(ultima atualização em abril/2018)
Feira de Santana, BA, 1959.
Vive e trabalha em Salvador, BA.
Artista representado por Paulo Darzé Galeria.
Indicado ao PIPA em 2011 e 2015.
A obra de Caetano Dias tem como um de seus eixos a questão do corpo. É importante ressaltar que se trata do corpo entendido de forma ampla, imerso em um espaço e em uma cultura, assim como na história. Um corpo em constante processo de constituição e dissolução que, assim como a memória, outra das grandes questões recorrentes em seus trabalhos, é feito de marcas e esquecimentos. As questões sobre o corpo são muito abrangentes e envolvem seu erotismo e sua efemeridade, ou seja, sua relação com o mundo e com o outro, assim como com a morte. As ideias elaboradas por Georges Bataille, autor que ressalta a intrínseca ligação do erotismo com o sagrado e com a morte, permitem um acesso à poética de Caetano. Como estado de dissolução, o erotismo, quer seja dos corpos, dos corações ou explicitamente vinculado ao sagrado, alcança o que temos de mais íntimo, acende o desejo de exceder limites, conduzindo ao mais profundo que se pode alcançar, a uma intimidade onde o eu se expande e se dilui. Os trabalhos do artista revelam a inquietude humana, presente nos enigmas do corpo e enraizada na consciência da morte.
Video produzido pela Matrioska Filmes com exclusividade para o PIPA 2011:
“1978 – Cidade Submersa” (teaser), 57″
“Passeio Neoconcreto I” (registro da vídeo instalação), 2’02”
“Passeio Neoconcreto II” (registro da vídeo instalação), 24″
“O Mundo de Janiele”, 56″
“O Mundo de Janiele” (Registro de projeção do vídeo), 3’05”
“Rebeca” (teaser), 3′
“Águas”, 1’20”
“Lago” (teaser), 48″
“Oxalá”, 1’05”
“Zilomag – Mar de dentro” (teaser), 33″
“Canto Doce Pequeno Labirinto – parte 1”, 8’26”
“Canto Doce Pequeno Labirinto – parte 2”, 9’59”
“Bicho Geográfico” – teaser, 3’22”
Exposições individuais
2010
– Marília Razuk Galeria de Arte, São Paulo, SP
– Paulo Darzé Galeria de Arte, Salvador, BA
– MAC, Fortaleza, CE
– Museu Palácio da Aclamação, Salvador, BA
2006
– Paço das Artes, São Paulo, SP
2004
– Paço das Artes, São Paulo, SP
2003
– MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
2001
– Marília Razuk Galeria de Arte, São Paulo, SP
Exposições coletivas
2015
– “Alimentário – Arte e patrimônio alimentar brasileiro”, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ e Oca Ibirapuera, São Paulo, SP
– “Frestas” – I Trienal de artes Visuais, SESC, Sorocaba, SP
– “Do Valongo à Favela – Imaginario e periferia”, Museu de Arte do Rio de Janeiro, RJ
– “Expedição Terra” – III Bienal da Bahia, Canudos, BA
2013
– XVIII SESC/Videobrasil, São Paulo, SP
2012
– “Eu fui o que tu és e tu serás o que eu sou”, Paço das Artes, São Paulo, SP
– “Da solidão do lugar a um horizonte de fugas”, Berardo Museum, Lisboa, Portugal
2011
– XVI Bienal de Arte de Cerveira, Portugal
– “Art In Brazil (1950/2011)”, BOZAR, Bélgica
2010
– “Tékhne”, MAB/FAAP, São Paulo, SP
– II Trienal de Luanda, Angola
2009
– “Continents à La derive”, CRAC Languedoc-Roussilon, Séte, França
– “Paisagens Oblíquas” – Fundação Berardo, Lisboa, Portugal
2007
– “Art Supernova”, Art Basel Miami, EUA
– Bienal de Valência, Espanha
2006
– 29º Panorama da Arte Brasileira, MAM, São Paulo, SP
– “Interconnect@between attention and immersion”, ZKM, Alemanha
– “Panorama da Arte Brasileira”, MAM, São Paulo, SP
2005
– “Discover Brazil”, Ludwig Museum, Coblence, Alemanha
2001
– III Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, RS
– “Rede de Tensão”, Paço das Artes, São Paulo, SP
Pemios
– Residência LabMIS, São Paulo, SP
– XVI SESC/Videobrasil, São Paulo, SP
– Le Fresnoy, França
– Prêmio VII Salão MAM, Salvador, BA com o filme de longa metragem “Rabeca”
– XVIII SESC/Videobrasil, São Paulo, SP
– FICC/BA – ABCV, VII Salão MAM, Salvador, BA
“RABECA ou Barruada (2012) de Caetano Dias”
(Com Eder Fersant e participação especial de Deusi Magalhães)
Por Laila Rosa
Barruada significa “o mesmo que abalroar ou trombar. Chocar-se com algo.” Diz o dicionário. Na Zona da Mata Norte Pernambucana, onde passei parte da infância e da adolescência, é muito comum ouvir a expressão “estar barrada/o” , que significa estar em conflito em relação a alguma situação ou alguém, especificamente. É mais que ser barrada/o e impedida/o de ter determinado acesso ou circulação. É estado de espírito em conflito. Estado de negação. Provável corruptela da palavra barruada.
