(ultima atualização em julho/2017)
Itatiba, SP, 1986.
Vive e trabalha entre Itatiba, SP.
Representado pela Luciana Caravello Arte Contemporânea e Casa Triângulo.
Indicado ao Prêmio PIPA em 2012, 2014 e 2017.
Graduado em Artes Visuais pela PUC-Campinas, SP. Atuou durante três anos como artista-assistente no atelier de Marcelo Moscheta.
Em 2013 exibiu “Estudo para medir forças” na Casa França-Brasil (Rio de Janeiro, RJ), integrando o Projeto Cofre; além de ser premiado no edital PROAC Artes Visuais, do Governo do Estado de São Paulo. Em 2012 recebeu o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, além de ter participado da residência internacional “Transitante: entre álbuns e arquivos” no Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa, Portugal.
Tem obras nos acervos do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro/Coleção Gilberto Chateaubriand (Rio de Janeiro, RJ), no Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro, RJ), na Fundação Bienal de Cerveira, entre outros.
Site: www.ivangrilo.art.br
Vídeo produzido pela Do Rio Filmes, exclusivamente para o Prêmio PIPA 2017:
Em 2016 exibiu a individual “Preciso te contar sobre amanhã” na Luciana Caravello Arte Contemporânea (RJ), além de receber o prêmio FOCO Bradesco ArtRio; em 2015 a individual “Eu quero ver”, na Casa Triângulo e participou da coletiva “Encruzilhada” no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Em 2014, exibiu a individual “Quando Cai o Céu”, no Centro Cultural São Paulo, além de participar das coletivas: “Novas Aquisições da Coleção Gilberto Chateaubriand”, no MAM e “Pororoca, a Amazônia no MAR”, no Museu de Arte do Rio.
Em 2013 exibiu “Estudo para medir forças”, na Casa França- Brasil, integrando o Projeto Cofre; além de ser premiado no edital PROAC Artes Visuais, do Governo do Estado de São Paulo. Em 2012 recebeu o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, além de ter sido indicado ao Prêmio Investidor Profissional de Arte (PIPA) e ter participado da residência internacional “Transitante: entre álbuns e arquivos” no Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa / Portugal.
Dentre suas principais exposições individuais estão: “Sentimo-nos Cegos”, na Luciana Caravello Arte Contemporânea, “Quase/Acervo”, no Museu da República (Rio de Janeiro), “Ninguém”, no Paço das Artes (São Paulo), “Isso é tudo de que preciso me lembrar”, no SESC Campinas, e “A Pausa do Retrato”, na Usina do Gasômetro (Porto Alegre).
Dentre as principais coletivas estão: “Avenida Paulista”, MASP, 2017; “A cor do Brasil”, Museu de Arte do Rio, 2016, “I Bienal MASP Pirelli de Fotografia”, em São Paulo, “2nd Ural Biennial of Contemporary Art”, na Rússia, “16ª Bienal de Cerveira”, em Portugal, “11ª Bienal do Recôncavo” em São Félix / BA, e “Arte Pará”, no Museu Histórico do Estado do Pará.
Possui obras nas coleções: Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro/Coleção Gilberto Chateaubriand, , Museu de Arte do Rio (MAR), Itaú Cultural, Fundação Bienal de Cerveira (Portugal), Col. Fundación ARCO, CCA2M – Centro de Arte Dos de Mayo de la Comunidad de Madrid, entre outros.
“Desmonumento à Fotografia”
por Juliana Monachesi
As estéticas do esquecimento e da perda podem ser mapeadas em movimentos entre Walter Benjamin e Andreas Huyssen, ou entre Christian Boltanski e Rachel Whiteread, entre Emil Forman e Rosângela Rennó́, ou ainda entre Elisabeth Bishop e valter hugo mãe. Com tantas genealogias visuais, literárias e filosóficas disponíveis a um link de distância, penso que, ao apresentar a obra de um artista nos tempos atuais, muito mais pertinente do que repisar possibilidades genealógicas é tratar da linguagem da obra em questão. Para quem considerar o contrário, ficam acerca da obra de Ivan Grilo as sugestões de navegação pelas tags acima.
Afinal de contas, se é possível percorrer a mostra individual de Grilo no Paço das Artes com este viés da memoria e da perda em mente, também é factível deixar estes temas de lado e proceder a uma observação das operações complexas a que ele submete o meio fotográfico. Desde o apagamento de todas as informações identificáveis em registros de nascimento e outros documentos oficiais, dispostos logo na entrada da exposição, até as fotografias antigas reproduzidas por meio de carimbadas sobre papel de grandes dimensões, os procedimentos técnico-conceituais de Ivan Grilo desafiam o estatuto monumentalizante das imagens.
Não se trata aqui de subverter verossimilhança, veracidade ou mesmo a confiabilidade da imagem fotográfica. As obras expostas na Temporada de Projetos são reconhecíveis, verdadeiras e fidedignas. Naquilo que ocultam ou omitem, são ainda perfeitamente gestálticas. Mas naquilo que mostram ou evidenciam, as obras questionam, sim, o aspecto monumental que a fotografia adquiriu culturalmente e que cristalizou socialmente. O uso pelo artista de imagens deslocadas no tempo – antigas fotos de casamento, documentos em desuso, fotos familiares amareladas – está a serviço desta leitura da obra e não o contrário, a obra a serviço do desgastado discurso da memoria, como se poderia imaginar.
Caso o artista utilizasse fotografias recentes e coloridas, não veríamos com a mesma facilidade as ruínas dos processos civilizatórios e das demais instituições modernas – ciência, religião, casamento, patrimônio histórico, discursos identitários etc. – que Ivan Grilo encena por meio de processos precários de impressão de imagens: estêncil com verniz diretamente sobre a parede, carimbo sobre papel, acetato aplicado em placas de acrílico, transferência sobre lombada de resmas de papel solto, apagamento digital sobre papel-manteiga. À beira do desaparecimento, estas imagens nos falam do fracasso da monumentalização da cultura, da arte e da vida. São obras, em suma, sobre a derrota da ideologia fotográfica.
