(ultima atualização em julho/2018)
Vive e trabalha em Porto Alegre, RS.
Membro do Comitê de Indicação PIPA 2017 e 2018.
Pesquisador, crítico de arte e curador independente. Doutorando em História, Teoria e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio de doutoramento sanduíche na Universidade Nova de Lisboa (UNL). Entre 2012 e 2016, foi editor e crítico de arte do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS). Em 2016, ganhou a 1ª menção honorífica no Incentive Prize for Young Critics, concedido pela International Association of Art Critics (AICA). É membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Associação Brasileira de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Uma exposição coletiva é um lugar de encontro, ainda que temporário, e por isto mesmo também um lugar de passagem. O que é próprio a cada obra é lançado à multiplicidade dos significados fornecidos pelo que parte, justamente, de cada obra. Ao fim, é como se, frente ao conjunto, um confronto se estabelecesse não somente entre as obras, mas também consigo mesmas, em um movimento no qual acabam sendo devolvidas àquilo que nelas se afirma como particular. Assim, uma mostra coletiva tende sempre a oferecer um tensionamento entre universos poéticos autônomos ora colocados em causa e relação. Com sorte, é dada a chance de perceber afinidades e inter-relações não previstas nem intencionadas, mesmo que provisórias e circunstanciadas pela exposição. Talvez resida aí uma das forças desse dispositivo de apresentação de obras a que ainda chamamos de exposição: a possibilidade de gerar situações temporárias que renovam nossa sensibilidade e ampliam nossa compreensão da experiência advinda do encontro com as práticas, as estratégias e as operações da produção artística visual. É também a partir dessa possibilidade que um lugar de encontro e passagem pode passar a um espaço de compartilhamentos, no sentido próximo ao formulado por Michel de Certeau. Em seu livro “A invenção do cotidiano — artes do fazer” (Editora Vozes, 1998), há um capítulo, intitulado “Relatos de espaço”, em que trata de formular uma distinção entre lugar e espaço. O lugar, afirma Certeau, seria da ordem do “próprio”, no qual “se acha excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar” (p. 202). O espaço, ao contrário, nada teria a ver com estabilidade de posições unas, sendo cruzamento daquilo que transita, “animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram” (p. 202). Em suma, Certeau sentencia: “o espaço é um lugar praticado” (p. 202). “O lugar enquanto espaço” é uma mostra coletiva que intenta compartilhar um pensamento que se faz espacial à medida que se pratica o lugar de exposição. Praticar em duplo-sentido: na colaboração entre artistas e este crítico — ora curador — na concepção da visualidade que se quer dar a ver; mas também pela experiência do espectador que adentra esse campo de sentidos e o percorre conforme seus parâmetros de acesso e navegação. Se há uma rota, funciona apenas como sugestão, podendo começar pela sala à entrada da galeria. Nela, Túlio Pinto apresenta duas esculturas que se interligam ao lidar com os equilíbrios, os pesos, as densidades e as forças dos sistemas instalativos que as configuram. Reunidas, “Athar # 4” (2018) e “Retângulo # 3” (2018) estabelecem um ambiente instalativo não restrito à materialidade dos objetos, mas articulado à maneira como mobilizam forças invisíveis contidas no espaço para com elas manterem-se estáveis. Em um texto que acompanha um livro sobre Túlio Pinto ainda em preparação, escrevi algo que me parece sintetizar a produção do artista: “Lidando com a tensão levada aos limites, suas peças e conjuntos escultóricos instauram situações que convocam que os habitemos, ainda que temporariamente, fazendo-nos experimentar nossos próprios corpos como presença matérica no mundo das coisas. Mas também irradiam um sedutor apelo à visão, por conta da clareza, da concisão e da harmonia que emanam dos objetos, dos arranjos e das construções”. Desta sala passa-se a outra, aos fundos da galeria, onde estão os trabalhos de Frantz. Ao abordar a pintura, seja como prática ou conceito, o artista opera com sua produção uma série de embaralhamentos que incidem sobre uma reconfiguração do olhar. Frantz encaminha uma abordagem conceitual com a