Fruto da produção de diferenças casuais, culturais e/ou históricas, o choque sempre gera alguma situação de confronto, no mínimo de estranhamento ou de admiração. Este foi um dos motes principais da antropologia e depois da etnomusicologia enquanto antropologia da música, inicialmente inspirada pelos métodos comparativos dos estudos lingüísticos e da própria antropologia.
Diante das históricas desigualdades sociorraciais e de gênero no Brasil, o choque está longe de propiciar uma relação dialógica, visto que a situação de confronto e produção de diferença é fruto, prima e irmã das relações de poder e produção sistemática de desigualdades.
A Barruada é, portanto, um risco ao qual devemos estar preparadas/os não somente para aprender com essa diferença, mas para aprendermos um tanto do que foi negligenciado, de grandes responsabilidades históricas envolvidas a serem reparadas. Da dialogicidade fundamental neste processo que jamais poderá ser unilateral, onde eu versus “o outro” passa a ser finalmente “nós”.
A Barruada de Caetano Dias é, portanto, ampla, densa e profunda. De certo modo, e de muitas formas diferentes, toca nas várias possibilidades de choques, confrontos, conflitos e diferenças. Conflitos não do sertão baiano, contexto narrado pelo filme, onde as imagens e sonoridades são coerentes, sinceras e não exotizadas. Ainda que imerso claramente em grandes adversidades sociais e econômicas, o filme não admite uma narrativa de teor miserabilista, clichê tão comumente produzido ao se falar do sertão. Pelo contrário, a riqueza e a leveza são enfatizadas sem romantismos e ingenuidades, co-existindo com as imagens verdadeiras de descaso por parte do poder público, pobreza econômica, mas tão somente essa. A riqueza da realidade apresentada é um mar infinito no árido sertão.
A narrativa se inicia com a imagem dos longos cabelos-crina avermelhados cor de terra da alma da rabeca, metáfora de poder feminino, de mistério e certo erotismo representado belamente pela atriz Deusi Magalhães, para contar uma trajetória que se entrelaça a tantas outras trajetórias anônimas de sons e silêncios do sertão baiano que desembocam que nem rio no tocar e olhar da velha rabequeira Domingas. Mimosa e marcante, assim como seu rosto, com todas as marcas de sonoridades e histórias para contar da vida no invisível sertão baiano.
Eder Fersant, o luthier-rabequeiro andarilho-pesquisador protagoniza a trajetória da busca cujo mote é a rabeca, mas que se amplia diante da imensidão das possibilidades, sujeitos e narrativas que se depara e se entrelaçam à sua própria trajetória e identidade híbrida de “caboco” paulista adotado pelo Nordeste.
Tomando os termos da antropóloga e etnomusicóloga Rita Laura Segato, é possível considerar os protagonistas de Barruada como sujeitos políticos num contexto de elaboração ainda constante das alteridades históricas do profundo Brasil, ainda tão desconhecido pelo próprio Brasil. De uma profunda Bahia desconhecida pela própria Bahia. Mas são também sujeitos diversos que, em sua existência, narram de forma não linear, aspectos profundos do ser humano. Do espiritual, do musical, do contemplativo ao enfrentamento de ser outro numa agenda política e cultural hegemônica do que é Bahia e Brasil.
