(ultima atualização em abril/2023)
Rio de Janeiro, RJ, 1980.
Vive e trabalha entre Rio de Janeiro, Berlim e Lisboa.
Indicada ao PIPA em 2010, 2011 e 2012.
Finalista do PIPA 2016.
Obras na coleção do Instituto PIPA
Site: www.luizabaldan.com
Luiza Baldan é doutora e mestre em Linguagens Visuais pela UFRJ (Rio de Janeiro, RJ) e bacharel em Artes Visuais pela Florida International University (Miami, EUA). A artista investiga dinâmicas urbanas que se estabelecem entre o homem e a arquitetura, a memória e a cidade. Suas imagens e textos resultam da inter-relação com o entorno, numa espécie de performance dilatada pelos lugares onde reside e por onde passa. A imersão é parte fundamental da pesquisa, como ocorre nas residências e nos projetos de longa duração envolvendo viagens e deslocamentos periódicos a locais revisitados.
Alguma das individuais são “Estofo”, Galeria Anita Schwartz (Rio, 2017); “Perabé”, Finalista Prêmio PIPA (MAM Rio, 2016) e Centro Cultural São Paulo (SP, 2015); “Build Up”, MdM Gallery, (Paris, 2014); “Índice”, MAM (RJ, 2013). Algumas coletivas: 17° Mostra Internazionale di Architettura, Participazioni Nazionali (Brasile), La Bienalle di Venezia (2021); BF20 – Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, Portugal (2021); “Casa Carioca”, MAR (Rio, 2020); “Mulheres na Coleção MAR”, MAR (Rio, 2018); “Cruzamentos: Contemporary Art in Brazil”, The Wexner Center for the Arts (Columbus, EUA, 2014); “Lugar Nenhum”, Instituto Moreira Salles (RJ, 2013). Alguns prêmios: Viva Arte! (SMC RJ, 2015); XI Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Funarte (2010).
Desenvolveu o projeto “Monumentalidade como Coletividade” para a publicação “O MASP de Lina: 50 anos do edifício na Avenida Paulista” (2018) e participou do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP (2016). Publicou os livros “Derivadores” (com Jonas Arrabal) em 2016 e “São Casas” em 2012.
Vídeo produzido pela Matrioska Filmes, exclusivamente para o PIPA 2016 e 2011:
“Suave”, 2012, duração: 11’52”
“]
“Petricor”, 2011, duração: 04’55”
“De murunduns e fronteiras”, 2010, duração: 04’12”
Albertine de Galbert, 2014
“Image is far more than a simple cross-section taken of the world of visible elements. It is a sought after imprint, a trail, a visual drag of time, but also of additional time— […] — that it cannot, as an art of memory, prevent forming there.”
“There are many things in fiction that are not uncanny that would be if they took place in real life, and in fiction, there are many ways of evoking uncanny effects that do not exist in life.”
Do aparelho de jantar que meus pais ganharam de presente de casamento, resta apenas uma tacinha de café no meu apartamento da rua Charlot. Ela parece menor a cada dia, como se os objetos da nossa infância fossem diminuindo conforme vamos envelhecendo. Não faço ideia de onde foram parar as outras do jogo, sem dúvida abandonadas em lugares que os membros da família já não habitam, dividindo o armário com canecas americanas, sobreviventes de um mercado de pulgas ou de uma lojinha de museu, sobras de histórias de amor ou de antigos roommates.
Parte submersa do nosso iceberg familiar, esses objetos são parte de uma sequência de imagens que é constantemente atualizada por novos objetos que nos arrebatam e por outros tantos que nos afeiçoamos involuntariamente. Como o copo de leite do filme Suspicion, de Hitchcock, certas imagens flutuam sobre nós e impregnam os ambientes. Independente da história real, se transformam em volumes, imagens-objetos ou imagens/tempo. São literalmente desproporcionais.
As imagens de Baldan são assim: imagens-objetos e imagens-tempo, parte de sequências de vestígios que a artista recolhe durante suas viagens e residências em diferentes partes do mundo.