Diário de Bordo do São José III (MCPUL – MA – Z6) do dia 19 de setembro de 2013
por Bernardo Mosqueira
Começamos nossa viagem de volta da Ilha dos Lençóis às dez horas e cinco minutos da manhã de hoje. Como estamos na temporada dos grandes ventos, serão seis horas e meia de barco em igarapés e furos até Apicum Açu para evitar o mar aberto. Depois, serão mais cinco horas de estrada até Cururupu, duas horas de ferryboat até São Luis, duas horas de avião até Brasília e mais uma hora e meia de voo até São Paulo.
Neste pequeno barco de pesca, além de mim e Ivan Grilo, estão os pescadores Bicho, João Carlos, Hélio, Tango e Nango, os professores Nina e Natanael, a zeladora da escola Silvinha e sua filha Silmara, além de Renata, Renan e Renato – respectivamente esposa e filhos de Nango, o dono do barco.
Durante duas noites e três dias, eu e Ivan moramos numa pousada amarela feita de madeira e palha, que, na verdade, eram dois quartos na casa da família de Nango. Viemos até a ilha buscando depoimentos sobre algumas lendas locais que nos pareceram, lá no Rio de Janeiro, de frente ao laptop, muito interessantes às pesquisas recentes de Grilo.
A História conta que em 1554 nasceu o Príncipe Dom Sebastião, neto do Rei Dom João III e esperado pelo povo português como “O Desejado”. Filho do Príncipe Dom João, falecido antes de seu nascimento, subiu ao trono lusitano aos 14 anos. Dez anos depois, organizou uma cruzada ao norte da África com 500 navios e mais de 20 mil homens. Enquanto acontecia o combate, uma névoa desceu sobre a região marroquina de Alcácer-Quibir e, ao se dissipar, Portugal havia perdido dez mil homens para a morte, e o jovem rei, surpreendentemente, desaparecera.
Essa é a origem do mito do Sebastianismo, uma espécie de messianismo à lusitana baseado na crença de que, em alguma manhã no futuro, uma névoa entrará por Lisboa devolvendo ao solo português o Rei Sebastião, “O Encoberto” ou “O Adormecido”, que haverá passado todos esses séculos esperando a hora certa para voltar e salvar Portugal, construindo um reino de paz, riqueza e união.
Acontece que Ivan Grilo passou os últimos anos pesquisando formas diferentes de lidar com fotografias de acervos institucionais e domésticos e, em importante parte de sua produção, sobrepôs superfícies não translúcidas às imagens apropriadas. Esse procedimento impedia que as imagens escolhidas por Grilo em longos e complexos processos de seleção fossem completamente vistas pelo público; porém, mais do que revelar parte da memória de uma instituição ou de uma família, Ivan estava interessado em alimentar nossa enorme e inevitável capacidade imaginativa. A partir de um dado momento, Ivan se lançou a pesquisar a ideia de névoa ou neblina e chegou a utilizar algumas vezes vidro jateado sobre a fotografia (às vezes apenas apoiado, outras vezes como parte da moldura). Pesquisando neblina, chegou até a história de Dom Sebastião.
O curioso é que a população da Ilha dos Lençóis, composta por menos de 400 pescadores completamente isolados com suas famílias a 13 horas de São Luis do Maranhão, que já chegou a ter vinte por cento de albinos em sua formação, acredita que Dom Sebastião, o rei português desaparecido no Marrocos em 1578, reina na Ilha com seu castelo embaixo d’água.
Sabendo disso, eu e Ivan achamos importante fazer essa expedição e, menos de 15 dias depois dessa ideia, estávamos reunidos no aeroporto de Campinas para iniciar nossa viagem. Assim que chegamos ao aeroporto de São Luis, fomos recebidos pelo motorista Patrick, que nos levaria até o porto de Apicum Açu. Seu primeiro ato foi nos entregar um envelope com alguns papéis contendo informações sobre a ilha e a região. Todos os impressos eram estampados com fotos de revoadas de Guarás, grandes pássaros muito vermelhos que se alimentam de pequenos crustáceos dos mangues da região. Pois uma pena muito vermelha fechava o tal envelope. Patrick fez questão de dizer: “Vocês têm de receber isso pra ir à ilha, mas precisam saber que essa não é uma pena arrancada de um Guará.” Eu bem entendi. Aceitei, guardei a pena com cuidado e é com ela que escrevo esse diário de bordo.
A viagem de ida foi torturante. A paisagem que cortávamos e que nos cortava era enternecedora demais, mas o mar tinha mais buracos e quebra-molas do que a estrada destruída entre Cururupu a Apicum Açu. O barco balançou muito, nos jogou inúmeras vezes de um lado para o outro, e chegamos à ilha completamente encharcados. Além disso, carioca-pretinho-marrento, decidi fazer a travessia vestindo apenas uma bermuda (mesmo tendo feito atenção às mangas e calças compridas dos pescadores). Afinal: barco + sol = bermuda. Faltou apenas um Equador nessa equação.
Assim que chegamos, cansados, molhados e queimados, percebemos que valeria a pena. Mas jamais poderíamos imaginar tudo o que aconteceria.
Ainda nesse primeiro dia, com alguma ansiedade disfarçada, perguntávamos a todos sobre as lendas que afirmavam que Dom Sebastião vivia na ilha. Causando-nos uma enorme frustração, nos respondiam apenas não conhecer as histórias, não saber contar nenhum caso ou que nem mesmo acreditavam no mito do rei.