Barruada é existir fora do circuito político e cultural hegemônicos. São experiências, epistemologias, falas, memórias, sonoridades e corporalidades muito particulares e de grande amplitude. Anterioridade na contemporaneidade. Barruada é incluir no mapa uma geografia cultural, política, humana e física não contemplada pela geografia “oficial”. É outra sambada. Outro rabequear. É feminino. É masculino também. É infantil. É jovem e velho. É negro, indígena, caboclo, com resquícios de influências européias re-significadas no contexto diaspórico a duras penas. É lírico, onde a alma toca o profundo da gente. É egun-boi “espírito elevado ao céu” na luta entre o boi e o rabequeiro. Exu mensageiro que abre o caminho para os mistérios da caminhada e dos encontros.
O filme Barruada é, sem dúvida, uma obra lírica, poética e musical para quem quer aprender a Bahia através de protagonismos pluralizados cuja trilha sonora principal vem do som da rabeca, instrumento secular cuja existência foi e continua sendo desconhecida ou simplesmente ignorada pela própria Bahia como um todo. Para além de sua extrema beleza, é ainda obra referência para o mapeamento da rabeca no Brasil e na Bahia, trazendo de forma generosa, mapeamentos de outras tradições religiosas e musicais da região, tais quais, o samba de roda de viola caipira diferente do Samba Chula comumente conhecido e divulgado do Recôncavo Baiano, a folia de reis, a macumba e a reza da rezadeira que abençoa o filme do início ao fim.
Ao mesmo tempo, Barruada consiste também no confronto ou simples co-existência entre as paisagens, pessoas, performances e tradições seculares ali estabelecidas, onde a rabeca, hoje esquecida, foi importante protagonista, com os motores de motocicletas, caminhões, carros que vêm e vão em meio a sons mecânicos que compõem a paisagem sonora contemporânea desse profundo e amplo ser-tão bem narrado. O ser outro dentro de um contexto nacional, o ser outro dentro do próprio Estado da Bahia e das retóricas políticas de identidade cultural baiana que invisibilizam outras tantas Bahias, inclusive, a Bahia da rabeca e da Barruada.
“Ecoando algumas imagens de Caetano Dias”
Por Cláudia Pôssa
A minha aproximação à obra de Caetano se deu através de seu trabalho denominado Religar. A performance marcou o meu acesso à sua linguagem/sensibilidade. Estava ali exibida a impossibilidade e fragilidade das relações humanas, através de tubos de borracha cor da pele com os quais, inutilmente, se tentava conectar os participantes. Mesmo que na aparência físico e concreto, tal contato se mostrava menos ligante que o olhar, mas metaforicamente muito potente por remeter à perdida ligação umbilical que parecia tentar ser revivida numa nostalgia da continuidade inicial. Como no nascimento, momento de ruptura e de constituição do eu sozinho, o trabalho resultava em marcas nos “eus” envolvidos, em escrita-cicatriz da impossibilidade de religação. Entre um ser e outro há sempre um abismo, o outro é sempre outro, mas a tentativa de união persiste, via erotismo e via sagrado.
Na ocasião da performance, pude acompanhar a concepção do Cristo de rapadura, moldado em tamanho natural. O Cristo remeteu-me, imediatamente, ao sermão décimo quarto de Vieira, aos negros escravos produzindo o açúcar dos engenhos descritos em um paralelo ao próprio Cristo crucificado. Nos traços e na cor víamos ali os negros sacrificados: carne para ser consumida com culpa e deleite. O sentido da comunhão se apresentava em sua intensidade original: Cristo para ser comido, doce apesar de crucificado, dolorido apesar de doce. O impacto da obra, feita para ser lambida, estava em remeter simultaneamente ao sacrifício sagrado e ao prazer.
