São Paulo, SP, 1968.
Vive e trabalha em Florianópolis, SC.
Graduou-se em fotografia no CFP Bauer, em Milão. Entre as individuais estão: “The Final Cut”, Museu de Arte de Santa Catarina, 2016; “Somatório dos Meios”, Lunara, 2014; “Modos de Permanência”, Gasômetro, 2011 e CUMA – USP, 2010. Coletivas realizadas recentemente: “Porque somos elas e eles”, Blau Projects; VI Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, Casa das Onze Janelas, 2015; XVIII Bienal de Cerveira, 2015; Vídeos da Coleção MAR, Museu de Arte do Rio, 2013; “Eu fui o que tu és e tu serás o que eu sou”, Paço das Artes, 2012; e “Contin[g]ente”, Arquipélago, 2009. Participou de três edições do Arte Pará (28ª, 30ª e 32ª); do 60º Salão de Abril, em Fortaleza; 12º Salão Nacional de Artes de Itajaí; e do 43º SAC – Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba. Entre os prêmios recebidos, destacam-se: 32° Arte Pará (2013), 3° Prêmio Belvedere de Arte Contemporânea (2012), Salão de Arte de Mato Grosso do Sul (2012), Prêmio Elisabete Anderle, FCC (2009 / 2013).
Prefiro ficar sem objetos
Por Josué Mattos
Em 1916, Duchamp introduzia o termo readymade ao centro de uma acalorada discussão, que revisava o estatuto do artista como produtor de objetos. Estava em jogo identificar a trama discursiva engendrada por escolhas, deslocamentos e construção de dispositivos para os objetos recoltados. Inventava, com isso, modalidades inaugurais para a produção da arte e sua reflexão. Foi então que, há 101 anos, uma pá de neve veio a se chamar In Advance of the Broken Arm [Em antecipação ao braço quebrado]. Embora haja semelhança processual, um abismo temporal e discursivo – o que resolve qualquer intenção de ver repetição vil do gesto duchampiano – separa o modo como Karina Zen remonta o conjunto de objetos de The Final Cut, lugar em que a pá de neve serve para desobstruir uma quantidade espessa de matéria jocosa, pois, no cerne da questão, está um corpo-objeto incrustado numa trama narrativa que responde a sua existência e à insuspeitada inoperância do sistema de mais-valia, que o teria prometi- do mundos e fundos.
Por isso, nesse jogo de poderes em que o sujeito figura como uma espécie de objeto consumado, vazio e destituído de sentido, o comentário saudosista é destroçado, em vias de fazer valer a presença de fragmentos de um corpo con- formado a conviver com as conjunturas que o tornam uma peça manipulável. Segue, então, um braço quebrado por antecipação, lá, e um sujeito fisgado pela própria isca que injetou em seu anzol, aqui. A infertilidade do matagal intercalado em The Latest Desire, vídeo extraído da internet, sustenta as contradições de um território continua- mente movediço.
Onde o banal e o trágico caminham juntos com “sapatos do bom”, disponíveis ao acúmulo, depois da morte “do cara” que os transportava, uma das ori- gens dos derradeiros mundos (The Last Map) alterados de dentro do mundo. Daí a vertigem e a construção do corpo-máquina, irrigando uma batalha de egos desprovida de interesses reais (Egos’ War). Na perspectiva de uma luta de detentores dos copy- rights dos vícios que organizam e subjugam a sociedade, as figuras eretas e esvoaçan- tes esbofeteiam-se, enquanto enrijecem vantajosamente a vida massificada que sus- tenta e origina suas guerras sem causas comuns.
Aceleram o enferrujamento da socie- dade e arquivam seu restauro. Recebem, conforme a contrapartida prevista, um corpo que dá rasteiras na pulsação de seu próprio desejo, atinando apenas pela lógica do acúmulo incessante. Nesse campo minado, The Latest Desire estreita a prosa com o guarda-roupa desfigurado pelo excesso, cujo acúmulo corrompe a própria desmesura (Oversize). Enquanto isso, caixas-d’água lacrimejam seu próprio vazio, em cenas que repetem a desolação de um em contraponto aos ágeis pés descalços de outro, que se movimentam inquietos, a carregar caixas de sapatos e jogá-las, como se fossem se- mentes, na paisagem formada pela terra infértil que enquadra a cena.
Nessa encruzilhada há, contudo, um ponto a não negligenciar: The Final Cut confere às atrocidades e descompassos do tempo presente uma selvageria circular, fundada no colapso que subordina este à produção e circulação de objetos, no mesmo grau em que assimila domesticidade e violência. Por isso, ao inverter a montagem de cabos de vassoura de palha, a artista procede de maneira a tornar visível a estranha naturalização da barbárie. Em sua ordem do dia, coube confrontar um povoado de sujeito-objeto, – nutrido e desenvolvido pelo “novo anti-sujeito heroico desse pós-mundo freneticamente desvitalizado, esta distopia jubilosa”1 – com uma repentina lucidez, que, diante da tragédia, diz: “prefiro ficar sem tênis e sem sapatos”. Enquanto personae arrematadas por readymades, os objetos de The Final Cut rebatem ao público uma desumanização latente, que parece gritar, em complemento: teria preferido ficar sem objetos.