Esta é a razão pela qual a convidei para passar um mês no meu apartamento que está prestes a ser vendido. Além dos meus, há traços de todos aqueles que viveram ali, sejam as visitas curtas ou os inquilinos duradouros. Quero que Baldan registre sua própria experiência antes que comece a do novo proprietário, modificando e se deixando modificar pelo lugar, representando o desfecho, a minha separação com a casa e a sua história.
O acaso – ou alguns podem chamar destino – fez com que este projeto se desenvolvesse não só na casa, mas em uma série de outros lugares. O furto de alguns pertences e equipamentos profissionais da artista no apartamento da rua Charlot no dia da sua chegada a Paris, a obrigou a se reposicionar e a trabalhar para além da violência da intrusão.
A exposição Build Up, apresentada na MdM Gallery, reúne obras articuladas em torno desta singular experiência de residência, em sua descontinuidade e deslocamentos. Algumas poucas fotografias anteriores também estão expostas, como a dos balões presos em galhos de árvore, que é a última imagem tirada em Nova York, um dia antes da viagem de Baldan a Paris.
Esta imagem foi ampliada e ocupa uma parede inteira da galeria, proporcionando uma abertura na abertura, ao longo da vitrine principal. Como tantas vezes na obra de Baldan, ela carrega uma ambiguidade: a perspectiva é interrompida pelos balões hipnotizantes que estão presos no ponto de fuga, impedindo a luz de escapar.
Alguma coisa aconteceu ou vai acontecer a qualquer momento, mas não sabemos quando ou como a ação se dará. O texto escrito pela artista passa em uma tela negra disposta no nível do chão, como se tivesse sido destacado das imagens penduras na parede. Não há distância suficiente para serem apreendidos juntos; as possíveis combinações são infinitas. O fio da narrativa foi cortado; o Estranho emerge.
Este efeito perturbador é acentuado pelas distorções de escala – uma árvore ou um prédio estão impressos no mesmo formato da foto da tacinha de café herdada dos meus pais –, mas também por composições com transparências e reflexos. Os contrastes fortes coexistem, colidindo entre e dentro das próprias imagens. Por exemplo, o piano da minha infância reflete uma porta aberta do armário da cozinha, como se o verniz preto fosse um testemunho tardio, uma Polaroid.
Esta acumulação díspar gradualmente permeia a sequência inteira, construindo uma tensão, como no cinema as trilhas sonoras chamadas build up mantêm o espectador em suspense até que as luzes se acendam e cada um retome o curso de suas vidas, sutilmente tomados por imagens e novas emoções.
Luiza Baldan, São Casas
Por Guilherme Bueno, em outubro de 2012
… e então o metrô para. Nesse instante alguém se vira e olha de passagem em direção à câmera. E mais outro, todos provavelmente alimentados pela curiosidade em saber o que ela fazia ali, o que pretendia registrar. Mas também ansiosos em, ao colocar-se fortuitamente na sua mira, passarem a pertencer àquele filme, sabendo que se um dia o vissem, reconhecer-se-iam ali espelhados, ingressando assim em um outro tempo; tornando-se parte do que talvez fosse uma das últimas possibilidades legítimas de monumento na modernidade – o cinema.
Essa descrição da cena final de um pequeno filme de 1905 feito no metrô de Nova York por Billy Bitzer ajuda- nos a pensar nos trabalhos de Luiza Baldan aqui apresentados. Se deixarmos de lado tanto diferenças substanciais (o deslumbre anterior com o ato de registro como gesto simultaneamente de perenidade e afirmação do presente) quanto contingentes (a presença humana no primeiro, contrastada com a eventual ausência de alguns trabalhos da artista), duas questões ressoam comuns: a vivência urbana patente e, sobretudo, o que se poderia chamar de um protagonismo da temporalidade da imagem. Explicando isso melhor, trata-se daquilo que parece inerente às imagens de estabelecer para si um tempo próprio, que, para usar um termo hoje de domínio (e lugar) comum, “congela” tudo: a luz, a paisagem, o mundo. Daí o sentimento ambíguo de imprecisão em seus trabalhos – a nitidez flagrante, ora deslumbrante visualmente, ora seca em sua austeridade formal, acentua nossa incapacidade de determinar o quando, onde, como e por quê normalmente exigidos de uma fotografia ou de um filme. Aqui, portanto, ousaria dizer que tanto faz se as fotos são desabitadas ou não, pois em todos os casos, o que se explicita é o limiar da autonomia da imagem.