Caetano está sempre na fronteira, prestes à ruptura, junto ao abismo. As relações humanas e a incomunicabilidade nutrem sua obra na qual o erotismo e sagrado estão sempre interligados, o desejo de fusão aparece em um constante diálogo do profano com o sagrado instituído. Seus trabalhos remetem a esse núcleo que parece atraí-lo como um pólo imantado. É impossível não pensar em Bataille. É fundamental uma leitura via Bataille em seu caso. Já no início do seu conhecido livro, L’ érotisme, Bataille ressalta a intrínseca ligação do erotismo com o sagrado.1 Para o autor, o sentido último do erotismo é o anseio de fusão, de supressão de limites entre o eu e o outro, o eu e o mundo. Baseando-se na concepção de que existimos por dentro e somos seres descontínuos, ele ressalta que somos seres em descontinuidade que se abrem à experiência da continuidade, jogando com os limites do ser. O que está em questão é sempre a substituição do isolamento do ser pelo sentimento de profunda continuidade. No erotismo, a passagem ao outro lado está para ser acionada: continuidade maravilhosa numa descontinuidade persistente, fusão precária e profunda implicando em uma dissolução de formas, em abandono da individualidade durável e afirmada. Como estado de dissolução, o erotismo, quer seja dos corpos, dos corações ou explicitamente vinculado ao sagrado, alcança o que temos de mais íntimo, acende o desejo de exceder limites, conduzindo ao mais profundo que se pode alcançar, a uma intimidade onde o eu se expande e se dilui.
Bataille fala de um erotismo que é afirmação da vida até na própria morte, que implica numa alternância e ambivalência entre vida e morte, entre belo e informe, entre bondade e maldade, entre doçura e violência e onde se encontram o corpo e a história. Essa paradoxal coexistência de fusão e dissolução faz com que o erotismo não seja alheio à morte. O terreno do erotismo é também o da violência: a paixão acarreta desordem e perturbação. Assim, para Bataille, o erotismo está intimamente relacionado com a morte, é fluida a linha entre prazer e morte. Irremediavelmente, somos levados a viver a morte, somos constante processo de construção e desconstrução. Citando Rimbaud, Bataille nos lembra que a poesia leva ao mesmo ponto que o erotismo: à indistinção, à confusão de objetos distintos. Tendo presentes estas idéias, voltemos a tentar adentrar o labirinto artístico de Caetano, mundo em que se é convidado, ou melhor, instado a se descentrar, seduzido a se perder. Arte para ser algumas vezes literalmente saboreada e que, com seus elementos de inquietação, muitas vezes causa o estranhamento do interdito e do entre dito. Caetano, como Bataille, aceita o desafio de dançar com o tempo que nos mata. Tentando transpor barreiras de acesso ao recôndito interno, cada trabalho, descontínuo, faz parte de um processo, uma continuidade, que faz emergir novos significados.
Já em Paixão, instalação do final dos anos noventa em que utiliza a fotografia de um morto imersa em água, a mescla de erotismo e sagrado está presente. Um “JC” na camisa do morto reforça o que a composição explicita. O morto real se confunde com o morto sagrado e ressalta a relação de sensualidade e morte desde muito tempo usada pela igreja e pela arte na representação do Cristo morto. A imagem assume o seu caráter erótico e a sua ligação com a morte. A sedução se relaciona com a morte em vários sentidos: na água salgada, a fotografia se desfaz marcando seu caráter efêmero, como sangue que escorre.
O princípio de dissolução está presente pictoricamente também nas paisagens de Caetano, nas Florestas e Catedrais que constrói e desconstrói na superfície bidimensional. Em recriações das figuras de Hans Staden, sua pintura também remete à vizinhança do sagrado e do erótico, à vizinhança da morte com o prazer. É bom lembrar que o canibalismo, um dos primeiros neologismos do “novo mundo”, tem profundas raízes na comunhão cristã: remete ao asco, ao interdito e, ao mesmo tempo, ao desejo mais profundo e ao sagrado. No canibalismo, o desejo é explicitado em suas contradições íntimas.
Numa estratégica de embaralhamento e inversão de sentidos, a obra de Caetano opera uma crítica e explicita a paradoxal situação, contemporânea por excelência, do ato do consumo evidenciar o caráter efêmero do mundo e nossa própria perenidade. Às vezes com um toque de ironia, como no trabalho Água benta geladinha, o sagrado é disponibilizado ao consumo apelando ao desejo de prazer. O público é parte da obra que evoca simultaneamente o sagrado, o popular e o profano. O apelo ao público e aos santos populares também aparece na Santa preta de duas cabeças, exposta na feira, a qual “escuta” nossos desejos, ou no Mata-mosca, onde frases populares de atração religiosa são reinseridas em contextos de consumo popular, como açougues e botecos, para depois serem levadas ao consumidor de arte, provocando sempre estranhamentos múltiplos.