Fomos dormir muito impressionados com a beleza da ilha: o mar era muito grande, as árvores, muito verdes, as dunas, altíssimas. Nossos quartos tinham mosquiteiros que não usamos, pois não parecia ter mosquitos por ali. As toalhas exibiam bordado o brasão da coroa portuguesa. Às quatro da manhã, acordei com uma ventania que fazia a casa tremer demais. Com toda aquela violência, a palha do telhado se levantava, deixando entrar areia e todo tipo de inseto vivo ou morto. Os mosquiteiros que não usamos serviam para não deixar o vento sujar a cama durante a noite.
Tomando o café da manhã composto por frutas e tapioca, contei ter ouvido um cavalo passar muitas vezes na frente da casa na madrugada. Renata logo me respondeu que não havia cavalo na ilha, e Nango completou: “Mas você ouviu bem certo; era o cavalo do rei. A gente ouve muito por aqui.” Eu e Ivan paramos os talheres no ar e arregalamos os olhos. Essa era a primeira vez que nos falavam do rei, real, na ilha. Todos os outros à mesa continuaram a fazer o que faziam. Tentamos seguir com mais perguntas – sem sucesso.
Ainda frustrados entre as pessoas, decidimos fazer uma trilha para conhecer e conversar com a própria ilha (afinal, ela é o grande personagem). Laílson foi o encarregado de nos guiar; começou o trajeto nos mostrando como chegar ao outro lado da enorme duna enquanto nos revelava que, de tempos em tempos, objetos dourados são desencavados da areia pelo vento. Talheres, joias, colares, moedas. “São parte do tesouro do Dom Sebastião. O castelo dele é bem aqui, debaixo d’água.”
Saímos das dunas, entramos no mangue. Ele disse: “Por segurança, pisem apenas nas raízes”, antes de se embrenhar com rapidez suficiente para que o perdêssemos de vista em 15 segundos. Para desespero de Ivan (que aproveitava essa experiência no mangue para perder um conjunto de medos carregados da infância), dei um passo mais arriscado e minhas duas pernas afundaram de uma só vez na lama cinza cheia de caranguejos até quase a linha do quadril. Antes de sair do buraco, chequei rapidamente se o iPhone estava embaixo d’água ou no bolso de cima. No bolso de cima! Saravá, Amém, Senhor. Mais à frente, Laílson nos apontou uma “planta medicinal” e repetiu algumas vezes que aquela era uma planta e não uma erva. Eu e Ivan não pudemos evitar a expressão de susto quando assistimos Laílson dar, sem titubear, uma enorme dentada no caule, arrancando um pedaço da casca e grudando-o numa ferida que tinha na perna. “É ótimo pra cicatrização. Faz não inflamar.” Como deveriam, eu acredito em tudo.
Ainda na trilha, Laílson nos ofereceu a frutinha de um cacto que ele afirmou ter o gosto da ilha (era algo entre a lichia e o coco), nos ofereceu um cipó com o cheiro da ilha (algo como cheiro de cipó), nos levou onde a duna está soterrando a floresta e pudemos ver a areia escorrer como água sobre as árvores. Caminhamos por uma longa praia em linha reta, para onde o mar traz restos de embarcações naufragadas, redes de pesca perdidas e toda a sorte de provas dos dramas do mar. Lá, nos mostrou as pequenas bases de pesca artesanal e nos contou que, devido ao vento, de seis em seis anos todos trocam suas casas de lugar, quando estas começam a ser engolidas pelas dunas. Pouco antes de voltar ao vilarejo, vimos as duas gigantescas unidades de energia eólica, construída pelo governo Dilma, trazendo energia elétrica para a ilha. Ao lado da base dos grandes postes, está o “Cajueiro dos Anjos”, onde estão enterradas as crianças da ilha que não resistiram ao parto ou que morreram antes dos 10 anos.
Fazia um calor indescritível. Começamos nossa caminhada pela parte deserta da ilha às oito da manhã; não tinha uma nuvem no céu, e só retornamos ao vilarejo às duas da tarde. Exaustos, completamente empapados de areia e filtro solar, sentamos em bancos feitos de troncos de árvore em frente à mercearia da ilha para tomar uma cerveja antes do almoço. Aos poucos, as pessoas passavam, e nós as convidávamos para sentar conosco. Revelei a eles que eu tinha ouvido passar um cavalo na madrugada, e me contaram: “Uma senhora, das mais antigas aqui da ilha, vivia olhando tudo que passava em frente à casa dela. Numa noite, ouviu um canto se aproximar, foi até a janela e viu que se tratava de um grupo se aproximando fazendo orações. Uma das pessoas se aproximou dela e deu uma vela acesa para ela segurar. Quando ela piscou os olhos, estava segurando a perna de um cadáver.”
Tivemos de ir almoçar, mas combinamos de voltar mais tarde para outra cerveja. Depois de comer uma deliciosa galinha caipira que pouco tempo antes passava por entre nossas pernas, nos convidaram para visitar um farol que fica numa ilha próxima. Para chegar à ilha do farol, era preciso ir de barco de pescador e depois remar numa canoa. Para que não ficássemos frustrados mais uma vez, nos avisaram que o farol estava quase caindo e que não poderíamos subir.
Era um farol enorme, fálico como poucas coisas conseguem ser e listrado de branco e preto. Ao avistar a grande construção e suas rachaduras, Ivan disse: “Ia ser lindo ver esse farol cair.” Guardando o local, dois soldados da Marinha, que estavam lá, sozinhos, havia quase três meses. O nome da vila deles esculpido em pedra: “Tenente Álvaro – Hidrógrafo.” Durante dez anos de minha infância, eu dormi todos os dias com camisas brancas e idênticas, herdadas da época em que meu avô materno era um jovem no Exército. Nessas camisas brancas, que enrolavam meu corpo enquanto eu sonhava, estava escrito “Tenente Álvaro”.