Falar em autonomia da imagem diante de trabalhos que nos defrontam ao universo urbano soa, no mínimo, contraditório. Mas talvez seja este o ponto que nos leva a acentuar tal condição limiar. Afinal, por um lado, há, independente do tema abordado, uma espécie de “encenação”, melhor dizendo, de dissecação de todos os códigos componentes da imagem: o cálculo de um determinado gesto daquele (ou daquilo) que posa, oferecendo e repetindo um certo modo segundo o qual deseja ser registrado; a argúcia em perceber como a captação da luz, além de comentar a “atmosfera” de um lugar, preenche-lhe de volume e espaço. Por outro, o de nos deixar claro que, se tudo pode parecer igual, se todo lugar ou todo tema se igualam, isto só se dá até certo ponto, pois mesmo emoldurados em várias constantes e até pasteurizações detectadas pela artista, todos almejam uma singularidade, ou, se quisermos, uma identidade. Ademais, torna-se impossível permanecermos indiferentes a estes lugares supostamente indeterminados que, na verdade, são onde vivemos e convivemos, apercebamo-nos disso ou não. Quando deparamos com suas videoinstalações, a alternância entre autonomia plena e “encenação” acentuam a fluência da linha divisória que as separa apenas circunstancialmente. Afinal de contas, a ideia mesma de encenação implica a presença de alguém que seja o destinatário dela. O espectador habita as imagens (o espectador como um “ator involuntário”), que por sua vez, também se auto-encenam onde elas se projetam. Em outras palavras, ela conferem uma outra identidade, mesmo que provisória, fundam um lugar efêmero, transpõem-se de um local (de origem) para outro (a sala onde são exibidas), instituindo neste último uma outra configuração para além daquela original. Espaço – categoria abstrata – é transformada em lugar, ou seja, dotado de uma significação.
Para finalizar a questão da temporalidade da imagem, volto a comparação do filme de 1905 com uma das várias fotos feitas pela artista no Conjunto do Pedregulho em 2009. Na cena final do metrô, em meio a suposta indiferença dos “personagens”, quando percebida a câmera, alguns se corrigem ou controlam suas atitudes, pois sentem o quanto lhes custaria ser condenados a eternidade de forma inapropriada. Nas fotos do Pedregulho, o fotografado calcula seu gesto, escolhe a roupa que melhor lhe corresponde, melhor lhe traduz, assim como os objetos de que se circunda. Para além da lógica do retrato, com sua tarefa de querer dizer de quem se trata e como ele pretende ser visto, coloca-se na imagem tudo o que o tempo poderia devorar, mas que sentiria salvaguardado sob o manto protetor da imagem. Antecipando-se a uma futura arqueologia do século XXI, entende-se aquela imagem como um statement para a posteridade e um antídoto à amnésia. Arcádia de bites.
Carandiru, 2009–2013
Por Luiza Baldan
É raro associar Carandiru a qualquer outro lugar que não à penitenciária em São Paulo. Neste ano de 2009, pouco se sabe e pouco se vê do Carandiru carioca, um terreno construído pela RFFSA, ligado diretamente à Estação da Leopoldina, que hoje abriga alguns barracões de escola de samba. Localizado próximo à Rodoviária Novo Rio, o complexo passa despercebido pela maioria dos que circulam por ali.
Na entrada principal, pessoas tomam Coca-Cola e jogam dominó em meio a carrinhos de comida estacionados. O mato alto cobre a linha férrea e é preciso andar um pouco para achar os barracões. O primeiro que identifico é uma nave sem cobertura. É a estrutura restante de uma enorme oficina de trens, que dá morada também a uma família e a pelo menos oito cachorros. Dizem que Pretinha comeu o coelho.
A intempérie desbota os adereços do carnaval passado, que agora parecem ser de 1985. Tecidos em cores vivas se tornam pastéis e, rasgados, revelam a carcaça de isopor. Mesmo decadente, a ideia de folia ainda está presente no que restou de folia, não porque o cenário é particularmente bonito, mas porque incita a imaginação. A sucata do ano passado serve de matéria bruta para as produções do próximo, fazendo com que a diversão nunca se acabe. Pelo contrário, o somatório e acúmulo num mesmo ornamento traz enriquecimento, pelo menos de história e memória.
