornando invisível em razão de tanta pressa, assim só pode ser bom então poder parar e enxergar, e depois fazer os outros verem também. Respondi ao email dizendo que não estava achando nenhum serrote na cena, se por acaso o objeto do título estaria atrás da vassoura ou coisa assim? E ele respondeu que não havia de fato nenhum serrote e que este era o nome do lugar onde ele havia visto essa “caixa d’água com a bomba em cima”. Falou sem pensar, respondeu sem se dar conta do inusitado, de que vivemos esbarrando no banal, no confuso, na desordem, e que este cenário vem a ser a antítese do belo e do poético para quase todos e que, só para ele, aquele seria um grande encontro com um caráter de revelação. Um lugar calmo, pleno e tranquilo, sem ausências, excessos ou necessidades, onde todos os detalhes do sonho bom permanecerão, agora para sempre, organizados em sua tarefa sublime de promover as boas sensações. O mar do Caribe é lindo, ninguém pode negar. Ainda que nunca se tenha ido até lá – e a imensa maioria de nós nunca foi e nem nunca irá – mesmo assim, dá para ver pelas fotos e vídeos. O azul, azulzinho… Ou melhor, as três faixas horizontais de cor, a areia branca, o azul esverdeado da água em contraste com o azul intenso do céu com sol, a figura dos coqueiros debruçados sobre o mar. A transparência da água parece se destacar como signo fundamental na composição geral. Na cena toda, a transparência parece sugerir a possibilidade de uma existência especialmente leve e suave, num mundo cálido, envolvente e acolhedor. Há uma sugestão de paraíso na terra, além da associação comum que relaciona o estado de felicidade ao contato direto com a natureza, gerada por uma sensação de pertencimento ao planeta, muito comum entre os surfistas. Dentre os motivos que contribuem para o enaltecimento da imagem do mar do Caribe como algo inegavelmente belo está o seu caráter irreal, se pensarmos do ponto de vista do modo como vive a maioria das pessoas. Desde meados do século XIX, populações acumulam-se nos grandes centros urbanos, vivendo em espaços exíguos, privadas de qualquer possibilidade de avistar o horizonte ou até mesmo de ver o céu, a não ser por estreitas brechas entre os edifícios. O contraste das realidades certamente favorece a associação positiva, reforçada pelo aspecto exótico daquela paisagem. Interessa pensar em que momento e sob quais circunstâncias na existência, na infância ou juventude, o belo incide sobre nós, quando o enxergamos pela primeira vez, numa determinada experiência, e somos assim tocados pelo desejo. Uma vez capturados, nos tornamos eternamente reféns da visão que despertou o desejo. Esta passa a ocupar um lugar privilegiado na memória, impulsionando toda sorte de ações no intento de promover a reprodução da experiência. O que há no signo do belo que tão fortemente desperta o desejo, que nos coloca num leve estado de transe, uma espécie de hipnose, e permanece constantemente atraindo atenção? Para além da imagem do mar azul claro e transparente, aqui também poderiam estar pessoas, o rosto da pessoa amada, múltiplos elementos da natureza ou mesmo melodias. Assim como as imagens, sons podem alcançar um alto nível de encantamento. Ainda, outros incontáveis contextos, incluindo narrativas, estórias ou mesmo vagos estados espirituais podem ser geradores da experiência de beleza. Muitas vezes a complexidade do evento se efetiva pelo fato de estarmos geralmente absortos em funções cotidianas, desprevenidos do porvir, quando somos subitamente capturados pelo belo. O inesperado agrega à experiência um caráter de exaltação, na promoção de um instante glorificado, de um momento sublime com o poder de nos remover da mesmice do esforço diário, numa elevação vertiginosa para um estado especial, condição sui generis. Estado de consciência ampliada na noção clara de que de fato existem mais coisas para além da racionalidade, uma espécie de comprovação efetiva do mistério. Os componentes necessários para a ignição do belo estão certamente dentro de cada pessoa, relacionados a seu histórico pessoal e cultural. Atualmente, o que é belo para uns não vale para outros, não sendo mais, de modo algum, um conceito-chave, como válido para os teóricos do século XVIII. Alguns signos mais potentes como a lua cheia ou o pôr-do-sol ainda podem servir como noção de beleza comum, no entanto qualquer tentativa mais séria de unificação do gosto tende a falhar. Muitas coisas interessantes se tornaram belas e muitas coisas belas se tornaram estranhas em sua pretensão de universalidade, como por exemplo: a pessoa bonita. A beleza padronizada pela mídia nas últimas décadas está desgastada e a classificação de belo hoje abandona a noção naif de modelo. Não há mais modelo a seguir, o contexto é o que importa. O contexto cultural e político nunca antes alcançou tanta importância e parece natural que assim o seja, uma vez que se considere a irreversibilidade do acesso às mais diferentes culturas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. A beleza agora é informada. O feio também, quase tudo que já foi considerado feio agora pode ser igualmente belo, dependendo do ângulo pelo qual se pretende enxergar. O conceito de feio, assim como o de beleza, sofre atualmente violentas alterações dependendo do contexto, como por exemplo: a feiura da injustiça, à qual associamos a noção de maldade. O feio, muito mais do que uma imagem feiosa, parece estar ligado a sensações ruins, valores éticos e morais, podendo ser também o tedioso, o enjoativo, como uma forma de castigo visual de algo que nunca muda e se repete eternamente. Numa suposta atribuição momentânea de poderes especiais ao artista, poderíamos considerar que ele possa, a um só tempo, enxergar dois mundos distintos. Lançando um olhar para o mundo real, como ele é, somando-o a outro, um segundo mundo imaginado e aperfeiçoado a sua maneira. O artista então se torna capaz de, através deste olhar duplicado, antecipar uma coleção própria de futuros possíveis, projetando imagens inéditas de seu universo próprio naquilo que produz. Futuros possíveis, em que desejos e realidades se misturam, beleza e feiura se confundem e se transformam, oscilando em favor de uma efetiva renovação do real.
Por Leda Catunda
[Texto crítico escrito em 2013 e publicado no livro de Luiz Zerbini Minhas Impressões, Rio de Janeiro, UQ!Editions, 2016]
“A bela, a fera e, o desejo do mundo”
Por Leda Catunda
[Texto curatorial introdutório de “A Bela e a Fera”, coletiva exibida entre junho e agosto de 2017 na Central Galeria, São Paulo, SP]
. . .
Ser artista é concentrar energias e organizá-las em torno de uma intenção única, ligada à criação. Fazer escolhas para afinar essa intenção é o desafio básico do percurso, para assim definir o que se pretende realizar e como fazê-lo. Escolher é abandonar, deixar para trás o que não interessa e arriscar apostando numa visão particular e pessoal do mundo e da existência. Ainda que esta visão pareça uma verdade improvável, é necessário correr o risco de errar para poder acertar. É fundamental potencializar a poética, torná-la contundente, eficaz, ou seja, produzir arte com qualidade, entre tentativas, cálculos e elucubrações, estabelecimento de critérios e escolhas. Desta forma o artista organiza o desejo do mundo. Lidar com o desejo em geral – o próprio e o de todos – é lidar com o apetite do mundo, ânsia pulsante e inexorável por mudanças, transformação continuada para a obtenção de satisfação, deleite, sonho, prêmio, realização, redenção ou o que seja.
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