Um dos soldados veio me cumprimentar efusivamente: carioca de Campo Grande, Rodrigues. Ivan nem se mexeu e acenou de longe. Enquanto o segundo soldado mostrava um quadro emoldurado com os dados da história daquele farol, Rodrigues trocava de roupa para então nos convidar: “Vamos subir?!” Ao mesmo tempo, eu disse sim, e Ivan disse não. O soldado insistiu, nós subimos.
No momento em que entrei pela porta de ferro oxidada e trancada com correntes, minha sensação era de que éramos três mortos. “Ia ser lindo ver esse farol cair” tinha dito Ivan havia oito minutos. Assim que entrei pela porta do farol, éramos três mortos. Nas paredes, rachaduras com dois dedos de largura. As vigas estavam completamente expostas e enferrujadas. Rodrigues se esforçava em ser cativante, e eu sentia que ele olhava e sorria demais para nós. Lá de cima, uma incrível vista da ponta da mata amazônica, de vários tipos de mangue, de revoadas de guarás, garças brancas, garças morenas, maritacas e papagaios, dos rios, do mar e, ao longe, na beira do horizonte, de uma grande duna. Em todo o tempo que passamos sobre a areia da Ilha dos Lençóis, não vimos o farol.
Cantando como a sereia, Rodrigues nos convidava para subir cada vez mais alto. Escalamos o assustador caracol de concreto, e o soldado, sorrindo, nos indicou que não fôssemos na varanda, pois ela não era muito segura. Mesmo assim, nos convidou para subir mais uma escada, vertical, de ferro, que acabava em um buraco quadrado no teto com 50 cm em cada lado. Lá em cima, éramos nós três mortos e a lâmpada apagada.
Perguntamos sobre as lendas locais, e Rodrigues nos respondeu: “Dizem que aqui é a ilha dos amores, mas não acredito nisso.” Nunca nos haviam dito que aquela era a ilha dos amores. Não existe essa lenda. Só para Rodrigues que, então, já nos convidava para dormir com ele na vila aquela noite. “Vai ter bolo!” Disse que poderíamos voltar a pé para nossa ilha de manhã.
Saindo finalmente pela tal porta de ferro oxidada, o soldado quis nos mostrar uma jiboia de 8 metros que morava nas bases do farol. Agradeci e recusei o estranho convite. Descemos com a sensação de termos passado cinco minutos dentro da construção. Nossos guias disseram que foram cinquenta longos minutos.
Na canoa da volta, Ivan me revelou que Rodrigues não conseguia disfarçar o encanto com o meio das minhas pernas. Eu, sinceramente, não havia percebido seu interesse nem havia entendido para onde as sereias nos convidam: subir em farol ruindo, conhecer uma jiboia de 8 metros, andar a pé entre duas ilhas num local onde a maré tem grandes variações. Rezei agradecendo à cera milagrosa de Santo Ulisses da Grécia.
Antes de voltarmos para nosso canto na Ilha dos Lençóis, paramos em uma comunidade vizinha chamada Bate-Vento. Um senhor de 85 anos chamado Jacó (ou talvez esse fosse o nome de seu irmão) havia nos prometido um par de cocos por termos dado a ele uma carona de barco entre Apicum Açu e Bate-Vento. Nessa ilha, sem dunas ou mangues, há uma comunidade um pouco maior, com casas de alvenaria, nomes de políticos locais pintados nas fachadas (como em todo o interior do Maranhão) e uma atmosfera assustadoramente soturna. O ar parado do lugar contrastava com nossa experiência nas ilhas vizinhas e com o próprio nome desse vilarejo. Jacó, muito negro, muito magro, muito enrugado e com os olhos quase completamente brancos pela catarata, conversou conosco na beira de um largo e profundo poço. Com nossos rostos refletindo na água preta e viscosa, ele nos contou, com vergonha, que não poderia nos dar os cocos, pois não podia subir sozinho nos coqueiros de 7 metros de altura que ficam em seu quintal. Agradecemos por ter nos recebido e fomos embora para encontrar, em nossa ilha, o pôr do sol mais impressionante que já vimos.
Depois do jantar, fiquei à mesa conversando com o pai de Nango. Ele é uma figura muito misteriosa que passou quase todo o tempo ao nosso lado sem falar uma única palavra. Percebi, sozinhos à mesa de jantar, que aquela seria minha melhor oportunidade. Maneco, como é chamado na família, enquanto fumava seu cigarro enrolado, respondia as minhas perguntas com “sim”, “não” ou nada dizia. Após alguns minutos de esforço, consegui descobrir que a comunidade da ilha era majoritariamente católica, com nenhum evangélico e um belo terreiro de candomblé do qual ele, Maneco, era o líder, pai de santo. Segundo Maneco, era o curador da ilha.
Esse terreiro com ritos do tambor-de-mina fora fundado por um maranhense que “fez santo” na Nigéria e consagrou o barracão a Oxalá. Mesmo assim, a maior festa da ilha é para Oxóssi. Como se sabe, no sincretismo, Oxóssi é São Sebastião, e, na ilha, São Sebastião é comumente confundido com Dom Sebastião.
Quando Maneco, amaciado, nos convidava para voltar à ilha em janeiro para a festa de Oxóssi, Nango entrou no cômodo após um banho de água de poço nos lembrando da cerveja prometida para essa noite na mercearia. Se Nango não tivesse chegado nesse momento, talvez Maneco tivesse tido tempo de nos contar sobre a Encantaria de Mina, que cultua voduns, pessoas que viveram, mas não morreram: se encantaram e voltam a esse plano no corpo em transe dos iniciados. Talvez, se tivesse tempo, Maneco nos explicaria como a presença do tambor-de-mina na matriz religiosa regional abria caminhos para a crença no reinado de Dom Sebastião. Talvez, ele até teria tido tempo de nos explicar que, na Encantaria de Mina (que tem culto até em São Paulo), existe a chamada “Família de Lençol” com os denominados encantados gentis: nada mais nada menos que Dom Sebastião, Dom Luís, Dom Manoel, Dom Felipe, Rainha Bárbara, Príncipe De Oliveira etc. se manifestando no corpo dançante dos iniciados. Mas não houve essa chance. Fomos à cerveja.