Tento me desvencilhar do lado negativo de qualquer definhamento. Estou interessada na temporalidade da ocupação daqueles galpões, tanto no tempo histórico linear do lugar, como no movimento latente e frenético durante o processo de trabalho pré-carnaval, o que implica em arruinamento e empilhamento. Penso na oficina de trem e seus funcionários que foram substituídos por barracões de escola de samba e seus carnavalescos. Penso no chão de terra que se recicla diariamente sem nunca perder uma parte de sua composição original. Penso na intensidade dos quatro meses em que todos os esforços se concentram na árdua tarefa de produzir um espetáculo com carros e fantasias complexas que serão exibidas em um só dia, ou no máximo dois, numa cerimônia que dura menos de uma hora. Penso na concentração e na dissipação da presença humana. Penso nos enfeites que ficam, e no lixo que se revela quando o carro sai, deixando um desenho no chão. Penso num espaço que se contrai e que se dilata.
Detenho-me nas camadas temporais e arquitetônicas que se sobrepõem. O galpão principal é monumental, assim como a maioria dos carros e alegorias espalhados pelo interior. Parece uma fábrica de bonecos gigantes. Um mundo de ficção onde portas falsas conectam nada a lugar nenhum.
A área externa é um descampado onde plásticos, borrachas e paitês se amontoam e constroem cantos. Objetos de grande porte abandonados se destacam como esculturas no vazio. Navios naufragados e anjos. Vagões enferrujados e cobertos por mato se camuflam na paisagem. A paisagem transforma-os em colinas. Uma trilha comprida leva a uma civilização distante.
Carandiru é um lugar habitado, marcado pela presença e pela acumulação de tempos,
impregnado de resíduos. Busquei fotografá-lo no recesso do carnaval, concentrando-me nos resquícios encontrados que poderiam contar histórias sobre o lugar. A fotografia, em sua capacidade de combinar outroras e agoras, encarna um instante, um relâmpago, apresentando uma cena onde o tempo fica em suspenso.
—
Carandiru deixou de existir para dar lugar ao Porto Maravilha.
Natal no Minhocão, 2009
Por Luiza Baldan
8h desocupo meu apartamento na Rua Paulino Fernandes.
A mudança vai em direção à casa nova, na Rua Dona Mariana.
Sinto uma dor terrível, choro compulsivamente, tenho medo de todo o desconhecido.
Um cansaço sobrenatural toma conta e a fragilidade é inevitável.
15h encontro, sem programar, a minha família.
Almoçamos juntos, como não acontecia há tempos.
18h chego no Minhocão, local da residência artística, atual moradia permanente até o dia 20 de dezembro.
O medo vira alívio.
O desconhecido vira vizinho.
O apartamento 613, da Dona Leda, vira minha casa.
Isto aqui não é um hotel, é a minha casa.
Hoje faz 17 anos que meu pai morreu e fui obrigada a me mudar pela 8a vez. Hoje fiz minha mudança de número 26.
Encontrei minha família e despedi-me dela.
Conheci uma família nova.
Senti-me recebida com calor, carinho e atenção.
O medo do desconhecido terminou na amabilidade do outro.
Muitas são as janelas neste prédio de muitos.
Sensação de que tudo ficou para trás.
Sinto-me tão longe do presente próximo e tão perto de um passado qualquer, de cidade pequena e vizinhos queridos.
O apartamento tem vista de torre e ar de casa.
Estou acolhida em meio aos pertences da Dona Leda.
Faz três meses que ela partiu.
Os objetos ainda quentes, cachorros de porcelana que latem calados na estante.
Imagino como seria a sua vida, junto à família com a qual agora convivo.
Faço retratos a fim de homenagear os que aqui vivem.
Vejo nos seus olhos uma ternura de agradecimento por meu gesto simples e afável. Participei da alegria do corredor – parte rua, parte pátio, parte sala –, local onde crianças deitam, eu deito, comida se apronta, comparte-se cerveja, música e conversas.