Em Jesus alegria dos homens, novamente a interação com o público, que é convidado a explicitar o que oculta a si mesmo. Nesse trabalho com os amordaçados, desejos e medos primários se misturam. Momento instável de ruptura interna entre o “eu” que deseja e tem prazer e o “eu” que é submetido à força. Os dois coexistem de forma impossível e, portanto, remetem a um “eu” que só é possível na dúvida radical de sua própria existência. O amordaçado explicita o seu ser ativo em sua aparente submissão. O abismo do eu é a ruptura mais profunda. Questionado, o sujeito se dilacera, une contrários incompatíveis e inacessíveis a uma compreensão racional. Desejo e medo de comer e de ser comido coexistem. Onde o desejo e onde o medo? Também na performance Assim na terra como no céu está presente a sensação de vertigem e o medo/desejo de entrega: na pedra sacrificial a fragilidade branca como casca de ovo ecoa nas cabeças em gesso decepadas.
O vídeo Sopro repete sem cessar o grito de um porco ao ser abatido. A ambivalência do sacrifício aparece no prolongado grito de solidão desse instante limiar em que o sopro de vida é mais contundente: no grito de morte. Há regiões onde vislumbrar ou suspeitar é mais forte que negar ou afirmar. Em muitas das fotos de Caetano, como na série Cabeças, as luzes são captadas como que emergindo de um fundo negro. Partes da imagem são deixadas na semi-escuridão. O medo da dissolução da identidade é encarado nesse escuro indistinto, espelho cheio de encontros com nossas próprias imagens. A obscuridade de suas fotografias remete à luminosidade de Rembradt e de Goya em sua fase negra. Seres ocultos noturnos emergem aqui e ali, deixando-se entrever e explicitando-se apenas como seres desejantes e desejados.
Os Santos populares, fotos pornográficas capturadas na internet e retrabalhadas por Caetano, remetem também a clássicos da pintura. Entretanto, a aproximação com a pintura não é uma atitude de reverência, é provocadora de estranheza, pelo esvaziamento e perda de sentido das imagens originais. Desfocadas, as imagens mesclam o íntimo ao público, o sagrado ao profano, o clássico ao pornográfico. Os limites/fronteiras perdem a possibilidade de definição. O corpo erotizado é uma constante na poética de Caetano: carne para consumo, reflexo turvo em que é possível se reconhecer, mesmo que em sombras, e se estranhar na impossibilidade de clareza da imagem. Sombra do eu ou sombra do outro? Fugidias, escorregadias, as imagens permitem simultaneamente o reconhecimento e a estranheza. O “eu é um outro” já concluía Rimbaud.2 Na série de fotos Cotidiano, Caetano expõe 360 graus de questionamento.
Sobre a Virgem se relaciona com as fotos desfocadas. O mesmo princípio de desconstrução traduzido ao tridimensional: dissolver a imagem em furos. E, colocadas juntas, Santa Bárbara e as prostitutas enfatizam outra vez a proximidade do erotismo e do sagrado. As imagens perfuradas, violadas, não escondem o cunho religioso presente no pornográfico. No contraste entre o claro e o escuro, o sagrado e o mundano se interpenetram e se estreitam. Novamente se questionam as fronteiras, interior e exterior se mesclam nos furos iluminados. O interno se mostra tanto nos ocos de luz quanto na fala/depoimento de vidas confessadamente vividas. A mesma corrosão do tridimensional aparece no combinado de cupim com madeira, de cupim com livros. A complexidade da estratégia de construção e desconstrução está explicitada no fato de, ao consumirem sua própria base e desenhar seu universo, no limite, os seres se aproximam de sua própria desintegração.