qual desloca o pictórico para o objetual, investigando a materialidade da pintura a partir de jogos entre falso e verdadeiro, ausência e presença, original e apropriação. Seus objetos reunidos na sala consistem em resíduos de tinta acrílica acumulados em potes e bacias que funcionam como moldes, enquanto seus trabalhos na parede são gestos que remetem a esses mesmos objetos como se fossem carimbos a deixar rastros e escorrimentos de tinta sobre a superfície. Saindo à área externa da galeria, encontramos o contêiner de exposições, que recebe obras de outros 7 artistas. No chão, ao centro, o duo Ío (Laura Cattani e Munir Klamt) mostra “Demônio pessoal IV” (2018). Trata-se de uma escultura dotada de um mecanismo de armadilha, diante da qual se manifesta invariável apreensão. Seja pela sedução visual ou pela forte tensão, há aqui um diálogo com os trabalhos de Túlio Pinto, particularizado pelo fato de o sistema da armadilha estar armado com seus vidros em pontas. Uma sedução visual também se rebate no trabalho de Bruno Borne, com particularidades que apontam para o questionamento do real e do virtual. “Lemniscata #3” (2018) é uma imagem que se relaciona à produção que o artista realiza em vídeo e animação gráfica. São trabalhos em que faz convergir imagens de arquiteturas que se hibridizam gerando novas e reinventadas arquiteturas, que, por sua vez, também recriam tanto o próprio espaço que origina o trabalho como aquele onde é apresentado. Outro jogo de aparências, desta vez entre acaso e manipulação, aparece no trabalho de Guilherme Dable. No vídeo “O domador” (2015), uma grande folha de papel mantém-se flanando verticalmente ao lidar com forças laterais que funcionam como contrapesos e mesmo sustentação gravitacional. Aqui, a leveza e a suavidade se aproximam da obra de Bruno Borne, ao mesmo tempo contrapondo-se à tensão física que emana dos trabalhos de Túlio Pinto e do duo Ío. O emprego de estratégias conceituais aproxima as obras de dois artistas. Em “Memorial de um pé-de-pera” (2017), Lilian Maus parte de uma vivência íntima: o sítio da família em Osório (RS), onde um dia encontrou ceifada a árvore referida no título. Surpresa com o acontecido, a artista sentou diante da cena e ali mesmo fez uma aquarela dos tocos empilhados e escorados na mangueira. Ao lado dessa pintura, apresenta o primeiro documento legal do terreno, de 1909, quando foram registradas as condições de total devastação das terras hoje recobertas por mata secundária e nativa. Integra ainda a obra um dos tocos. Já Diego Passos apresenta “Corpo” (2017), um de seus trabalhos realizados segundo estratégias de apropriação e autopublicação, com as quais lança mão de cartazes, livretos, panfletos e camisetas. Outro trabalho do artista na exposição é “Cachoeira” (2010), cujo emprego de texto na composição junto à imagem fotográfica relaciona-se a uma vertente de sua produção. Por fim, novamente a pintura. Letícia Lopes apresenta trabalhos recentes de uma série em que explora as camadas da tinta a óleo, valendo-se de procedimentos de apropriação, colagem e sobreposição que remetem a estratégias conceituais realizadas com imagens já prontas e em circulação. Mas nessas obras a artista embaralha códigos entre o que resultaria da mão ou o que seria apropriação dos meios impressos, entre prática e conceito, no que estabelece um diálogo com as obras de Frantz. Em meio às distintas poéticas e abordagens artísticas reunidas nesta exposição, pode-se ficar tentado a encontrar como imediata uma correspondência em comum — Porto Alegre, a capital gaúcha. De fato, os 9 artistas desta exposição têm como procedência o mesmo meio artístico. Contudo, esse dado pouco define suas obras. Melhor é compreendê-lo como uma coordenada entre momento e lugar que informa mais sobre onde se deu o encontro e a partilha entre os seus afetos, e também a partir de onde passam a se cruzar ao longo de suas trajetórias individuais, como é o caso da circunstância oferecida por esta coletiva. “∆ORIST∆ – Andressa Cantergiani” Uma performance é sempre uma ação, o desencadear de um acontecimento, a criação de uma circunstância. É, portanto, uma manifestação artística que se dá em um tempo próprio, muitas vezes formulando ela mesma o seu tempo de ocorrência. No limite, a performance corresponde à sua própria duração, ao momento