Depois de muitas garrafas, éramos um grupo de seis homens e uma mulher. “Se me oferecem uma viagem ao Rio de Janeiro com avião e hotel pagos, eu digo muito obrigado. Mas não vou.” “Lá no Oriente Médio ninguém morre sozinho. É só 200 mortos, 500 mortos. Outro dia, no Egito, morreram mais de mil numa manifestação!” “Como vocês conseguem ter barba? Aqui na ilha ninguém tem barba.” “Como é encontrar os atores da Globo nas ruas do Rio?” Umas cervejas a mais e começam a nos contar histórias do Rei. “Uma vez, apareceu um homem e comprou vinte quilos de farinha. Mandou jogar tudo na água e desapareceu.” “Um dia, um homem sonhou e mandou que desmontassem uma casa que estava atrapalhando a carruagem do Rei de passar. Não desmontaram e sofremos um acidente em Cururupu em que quase morremos. Mostra a cicatriz pra eles, Laílson.”. Estava lá a cicatriz de 20 centímetros na coxa do homem. “No inverno, a terra treme e a areia engole bois inteiros que ficam apenas com o pescoço pra fora.”
(Reparo, agora, no barco, que Nango não fez a barba hoje!)
No caminho de volta para a pousada, sem que perguntássemos, um menino nos contou que foi preso por ter dedado outro menino. Pensamos que fosse “dedurado”. Não, era dedado mesmo. Já ao redor da mesa da casa, Renata nos contava como ela tinha sonhos premonitórios. Uma vez sonhou com um choro de Renato. Algumas horas depois, Renato tinha o pescoço atravessado por um ferro da cerca da casa. Quase morreu, mas o anjo do sonho ajudou. Outra vez, sonhou que Nango tinha outra mulher, baixinha e morena, enquanto ela paria Renan. Era verdade. Quando ela viu a mulher, soube quem era. Ela nos contava como rezavam e veneravam Dom Sebastião como fosse Deus. Quando dissemos que queríamos ir à duna naquela noite de lua cheia, nos disse que rezássemos, lá, para o Rei Sebastião.
Eu, Ivan, a lua cheia, a ventania e a duna. Não precisamos muito da lanterna. De tão clara que era a noite, parecíamos andar sobre montanhas de talco lunar. Por completo acaso, chegamos à ilha nos dias de lua cheia. Dizem que durante a lua nova (chamada, aqui, de Luz de Escuro) tudo é mais assustador. Não sei como poderia ser mais assustador.
Depois de alguns minutos conversando, sozinhos, enquanto nossos celulares buscavam algum sinal (só funcionavam em alguns poucos metros quadrados no topo do monte de areia), vi uma lanterna azul piscar. Era tão real que, de início, pensei que fosse alguém chegando. Não era. Logo entendi que era o Rei Sebastião se mostrando para a gente. Antes daquilo, achávamos que acreditávamos na lenda. A partir de então, tudo que ouvimos, mais do que narrativa, era real. Tão real quanto aquele vento que nos socava as costas. Daí em diante, o medo do absurdo tomou conta de nós dois. Algumas árvores à distância pareciam cavalos. Ou eram cavalos que não andaram na nossa direção. Ficamos alguns minutos decidindo se caminhávamos até o fim da duna ou não. O vento era forte demais e batia em nossas costas. Eu queria ir. Ivan não queria. Ivan quis ir. Eu dei para trás. Eu topei. Decidimos ir ao fim da duna.
Andamos lentamente como se fôssemos entrar em um caminho sem volta. Não estávamos errados. Ao descer a última curva da grande duna, o vento cessou. Parou. Silêncio. Olhamos para trás, não podíamos mais ver o vilarejo. À frente, água escura nos separando de outra ilha. Sem o vento, não precisamos dizer uma palavra. Sentamos sobre aquele silêncio e o vento que não corria fazia parecer que o tempo tinha parado. Talvez tenha parado.
Sentados, juntos, encarávamos a água escura da noite. Foi quando, então, entre nós e o azul marinho, surgiu uma figura no ar. Era Rei Sebastião, coroado em seu cavalo. Não. Na verdade, não era. Poderia ter sido. Mas a figura que apareceu entre nossos olhos e o mar surgiu e se desmanchou muito rapidamente. Fez questão de mostrar que poderia aparecer com a forma que quisesse. Mas não vimos o Rei em forma de Rei. Com o susto pela fagulha de fantasma sem forma, perdi a respiração por um tempo e os olhos encheram de água. Ivan perguntou se estava tudo bem. Eu, que não tinha tido medo de mangue, de louco, de bicho, de sol nem de naufrágio, fui frágil diante do Rei. Quem não é frágil diante do Rei? Mais dois minutos de silêncio com os olhos arregalados pedindo que tudo entrasse pelas pupilas e Ivan perguntou: “Você está vendo isso?” “O quê?”, perguntei eu, já acreditando que poderia, então, naturalmente ver o tal touro com estrela na testa de que eles tanto nos falaram.
– A dobra do mar.
Por mais absurdo que isso soe, estávamos eu e Ivan diante de uma parede d’água. Estávamos secos, mas a linha do horizonte estava acima de nós mesmos; a duna descia até embaixo do mar, e o local onde estávamos, sentados na coluna da duna, era para ser embaixo d’água. Estávamos diante de uma parede de água! Aquilo era muito mais absurdo do que um touro com estrela na testa. E era tão real que não havia mais medo.