Respeito esta casa como se fosse minha.
Ela agora me pertence.
Vejo as manchas das infiltrações no teto, mas não me abalo.
Desvio o olhar para o Jesus emoldurado, com um tercinho pendurado nele, e sinto-me feliz. Fogos de artifício, hino de futebol e tantos outros sons embalam a minha noite.
É bom estar sozinha e ter silêncio.
Existe um momento de paz em que o descanso é necessário.
Não mais me pressiono com decisões.
Vivo cada instante com intensidade, nem muita nem pouca, mas de forma genuína.
Quero estar aqui e todo o resto me importa de menos.
Não me atinge a precariedade do lugar.
Isso não sobressai na minha experiência romantizada desta casa.
Vivo outra década em 15 dias do ano de 2009.
Hoje faltou água.
A mãe da Ilka morreu.
O pai das crianças bateu na esposa e apontou uma arma na frente da menina.
Eu chorei e brinquei com a criançada ao mesmo tempo, já que me pareceu mais sensato tentar distrair.
Há seis anos o D. bate na M.
Tiveram dois filhos e ela é mãe desde os 14.
Hoje ela tem 21 e dormirá fora de casa.
A molecada pega a câmera russa de antigamente e brinca estarrecida. Querem apertar o disparador mesmo antes de escolher a foto.
A curiosidade é linda e anima o processo de convívio.
Tinha um menino especialmente interessado.
Sério, arisco, ele pegava a câmera decidido.
Cada criança com seu encanto.
Um somatório de mini-personalidades que fazem deste lugar único. Desenharam até dormir.
suco de goiaba+suco de uva+guaraná+canetinha+lápis de cera+papel+guaraná+papel+caneta+guaraná+tv+chave de casa+sono.
Gosto de dormir cheirando o pé da mamãe.
O chulé dela é bom.
Ela namorava o dono da mercearia que morreu.
Hoje em dia quem toma conta, de favor, é o tio.
Ele traz o pão fresco de manhã e viaja para Campo Grande no fim de semana.
Aqui no corredor somos todos uma família.
Havia até o plano de juntarmos os apartamentos, abrindo uma janela entre as salas, para as conversas mais privadas.
Mas ficaram com medo da tia do outro lado, que era muito encrenqueira.
Já somos a quarta geração de mulheres.
As famílias cresceram juntas, se multiplicaram.
A do 614 é madrinha da do 612, que é madrinha da do 614, e assim vai.
Acharam um filhote de cachorro abandonado e ninguém podia ficar com ela. A menina chorou muito porque queria a cadelinha.
Os outros cachorros do corredor sentiram o cheiro e ficaram alvoroçados.
Todos pro banho para tirar a murrinha.
Faz muito calor e muita preguiça.
O ventilador toca uma musiquinha que dá sono.
Ventinho quente, abafado, de tarde morta.
Nem café dá jeito.
Chego na janela para ver a paisagem de longe, mas o sol da tarde castiga. Dou a volta para a outra vista e o pessoal lá embaixo está queimando cobre. Mais calor, mais fumaça.
As crianças não sentem nada disso e brincam eufóricas na beira da laje.
Os mais sortudos foram para a piscina de algum parente.
Espero alguém bater na porta, mas me lembro de que já está aberta.
É só entrar.
A buzina do padeiro toca alto, a manicure trabalha no corredor.
A cachorra Madona dorme feliz de barriga na cerâmica fria.
O perfume do recém-banhado invade a sala.
Vai chover.
As nuvens se aproximam.
De pequena eu batia muito nela e também batia nos outros que queriam bater nela. Só eu podia bater.
Minha filha bate na filha dela.
Sempre fomos melhores amigas.
Eu bato o bolo para ela, para você e para a vizinha, e assim não dá ciúme. É melhor comer ainda quentinho, com o brigadeiro mole.
Passos, cachorros, pássaros, maquita, chuva, carros, buzinas, crianças, vassoura raspando o chão, bola, motor de caminhão.
Tiros.
Parece que são dentro de casa, no corredor.
São no morro.
Algumas pessoas continuam tomando cerveja na mureta. No mesmo minuto meu telefone toca.