que a presentifica. Uma vez realizada, fica então como algo que já foi. Mas como se relacionar com fotografias, vídeos e outros trabalhos resultantes de performances já ocorridas ou que delas se desdobram em ações posteriores dxs artistas? São apenas registros ou parte integrante da obra? Antes, há como precisar a diferença entre o que possa ser documental ou encenado? Aliás, é de fato operativa essa distinção? Não seria mais relevante investigar se e como essas imagens, sons e objetos prolongam a temporalidade das performances, em alguns casos tendendo à espacialização e à formalização visual? São essas algumas das questões que animam o pensamento curatorial desta exposição individual na Galeria Ecarta, dedicada aos trabalhos realizados por Andressa Cantergiani (Caxias do Sul, 1980) no campo da performance em anos recentes, em diferentes lugares do mundo. A partir de uma abordagem transdisciplinar e multimeios, a artista entrecruza posicionamentos políticos pelo viés do feminismo com ações poéticas que tomam o corpo enquanto território de experimentação. Seus trabalhos se originam como resposta e mesmo reação diante de questões do campo social e político que a mobilizam. Machismo, patriarcado, condição da mulher, assédios, golpe, gentrificação, transformações urbanas, relação com o espaço público e sociedade do controle são algumas das pautas que compõem sua agenda, sempre a partir do reconhecimento da posição a partir de onde fala, bem como de seus papéis — mulher, branca, classe média, mãe, artista e gestora cultural. *** Mas como então organizar uma exposição baseada em práticas artísticas como as de Andressa Cantergiani, que se dão ao vivo, diante e no contato com o público, deixando posteriormente fotografias, vídeos e objetos? Na performance artística, o documento ocupa um lugar privilegiado no campo de sentidos da obra, muitas vezes como parte constituinte e não apenas mero registro. Privilegiado e, portanto, problemático também. Primeiro, porque há o regime que tenta fazer distinção entre o que é documental ou dirigido. Em um, teríamos o registro de uma ação real que aconteceu e foi capturada em imagens e/ou sons. Em outro, o registro de uma ação orientada para ser capturada em imagens e/ou sons. A diferença pode inicialmente nos tranquilizar diante de trabalhos em performance como os de Andressa Cantergiani. Todavia, pouco se sustenta diante da invenção de realidades que é própria ao estatuto da fotografia e do filme, bem como dos modos com que xs artistas embaralham os códigos do que seja real ou dirigido, destituindo por meio de suas ações a rigidez de tais convenções. Ao fim, é como se as diferenças entre o documental e o dirigido fossem pouco relevantes. Segundo, porque há a materialidade da arte, que já há muito deixou de ser uma condição ou prerrogativa para a apresentação de uma obra — e até de sua existência enquanto tal. Em performance, é fundamental o ato, o seu durante, e a consequente conexão de envolvimento que se estabelece entre artista e aqueles que se fazem presentes. Todavia, é inegável que o caráter imaterial de que a arte dispõe tem delegado à sua documentação, em especial nas manifestações performativas, a tarefa de referir algo que não está mais por já ter ocorrido antes. Assim, se por um lado a documentação “evoca a irrepetibilidade do tempo da vida” (p. 78), como afirma Boris Groys¹, por outro tende a materializar a presença de uma ausência. Pode-se objetar essa compreensão, apontando nela uma fetichização de estratégias e operações artísticas cuja potência é intrínseca ao seu dado de acontecimento, do aqui e agora. Contudo, há algo mais profundo a ser analisado. A documentação de trabalhos de performance não corresponde somente ao registro de uma ação passada que ocorreu em dado momento e local. Também não corresponde somente ao intuito de ampliar o acesso a trabalhos a que apenas tiveram chance de experenciar aqueles que factualmente estavam presentes. O interesse pela documentação corresponde a transformações mais amplas, nas quais a arte opera, como afirma Groys, na “formação de um tempo de vida artificialmente moldado” (p. 77). Sendo a realidade sempre uma construção, e a arte a operação que intervém nesse dado real artificializando-o, “tempo, duração e, portanto, vida não podem também ser apresentados