Depois de um tempo, andamos para trás com calma e lembramos que Renata nos dissera para rezar para o Rei Sebastião. No topo da duna, o vento voltara com toda a sua força. Ajoelhamo-nos. Vimos, ao longe, a luz do farol piscar pela primeira vez. Perguntei se Ivan gostaria de falar alto. Ele disse que não conseguiria. Eu tomei a palavra. Quando pensamos que já havíamos vivido de tudo, assim que eu comecei a agradecer, a areia da duna começou a subir, verticalmente, do chão para o céu, arrastando em nossos rostos, grudando em nossos céus da boca. Disse estar grato por termos chegado com segurança, por ele ter se manifestado para nós, por termos vivido esses dias na ilha em alegria. Pedi que nos levasse de volta em segurança até o porto de Apicum Açu. Disse que o reconhecia como soberano daquela ilha.
– E vida longa ao Rei!
Voltamos sem falar uma palavra. Os cachorros latiam para nós, a lua enorme mostrava o caminho e as aranhas que por ele andavam. Mais uma madrugada de ventania. Hoje de manhã, caminhando pela praia, nos preparando para entrar nesse barco para a volta, encontrei uma concha de ouro. Se isso tivesse acontecido no primeiro dia, teríamos achado muito impressionante. Nesse último dia, depois da noite passada, achamos natural. Diz a lenda que quem leva algo da Ilha dos Lençóis naufraga. Não tivemos dúvida do que fazer.
Há alguns anos, um professor da UFRJ chamado Claudicélio Rodrigues da Silva decidiu fazer sua tese de doutorado sobre como a figura do Rei Sebastião na poesia oral local nutre imaginários por essas ilhas. Realizou um trabalho lindíssimo e conseguiu até mesmo construir, nessa ilha a 13 horas de São Luis, o “Memorial Dom Sebastião”. Fomos visitar o memorial nessa manhã antes de entrar no barco. Para nossa surpresa, uma biblioteca bem-montada é o primeiro cômodo da casinha vermelha. Não é à toa que Nango tinha um exemplar de A metamorfose na estante de casa. O povo da ilha tem mesmo o hábito de ler. Atravessando uma cortina de contas e conchas, chegamos a outra sala na qual fomos recebidos por uma estátua de mais de um metro e vinte centímetros de altura de São Sebastião. Sem as flechas. Aos seus pés, um alguidar (vasilha de barro redonda, utilizada comumente em ritos de religiões afro-brasileiras) onde os moradores da ilha colocam os talheres, joias e correntes de ouro encontradas na ilha. Eis o destino certo de nossa concha.
Eu e Ivan paramos um tempo com o olhar fixo nas dunas e no tanto de areia levantada. Eu disse que se o Rei Sebastião sumiu em uma névoa, poderia facilmente reaparecer numa tempestade de areia. Ivan, então, lembrou que Alcácer-Quibir é uma região seca do Marrocos e que neblinas só acontecem em lugares úmidos e frios. Desde sempre, Dom Sebastião havia sumido numa nuvem de areia. E Portugal esperando uma névoa.
Enquanto nos despedíamos de Laílson e Maneco, várias pessoas vieram pedir carona no barco onde comecei a escrever esse texto. Agora, já saímos da embarcação, já andamos seis horas de carro e duas horas de ferryboat. Já estamos quase chegando no aeroporto. É claro que a viagem foi cansativa, mas, por algum motivo, foi menos cansativa do que a ida. Eu e Ivan trocamos poucas palavras durante quase todo o trajeto.
Quando sentamos lado a lado no ferryboat, começamos a conversar. Nesses dois dedos de prosa, percebemos que, como imaginamos, a viagem à Ilha dos Lençóis seria transformadora para a produção de Grilo. Com todo o vivido, ficou claro para nós dois que, mais do que um interessado em documentos e fotos de acervo, Ivan age como um grande contador de histórias. Antes, por vezes, Ivan se lançou sobre arquivos institucionais e domésticos para criar comentários e próprias versões sobre o objeto pesquisado com o uso da apropriação e da não exibição das imagens selecionadas. Agora, Ivan se debruça sobre o mundo, sobre o que vive, para então, se apropriando do que é vida e, por definição, inexibível, elaborar seus comentários e tecer suas versões. Já estou no Aeroporto de São Luis e percebo que esse texto é minha forma de contar o que vivemos nessa viagem e o que a Ilha dos Lençóis foi para nós. A exposição “Sentimo-nos cegos” é, sobretudo, a forma de Ivan Grilo.
“O que não é mais”
por Daniela Name
Há uma costura sutil e perturbadora no Quase-acervo de Ivan Grilo. Além da relação direta de apropriação que o artista realiza com fotografias e outras peças da coleção do Museu da República, camadas de história e memória do Rio de Janeiro se insinuam pelas beiradas deste conjunto de trabalhos. Eles marcam um momento de sedimentações e amadurecimentos, mas também de novos caminhos no percurso de Grilo.
Nada poderia ser mais emblemático, para um artista que desde sempre trabalhou com a apropriação de fotografias alheias, do que o enfrentamento de dois fundadores do patrimônio imagético de uma cidade. Quase-acervo foi viabilizada com um prêmio que leva o nome de Marc Ferrez, fotógrafo documentarista que deu forma ao momento em que o Rio de Janeiro se transforma e se sonha como cidade. Com este apoio, Grilo pinçou, no Museu da República, uma série de fotos de outro pioneiro, Augusto Malta , contemporâneo de Ferrez que é menos estudado, mas não menos importante para a construção de um olhar sobre o processo de urbanização carioca.