Caetano tem, recorrentemente, evocado a infância em seus trabalhos, não como território da inocência, mas como época em que é gestada uma paisagem interior. Não podemos esquecer que a fantasia de devorar e ser devorado está presente em várias das histórias infantis, que Joãozinho e Maria, assim como Barba Azul, emergem de um mesmo universo. Na instalação Fábula, cabeças negras decepadas, moldadas em açúcar e ligadas com fios de cobre, estão em aparente contraste com um Canto doce. Ao mesmo tempo em que desejamos saborear um cantinho de açúcar, o doce melaço escorre das cabeças, como sangue: convite que brinca com o desejo e o medo, com a repulsa e a atração da morte. Somos defrontados com formas escuras e doces em que se fundem e confundem as pulsões humanas.
Em O mundo de Janiele, a infância é evocada com clareza. A realidade está em suspenso por um tempo que se prolonga na música circular. O vídeo parece simples como uma caixinha de música, mas, como esta, remete a conteúdos adormecidos. O movimento espiral se inicia com o corpo infantil em movimento: brincadeira, sexo, transe? Intimamente, as leituras já começam múltiplas. A poesia segue, delicada ao extremo e, como poesia, com variados significados em potência. Lentamente, infiltram-se novas cores em um mundo que parece cintilar em torno da personagem. O universo se desdobra e devolve dúvidas já esquecidas: gira a terra em torno do sol, gira o sol em direção ao horizonte, gira o mundo em torno da gente? Descentrados, nos sentimos estonteados com essa doçura. E o que dizer de Uma? Parece-me irresistível começar pelo “era uma vez…” e continuar como em um mar, mergulhando na poesia que acontece aos nossos olhos. Dúvidas éticas e estéticas e, novamente em cena, o corpo, o erotismo, a solidão, a impossibilidade de conexão. A poesia perturba e o silêncio é o que fica como resposta a muitas de nossas indagações. Arte é aquilo que permite possibilidades múltiplas, desordenando lugares e tempos, exigindo um experimentar que vai além de si mesmo.
Caetano é matreiro em seus títulos. O enigmático Zilomag necessita para sua leitura do acesso a outros tempos. Nele, corpo e religiosidade são como marcas de dobras em papel branco: vestígios, pequenas memórias. Em cena, vemos um corpo informe, sem lugar, inserido no concreto mundo contemporâneo, na periferia sem forma. Esse ser de concreto, que se quer em movimento, remete formalmente às Catedrais, alinhavando tenuamente obras aparentemente desconectadas. Trata-se talvez de tentar uma operação capaz de reconfigurar o mundo, mover pedras. Outra vez, podemos lembrar Bataille em sua tentativa de exprimir um pensamento móvel, sem estado definitivo: “uma filosofia não é jamais uma casa, mas um canteiro de obras”.3 Estamos sempre tentando atribuir sentidos ao mundo, mesmo ao ato de rolar pedra morro acima e morro abaixo. Eixo central no pensamento de Bataille, a noção de experiência interior se contrapõe à experiência científica: “não escrevo para quem não poderia se demorar, mas para quem, entrando neste livro, cairia como em um buraco”.4 Como Bataille, Caetano busca surpreender, perdendo-se em rotas inusuais e levando junto o expectador em estratégias de sedução.
Em Pequeno labirinto, novamente convida o espectador ao interdito, a perder-se em caminhos não habituais. Tentativa de ultrapassar-se, de conduzir o espectador a um estado para além da trama social, de colocar o ser em questão, perder-se nas Florestas vislumbrando Catedrais, adentrar-se no Mar de dentro. O intrincado tecido das obras permite leitura múltipla, daí sua riqueza, na ambivalência do universo mapeado. Pode-se entrever por quais Florestas Caetano “passeia suas ficções”. As obras provocam, transformam o espectador em observador ativo, muitas vezes apelando para o incômodo, dilatando a percepção pelo pensamento. Num processo de canibalismo, questiona-se o que é o eu e o que é o outro e antíteses clássicas, como o fora/dentro, se desestabilizam. Ao tentar dar forma aos fantasmas da sexualidade, os trabalhos revelam a inquietude humana presente nos enigmas do sexo e enraizada na consciência da morte.