Coração aperta.
Mudo de canal. Pânico. Xurupita.
Estranho receber visita numa casa que não é mesmo minha.
Os amigos viraram turistas, observadores passivos da minha vida.
Os assuntos são restritos e só falamos do pertinente a este lugar.
Ninguém quer saber como estou, mas sim como estou vivendo.
Pela primeira vez tive vontade de ir embora.
Só senti o cheiro de xixi de gato porque me contaram que estava forte.
Não gostei de ser vista como numa experiência exótica.
Não tem exotismo aqui.
O que se vive é puro e bastante verdadeiro.
Me incomodo com o olhar de reprovação e questionamento.
E mesmo eu sendo uma estrangeira, também me incomoda o olhar estrangeiro do outro. Prefiro ficar só com os meus botões e meus filhos postiços.
O quarto é rosa.
Ao abrir a porta de manhã, vejo um corredor iluminado de verde e amarelo, com rasgos de sol pelo chão, pelas portas, pelos livros na estante.
A penumbra matinal é filtrada por cortinas e toalhas, aquecendo os objetos com uma luz fraquinha.
O Snoopy de porcelana recebe um facho especial, quase um holofote.
À noite o vão da escada é lilás, cintilando pequenos quadrinhos na parede.
Meu tio ganhou este apartamento quando trabalhava para o governo, mas como preferia morar perto do jardim, cedeu-o para os meus pais.
Eu tinha 5 anos.
Um dia um funcionário do CEHAB veio investigar e regularizar os moradores. Pelo sobrenome da família ele reconheceu que era sobrinho da minha mãe. Não se viam há pelo menos 30 anos.
Vivo com minhas filhas, netas e meu novo marido.
Não penso em sair daqui até morrer.
Muitos já vi chegar e passar, e hoje tomo cerveja sozinha por falta de companhia.
Desta vez pensei que fossem fogos, mas eram tiros de verdade.
O motoqueiro não caiu e a polícia foi atrás dele.
Rapidamente o pancadão deixou de ser funk e virou pow-pow com sirene. Aqui tudo ainda em paz.
Strogonoff com arroz.
A água voltou, a chuva parou.
O telefone tocou e boas notícias chegaram.
Desde que moro nesta casa, toda vez que o telefone toca, recebo uma boa notícia.
Hoje me disseram que faço família em todo lugar.
No início da residência artística eu não podia imaginar que isto de fato aconteceria.
Sentir-se acolhido não necessariamente significa ter afinidade.
Hoje deixei a casa que me devolveu um tanto de coisa que havia perdido por aí.
Tive que sair e abraçar e chorar e doer.
Tive que prometer para mim mesma que aquele amor inventado em tão pouco tempo não cessaria naquela partida.
Volto para o Natal.
Volto para aquele corredor que foi tão casa quanto a minha casa.
Volto para o calor das histórias embaladas a risos e gritos.
Ontem vi um álbum de fotografias antigas.
Ri das caretas das crianças que hoje são adultos.
Vi a semelhança genética das pessoas e a permanência grifada daquele cobogó, daquele corredor.
Agora eu estou sem casa, mas de volta a um cômodo fechado, sem comunicação externa além do barulho da rua movimentada e urbana do bairro de Botafogo.
De volta a braços confortáveis que estavam adormecidos aqui.
Fecho o olho e um rostinho de criança vem na lembrança.
Sorrio.
Eles ficaram de me ligar para saber se eu tinha chegado bem.
Difícil responder a uma pergunta dessas num momento em que conquisto tanto, me emociono tanto, mas deixo algo muito potente para trás.
Não existe mágica que faça com que aqueles dias se prolonguem.
As fotografias que eu fiz servirão de álbum para alguma outra conversa daqui a 20 anos, seja deles, minha ou nossa.
Servirão de mapa para me levar de volta àquele lugar e adoçar a memória.
Toda bala Juquinha me levará ao esconderijo, ao pote verde em forma de maçã, onde reencontrarei aquela felicidade.
Muitos fogos.
Uns de artifício, outros de verdade.
Queimaram o mato todinho.
Em vez de verde, agora é preto.