Algumas das fotos de Malta escolhidas para este livro – e para a mostra homônima, na Galeria do Lago, no Museu da República – documentam a Exposição Nacional de 1908. O evento comemorou, no bairro carioca da Urca, o primeiro centenário do Decreto da Abertura dos Portos às Nações Amigas, assinado em 1808 por dom João VI, depois de sua chegada ao Rio. A vinda da família real portuguesa para o Brasil, como fugitiva de uma possível invasão napoleônica, elevou o Rio à condição de primeira – e única –sede de um império ocidental fora do continente europeu. O exílio dos Bragança trouxe para o Rio parte de seu patrimônio material e muito de seu enfeixamento simbólico como Coroa. A sede do império lusitano passaria ser aquela ainda acanhada e mal ajambrada cidade portuária, com seus prédios baixos pintados de cal e sua população mestiça, formada predominantemente por escravos e portugueses degredados. Mas era ali, com a assinatura daquele decreto, que a antiga colônia passava a ostentar o título de Reino Unido a Portugal e Algarve. Ganhava alguma autonomia, mas não o suficiente para se desgarrar da subordinação. Tinha um príncipe-regente despachando por aqui, mas não envergadura para competir com nações independentes já estabelecidas, caso da Inglaterra. É como se o Rio passasse a ser o lugar de um quase-reino, com quase-independência e quase-poderes.
O mergulho de Grilo no olhar de Augusto Malta sobre esta quase-cidade não se dá ao acaso: ao recuperar a memória desta arquitetura efêmera da Urca, o artista desnuda parte da construção do Rio no imaginário do Brasil e do mundo. Ao registrar a Exposição de 1908, Malta documenta um acontecimento que modificou a paisagem carioca por três meses. Montar estas cidades temporárias e cenográficas, cheias de palácios com referências a diferentes culturas, se tornou uma febre na virada do século XIX para o início do século XX. O Rio ainda veria outra grande exposição em 1922, na celebração dos 100 anos da Independência . O gosto por esta celebração teatral em lugares públicos começa a se enraizar no século anterior, graças a um personagem importantíssimo na história da arte brasileira: Jean-Baptiste Debret, ponta-de-lança da Missão Francesa que chega ao Brasil em 1816.
Pintor oficial e espécie de conselheiro artístico de dom João e, mais tarde, de dom Pedro I, Debret fazia grandes festas no Centro do Rio, sobretudo no Terreiro do Paço, usando estas arquiteturas temporárias. Se por um lado o artista foi o grande cronista deste início do século XIX, foi também um precursor de nossos carnavalescos, organizando este gosto pela festa e dando forma ao espetáculo. Antes da chegada dos franceses, o Rio já tinha um pendor para certo vaudeville com que marcava os acontecimentos relevantes nas suas principais ruas e praças. Debret registra, em litografias e anotações, uma cidade que passa meses cheirando a incenso para se despedir de dona Maria I, a Louca, cobrindo sua paisagem com panos negros e alegorias feitas de anjos e caveiras depois da morte da soberana.
O Rio também faria uma “maquiagem cenográfica” no Cais do Valongo, então um porto de desembarque de escravos, para transformá-lo em Cais da Imperatriz, recebendo assim a princesa Leopoldina, que chegaria para se casar com dom Pedro . Em 1817, um ancoradouro foi erguido em cima do outro e a região portuária recebeu ainda adornos e grandes arcos de papel. Os enfeites cobriam toda a extensão da Rua Direita (hoje Primeiro de Março), ligação entre o cais e o Paço Imperial. No ano seguinte, Debret faria seu grande espetáculo: a festa para a sagração de Pedro I, em que criou um arco à moda do Arco do Triunfo e monumentos com referências egípcias, gregas e romanas para o Terreiro do Paço.
Com Debret, esta quase-cidade festeira, feita de papel e tinta, cobria de imaginação e de desejos a cidade que o Rio ainda era. Uma camada de projeção, de sonhos e de significado, que era retirada no fim da celebração. Com uma carga semelhante à de uma Quarta-feira de Cinzas, a festa efêmera destacava então a cidade cotidiana, com suas contradições e precariedades. O carnaval como uma catarse anestésica e ao mesmo tempo lente de aumento da vida real.
Grilo pousa um véu de novos significados sobre o acervo do Museu da República e a fotografia de Malta, cronista que não deixa de ser um herdeiro de Debret. Quase-acervo revisita ainda um retrato de Pereira Passos, prefeito que botou um certo Rio abaixo, para construir outro, e que foi responsável pela contratação de Malta como fotógrafo oficial do Distrito Federal. Exposição e livro fazem parte de um projeto que também fala, a seu modo, de uma projeção de cidade imaginária e imaginada, em um período riquíssimo da história do Rio. Malta registra uma cidade fugidia, construída pelo desejo de ostentação de modernidade e cosmopolitismo. Os pavilhões foram erguidos para exposições em que mais uma vez a cidade abriu seus portos “às nações amigas”, almejando que sua quase-modernidade atingisse, quem sabe, um ponto mais conclusivo. Marcada pela festa e pelo olhar do outro, a cidade do Rio foi a segunda cidade mais fotografada entre o fim do século XIX e os primeiros anos do século seguinte, perdendo apenas para Paris.
Susan Sontag aponta para o fato de a fotografia dar às pessoas uma possessão ilusória do passado. Investido desta falsa posse, aquele que olha para a imagem pode dar a um determinado acontecimento “um tipo de imortalidade (e de relevância)” que ele não teve no momento em que de fato ocorreu.