Por Jacopo Crivelli Visconti
Os olhares dos moradores, parados nas portas e janelas de suas casas para ver a inusitada cena, são atentos, divertidos e vagamente perplexos; uma velha desdentada ri. Os homens empurram a escultura ladeira acima, por entre as casas simples de tijolos aparentes, assentados numa argamassa pedrosa, pilares de concreto armado também à vista, e em frente à fachada a tal ladeira, de uma terra vermelha e aparentemente seca, mas fértil, porque nela cresce, aqui e acolá, uma grama verde e teimosa. E a escultura não destoa, no meio dessas casas simples e dessa terra: apesar de sua consistência ser outra (ela é feita, basicamente, de madeira e cimento), as cores se confundem, ou melhor se fundem, com o entorno, o que não é, certamente, por acaso. Segundo Caetano, de fato, as esculturas da série Construção (2005-2006) são quase casas: são como pequenas favelas feitas para rolar, como barracos, arranjos de moradia. São esculturas sem posição, sem lugar e sem rumo. E os homens entenderam perfeitamente: o lance é empurrar a escultura ladeira acima, em um esforço sisifico que visa apenas deixá-la, depois, rolar ladeira abaixo, até o fim da descida. Se, ao longo do caminho, encontrar algum obstáculo, pular, quebrar, rebentar seu esqueleto cansado de material de demolição na fachada de uma das casas e parar por aí, tudo bem também: sempre foi uma escultura sem lugar e sem rumo, mesmo… (por sorte, ela acaba sobrevivendo: vai ver que seu jeito desengonçado, desequilibrado quase caindo, fazia-a parecer mais frágil do que ela realmente é).
No capítulo talvez mais metafísico da obra-prima maravilhosamente metafísica que é O Pequeno Príncipe , o protagonista é um acendedor de lampião que, sozinho, no menor de todos os planetas, acende e apaga seu lampião mil quatrocentas e quarenta vezes por dia. O principezinho bem que teria gostado de ficar amigo do acendedor de lampião, mas seu planeta é mesmo pequeno demais. Não há lugar para dois. As esculturas de Caetano também são pequenas demais: em cada uma cabe apenas uma casa, completamente fora de escala, proporcionalmente enorme, uma imensa, ineludível idéia de casa que ocupa o planeta inteiro, como o lampião do planeta do acendedor de lampião. Quando ficam perto uma das outras, no vazio metafísico do cubo branco da galeria, parecem aspirar a formar uma espécie de constelação, cada uma um planeta pequenino e mal acabado, flutuando por aí. E é verdade que não têm rumo, nem posição: quase pedem, aliás, para ser mexidas, empurradas primeiro levemente, tateando o peso e o esforço, sempre com aquele medo descabido de que venham a rebentar, e depois com mais força, até que finalmente rolam, quase acordando subitamente, e se deslocam, cambaleando para frente e para trás até achar uma nova posição, na qual param, novamente adormecidas, até que alguém resolva aproximar-se e empurrá-las de novo. E, a confirmar que é nesse movimento, quando rolam de uma posição para outra mexendo-se pesada e lentamente, que elas se revelam, algo se mexe lá dentro. Talvez sejam pedaços de pau, ou pedras, ou ainda lascas do reboco, é difícil dizer, mas algo tem, e retumba contra as paredes com um barulho como de ressaca ou, talvez, como um coração que se ponha, de repente, a andar. Inerte, enfim, o objeto é fascinante, não deixa de ser até belo, na sua resistência pobre e teimosa, na sua falta de elegância, na postura simpática de João bobo caído, mas é evidente que faz realmente sentido apenas quando é colocado em ação.
Então, talvez o objetivo, a razão de ser da escultura seja exatamente e apenas fazer com que as pessoas se acerquem, toquem, mexam, conversem da sensação curiosa de empurrar um objeto numa galeria de arte: o que ela tem de mais convencional e tradicionalmente escultórico (sua forma quase abstrata, seu peso, suas cores terrosas) serve, no fundo, apenas para franquear-lhe o acesso ao universo da produção e da fruição artística. O seu sentido real, mais profundo e autêntico, está na capacidade de agregar convidando a participar, a fazer um esforço, pessoal ou mesmo coletivo. Assim como a escultura não pode, definitivamente, ser considerada convencional, o esforço que ela pede também não o é, enquanto, como vimos, não visa um resultado prático: não promete e não traz nenhum retorno concreto. Em outras palavras, o que tocamos e o que fazemos, quando confrontados com esses planetas de madeira e cimento, é algo diferente do que estávamos pensando: algo difícil de resumir em palavras, e que certamente não tem muito a ver com o que esperaríamos de uma escultura.