Uma pipa voa bem alto e, depois que avisto a primeira, já são dezenas dançando no céu. Hoje é dia de festa.
Bolinho de bacalhau em muitas casas.
As famílias trabalham e celebram ao mesmo tempo.
Voltei ao corredor encantado e reencontrei os amigos.
Até o de 5 aprendeu a escrever “afeto” com pauzinhos de madeira.
Os sofás e a cortina novos chegaram.
A sala se ilumina das tonalidades recentes.
Um lugar é inaugurado.
As crianças ajudam a limpar, mas sem querer molham a flanela. A chave esquecida no portão dá entrada a outros menos presentes. Hoje é dia de festa.
Roupas são estreadas.
A geladeira de um guarda a cerveja do outro.
Eu trouxe pudim.
Latinha, latinha. É a hora do gato comer.
Vai e vem, entra e sai.
Sandálias novas.
Feliz-da-vidá.
Formação acadêmica
2015
– Doutoranda em Linguagens Visuais, EBA-UFRJ, Rio de Janeiro, RJ
2010
– MFA (Linguagens Visuais), EBA-UFRJ, Rio de Janeiro, RJ
2005–2006
– Cursos livres, EAV Parque Lage, Rio de Janeiro, RJ
2003
– BFA (Fotografia e Time-based media) / História da Arte, FIU, Miami, EUA
Exposições individuais (seleção)
2015
– “Perabé”, Centro Cultural São Paulo, SP
2014
– Build Up, MdM Gallery, Paris, França
– “Suave” (FotoRio 2014), Espaço Sergio Porto, Rio de Janeiro, RJ
2013
– “Corta Luz”, Pivô, São Paulo, SP
– “Índice”, MAM, Rio de Janeiro, RJ
2012
– “São Casas”, CCD/Studio-X, Rio de Janeiro, RJ
2011
– “Algumas Séries”, MAC, Niterói, RJ
– “Insulares e marginais”, Galeria Mercedes Viegas, Rio de Janeiro, RJ
2010
– “Sobre umbrais e afins”, Plataforma Revólver, Lisboa, Portugal
– “Luiza Baldan”, Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo, SP
Exposições coletivas (seleção)
2015
– “Casa Cidade Mundo”, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, RJ
– “Coleções 10”, Galeria Luisa Strina, São Paulo, SP
– “Fotos contam Fatos”, Galeria Vermelho, São Paulo, SP
– “A palavra palavra”, Galeria Carbono, São Paulo, SP
– “Brasil em preto e branco”, Centro Cultural São Paulo, SP
– “Ter lugar para ser”, Centro Cultural São Paulo, SP
– ”Fotografia Contemporânea Brasileira: Novos Talentos”, Caixa Cultural, Rio de Janeiro, RJ; Brasília, DF; São Paulo, SP
– “Atributos do Silêncio”, Galeria Bergamin, São Paulo, SP
– “Vértice: Coleção Sérgio Carvalho”, Museu Correios, Brasília, DF; Rio de Janeiro, RJ
– “Frente à Euforia”, Oficina Cultural Oswald de Andrade, São Paulo, SP
2014
– “Espaços Deslocados – Futuros Suspensos”, MAC, Niterói, RJ
– “Paysages Humains”, MdM Gallery, Paris, França
– “Prêmio Aquisições Marcantonio Vilaça Funarte 2013”, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
– “Edital Prêmio Honra ao Mérito Arte e Patrimônio IPHAN”, Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ
– “Cruzamentos: Contemporary Art in Brazil”, The Wexner Center for the Arts, Columbus, EUA – “Duplo Olhar: um recorte da coleção Sérgio Carvalho”, Paço das Artes, SãoPaulo, SP
– “Único”, Carbono Galeria, São Paulo, SP
2013
– “Escavar o Futuro”, Palácio das Artes, Belo Horizonte, MG
– “Lugar Nenhum”, Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, RJ
– “Travessias 2 – Arte Contemporânea na Maré”, Galpão Bela Maré, Rio de Janeiro, RJ
2012
– “Rumos Artes Visuais 2012-2013”, Itaú Cultural, São Paulo, SP; MAMAM, Recife, PE; Paço Imperial, RJ
– “Collecting Collections and Concepts”, Fábrica ASA, Guimarães, Portugal
2011
– Projeto Foto no Bazzar, Rio de Janeiro, RJ
2010