diretamente, mas apenas documentados” (p. 77). Nesse sentido, de que o real construído é sempre algo também mediado, “a documentação da arte é (…) a arte de fazer coisas vivas a partir das artificiais” (p. 78). Uma vez que esse tempo de vida é produzido e coordenado pelas operações dxs artistas, qualquer decisão e escolha é sempre resultado de posicionamentos, convertendo-se em ato e gesto político. *** Nos trabalhos de Andressa Cantergiani, nem sempre é fácil determinar que fotografias, vídeos e outros registros de performances constituam apenas documentação da obra ou, ao contrário, que sejam ações dirigidas para a câmera. Referem-se sempre a ações já ocorridas, mas também registram essas ações como se as mesmas fossem realizadas para o dispositivo fotográfico ou fílmico. Em outras palavras, pensadas para terem o seu depois. Essa instigante indistinção ganha força frente ao conjunto de obras reunidas nesta mostra, ora em diálogos ora em confrontos, oferecendo um inegável sentido de prolongamento da temporalidade das performances originárias. A partir daqui, pode-se melhor compreender o pensamento curatorial que se dirige à produção de Andressa Cantergiani como uma possibilidade de entrada e leitura. Com a exposição, procura-se explorar modos e estratégias de apresentação e ativação de trabalhos performativos que tiveram seu acontecimento em outro tempo e lugar. A expografia mobiliza documentação de performances já realizadas pela artista juntamente a trabalhos que são desdobramentos das ações, articulando-os no espaço expositivo menos como reencenação de obras e mais como pontuação de rastros, vestígios, resíduos e materialidades que ensaiam a sua própria performatividade. É uma ideia próxima à proposta por Philip Auslander², quando diz que a documentação de arte guarda uma performatividade em si. Isso conduz à principal questão suscitada ao longo da pesquisa curatorial desenvolvida junto à artista para esta exposição: a de que a documentação não só se reenvia à situação originária da performance, como também parte dela em condições de oferecer uma temporalidade estendida. Em outras palavras, o documento pode encontrar uma performatividade habilitada a performar a própria performance, prolongando sua duração nos termos de uma operação que intervém artificialmente no dado real, no sentido conforme argumentado acima. Como diz Auslander: “Não se trata de ver o documento como sendo um ponto de acesso indexical para um evento passado, mas de perceber o documento em si como uma performance que reflete diretamente a sensibilidade ou o projeto estético de um artista e para os quais somos o público presente” (p. 14). Para explorar tal miríade de questões em torno da performance e sua documentação, a curadoria mobiliza como mote conceitual a noção de “aoristo”, um tempo verbal remoto, existente em línguas como o grego e o sânscrito, que se refere a um passado indefinido e indeterminado. Ao emprestar o sentido de uma ação ou um acontecimento sem que se defina e precise o seu tempo de ocorrência e duração, a expressão — rebatizada nesta individual para “∆ORIST∆” — é tomada como modo de oferecer uma experiência expositiva a partir de práticas performativas, com interesse no que há entre o seu acontecimento pretérito e sua presentificação na circunstância de exposição. ¹ Boris Groys, “A arte na era da biopolítica — da obra de arte à documentação de arte”. In.: “Arte poder”. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 73-82.
“O lugar enquanto espaço”
Por Francisco Dalcol
[Texto curatorial de “O Lugar enquanto espaço”, coletiva exibida entre junho e julho de 2018 na Galeria Baró, São Paulo, SP]
Por Francisco Dalcol
[Texto curatorial da individual de Andressa Cantergiani “∆ORIST∆”, exibida entre junho e julho de 2018 na Galeria Ecarta, Porto Alegre, RS]
São também apresentados trabalhos novos, que a artista desenvolveu por ocasião da mostra, todos eles vinculados a performances já realizadas. Em alguns deles, pronuncia-se certa tendência à materialização e à espacialização, seja pela criação de objetos tridimensionais ou pelo caráter instalativo das obras.
² Philip Auslander, “A performatividade da documentação de performance”. Revista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 7, nov. 2013.
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