Grilo se debruça sobre esta cidade desparecida, que não é mais. No trabalho Estudo para álbum, sobrepõe às imagens de Malta uma cobertura de acrílico desenhada com elementos decorativos presentes em antigos álbuns do Museu da República. É como um moxarabi, elemento da arquitetura árabe tão usado no Rio daquele período, que amplia a comunicação entre o lado de dentro e o lado de fora, sem no entanto revelar plenamente um para o outro. Ou como um véu, o que relaciona este trabalho diretamente com Entre névoa, outra série recente do artista. Além da sobreposição com estas padronagens/ornamentos, trechos de livros dos escritores portugueses Valter Hugo Mãe e José Saramago sobre a cegueira e o luto – em última instância, sobre a dificuldade que temos para esquecer aquilo que amamos, aquilo que importa – formam uma espécie de antimortalha sobre as imagens. O tecido que cobre esta cidade morta dá a ela novo ânimo, como um espasmo de vida se apossando de um cadáver. Exatamente como faz o fotógrafo com tudo aquilo que fotografa.
Roland Barthes nos mostra que esta sobrevida da imagem não se dá de forma plena: não é possível ressuscitar o passado “de fato”, mas o que a fotografia faz – e o trabalho de Grilo também – é trazê-lo à tona como um fantasma, que destaca não a si próprio, mas aquilo que não vemos. O escritor defende ainda que as “fotos são signos que não prosperaram bem, que coalham, como o leite”.
Este verbo, “coalhar”, não deixa de ser interessante para falar da obra de Grilo. Mais do que abordar o binômio memória e esquecimento, antítese quase incontornável para quem trabalha como fotografia, o artista vem se dedicando aos estados de condensação e de precipitação deste lembrar/esquecer. Mostra também como a dificuldade para ver uma imagem de forma plena – ou recordar um fato vivido – destaca sua importância, reforçando ainda as noções de passado e patrimônio como discursos construídos individual ou coletivamente.
Não é de hoje que Grilo interpõe, entre os acervos dos quais se apropria e o olhar de quem os observa, determinados planos de vedação/coagulação. Em Entre névoa, fotografias de paisagem quase desaparecem quando semicobertas por um vidro jateado. Em Neblina, o vidro opaco também impede a apreensão das imagens. Há um entrever, como na memória. Apenas um indício e uma possibilidade de descrição, como hoje sabemos que ocorre na História. Belida é outro conjunto de trabalhos em que isso ganha muita ênfase: panoramas são cobertos por placas de acrílico, em um arranjo que lembra janelas deslizando sobre a paisagem. A insinuação de uma janela é um dado interessante no lidar de Grilo, sempre interessado na fotografia, com a paisagem, uma das matérias primeiras da pintura e da história da arte. Janelas estabelecem ou interrompem a comunicação entre dois planos, mas também impedem que o excesso de luz cegue quem olha através dela. Sim, este é outro ponto fundamental. Grilo nos mostra que tornar uma imagem ausente, latente, é reconhecer e ampliar sua potência.
Este acúmulo quase vaporoso que recobre a imagem também é feito de outras linguagens. Grilo lança mão da literatura e dos dicionários para tecer significados e plasmar visualidade sem o uso de recursos visuais. A palavra também é coágulo e, como a fotografia, é fantasma que vem de um mundo que os olhos não conseguem ver. Mais importante do que o espectro do pai de Hamlet é a mensagem que ele traz: há algo de podre no Reino da Dinamarca. Mais relevante do que o acervo apropriado – e velado – ou as palavras escolhidas são os caminhos para onde eles levam nossa imaginação. Mais significativo que uma foto é o feixe de relações que ela pode esconder/revelar.
Impossível falar de fantasmas e não lembrar os “bustos” feitos com verniz nas paredes do Museu da República. Grilo se apropriou dos retratos de personalidades do Rio e do Palácio do Catete, todas importantes para o período histórico e o processo criativo de Quase acervo. Além de Augusto Malta, Marc Ferrez e Pereira Passos, estão no trabalho Afonso Penna, presidente da República em 1908, ano da Exposição na Urca; o ex-governador fluminense Nilo Peçanha e o presidente Juscelino Kubitscheck, este último o derradeiro ocupante do Catete como sede do governo, antes de ele virar museu. Fotos da mudança do Palácio rumo a Brasília também levam o espaço da exposição para um tempo que não é mais.
Ao trazer seu panteão para a abertura da mostra, Grilo enfatiza a importância de cada um destes “notáveis” ao fazer com que quase não sejam notados. Estas celebridades no limiar do invisível também são quase: transparentes sobre a parede branca, elas precisam de um golpe de luz para ganhar vida. São como fotografias se revelando aos olhos do público. Ou como o fantasma de um Rio que não é mais, plasmado em lampejos pela química dos afetos e da memória.
Vídeo feito pela Matrioska Filmes com exclusividade para o PIPA 2014:
Vídeo feito pela Matrioska Filmes com exclusividade para o PIPA 2012:
Posts relacionados
- Coletiva "Dialetos do Firmamento" reúne obras de artistas que abordam diferentes cosmovisões e mundos inventados
- Conheça o evento digital de arte "not cancelled Brazil"
- Veja o vídeo "Nós sempre estivemos em chamas" (2019), de Ivan Grilo
- "Aqui estou, estamos", a nova individual de Ivan Grilo com obras inéditas
- "Romance", a coletiva que reúne obras de 31 artistas
- Lançamento do livro "Terral", de Ivan Grilo, no último dia de “Amanhã, logo à primeira luz”
- Últimas semanas de “Horizonte - A Paisagem nas Coleções MAM”
- Galeria abre primeira exposição do ano com obras de quatro artistas PIPA
- Últimas semanas para conferir exposição de Ivan Grilo
- “Quem não luta tá morto” debate direito à habitação, violência urbana, feminicídio, racismo e questões de gênero
Videos relacionados
- Mais vídeo-entrevistas com os artistas indicados ao Prêmio PIPA 2017
- Ivan Grilo | Artista indicado 2014
- Ivan Grilo | Artista indicado 2012