– “Mapas Invisíveis”, Caixa Cultural, Rio de Janeiro, RJ
– “Outras Passagens”, SESC, Niterói, RJ
– “O Lugar da Linha”, Paço das Artes, São Paulo, SP; MAC, Niterói, RJ
2009
– 37º Salão de Arte Contemporânea de Santo André, São Paulo, SP
– “Nova Arte Nova”, CCBB, São Paulo, SP; Rio de Janeiro, RJ
– “Linguagem de Travessia”, Centro Cultural da Justiça Federal, Rio de Janeiro, RJ
– “Piscinão da Benvinda de Carvalho”, Galeria Murilo Castro, Belo Horizonte, MG
– “Pequenos formatos”, Subterrânea Atelier, Porto Alegre, RS
Prêmios, Bolsas e Projetos (seleção)
2016
– Artista convidada do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP 2015
2015
– Programa de Exposições 2015 CCSP
– Edital Viva a Arte!, Secretaria Municipal de Cultura, Rio de Janeiro, RJ (com Jonas Arrabal) 2013
– Prêmio Honra ao Mérito Arte e Patrimônio – IPHAN
– Bolsa de estímulo às artes visuais, Funarte / Residência Copan
2012
– Edital Pro Artes Visuais, Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro
2011
– Rumos Artes Visuais 2011-2013, Itaú Cultural / Bolsa residência CRAC Valparaíso, Chile
2010
– XI Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, Funarte / Residência Península
– Bolsa de fomento a exposições de artistas brasileiros no exterior, MinC/Fundação Bienal de São Paulo, SP
2009
– Residência artística Pedregulho, IPHAN, Rio de Janeiro, RJ
– Prêmio aquisição, 37º Salão de Santo André, São Paulo, SP
– Indicada a o KLM Paul Huf Award, Foam_Fotografiemuseum Amsterdam
– Palestrante no “Projeto Portifólio”, Ateliê da Imagem, Rio de Janeiro, RJ
2008
– Centro Cultural São Paulo / Galeria Olido (exposição individual e prêmio aquisição)
2007
– Finalista da Bolsa Iberê Camargo
2003
– Finalista do Annual Best College Photography, Photographer’s Forum Magazine, EUA
2002
– Color Express Award, Annual Student Show, The Art Museum, Miami, EUA
– Brown & Marion Whatley Scholarship, The Visual Arts Spring Review 2002, FIU, Miami, EUA
Publicações (seleção)
– Coleção MAM Nacional. Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2014.
– Escavar o Futuro / Renata Marquez … [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2014.
– Revista ArtReview, 3/2014.
– Fotografia na arte brasileira séc XXI. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2014.
– ESPADA, Heloisa e Lorenzo Mammì. Lugar Nenhum. Rio de Janeiro: IMS, 2013.
– BALDAN, Luiza. São Casas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 2012.
– Convite à viagem. São Paulo: Itaú Cultural, 2012.
– Revista Lugares, 6/2012.
– Revista Elástica, 1/2011.
– Santa Art Magazine, 7/2011.
– Lado7, 2/2011.
– Revista Monopol, 9/2010, September.
– Revista Textos escolhidos de cultura e arte populares, vol. 7-2, 2010/02 (Centro de Referência do Carnaval – UERJ).
– Revista Arte&Ensaios, n.21, 2010/02 (PPGAV-UFRJ).
– VENÂNCIO FILHO, Paulo … [et al.]. Nova Arte Nova. Rio de Janeiro : CCBB, 2008.
– Revista Virtual Gambiarra (Revista dos Mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte – PPGCA/UFF), ISSN 1984-4565 / Número 03 – Ano III.
– Revista Noz #3. Rio de Janeiro, PUC, 2009.1. ISSN 1981-9412.
Coleções públicas
– MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
– IPHAN, Rio de Janeiro, RJ
– Prefeitura Municipal de São Paulo, SP
– Prefeitura Municipal de Santo André, SP
Vídeo produzido pela Matrioska Filmes, exclusivamente para o PIPA 2010:
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