No âmbito da produção do Caetano, essa aparente incongruência entre as características e referências formais de uma obra e seu significado real não é nova: nos trabalhos que utilizam o açúcar como matéria prima, por exemplo, o dado iconográfico é metodicamente negado ou colocado em xeque pelo material. Assim, no Cristo de rapadura (2004), a aparente sacralidade da escultura é explodida, literalmente, pelo convite a arrancar pedaços e comê-los; na série dos Brinquedos (2005), a reprodução em açúcar de bonecas, carros, cavalos de pau e velocípedes exalta a doçura dos jogos de crianças, ao passo que a efemeridade do material torna-se metáfora saudosa da rapidez da sua passagem, exatamente como as Cabeças (2007) de brasileiros adquirem, pela inevitável impermanência da sua matéria prima, o valor de autênticos mementi mori.
Em outras obras, o açúcar é utilizado com função arquitetônica mais do que escultural: cria cantos e define percursos, obriga, com a sua simples presença, a redescobrir o banalizado ambiente urbano, insinuando no transeunte a dúvida de ter inadvertidamente passado, como Alice, do outro lado do espelho . A primeira obra/ação dessa série, Canto Doce (2004), se deu na Bienal do Barro de Maracaibo, na Venezuela, onde o artista fundiu contra um canto da sala um outro canto, em açúcar, que vinha se sobrepor e aderir ao canto real, e tinha a aparência de algo orgânico, quase em decomposição, mas oferecido aos visitantes para ser comido, experimentado. A escolha do canto não pode ser considerada casual, enquanto instaura um diálogo com obras fundamentais para a formação de um campo expandido da escultura na segunda metade do século XX: no final dos anos Sessenta, por exemplo, Richard Serra fez algumas esculturas, tautologicamente intituladas Splashing e Casting, jogando chumbo derretido nos cantos formados entre as paredes e o chão do ateliê do seu amigo Jasper Johns. Com seu aspecto inacabado, quase comestível, essas obras marcam o afastamento de Serra da produção mais convencionalmente minimalista. Nos mesmos anos (1968-69), Cildo Meireles iniciava a série Espaços virtuais: Cantos, que consistia em esculturas de madeira que questionavam os próprios princípios euclidianos do espaço, e a relação intangível entre a esquina de um prédio e o seu equivalente interno: o canto. Em ambos os casos, o objetivo era partir de um espaço fechado e doméstico, para fazê-lo explodir (seja fisicamente, com a ação quase violenta do splashing, no caso do Serra, ou mentalmente, no caso do Cildo Meireles). Já Caetano parece seguir outro rumo: a idéia de uma arquitetura comestível nos carrega para um mundo de sonho, mais próximo das fábulas dos irmãos Grimm do que do universo antropofágico ao qual o contexto brasileiro pareceria remeter. A Casa de Cupim (2005), uma pequena casa de térmitas apoiada num banquinho de madeira, confirma a leitura, insistindo na estranhante incongruência de escalas, tipicamente onírica: o planeta de madeira e cimento transformou-se em banco, mas a casa continua imensa para seus habitantes que, insensíveis ou talvez excessivamente apaixonados por ela, a devoram.
Obras recentes, em que o açúcar adquire formas nítidas e precisas (como convém a paredes que fecham caminhos e barram passagens, obstaculando a circulação), exemplificam o intuito relacional das intervenções arquitetônicas do artista, seu interesse pelo que acontece entre o espaço criado e o homem que por ele circula, e pelas relações interpessoais que a modificação do lugar estimula e favorece. Os muros de rapadura erguidos como parte do conjunto intitulado Algo bom (2005), por exemplo, interferem em passeios, calçadas, o saguão da Estação Ferroviária da Calçada, em Salvador, e até ruas de automóveis, estabelecendo, assim, uma nova deriva, segundo as palavras do próprio artista. A presença, na trajetória do Caetano , dessas intervenções parecem também confirmar a pertinência da sua produção no contexto internacional. Barreiras, permanentes ou efêmeras, têm sido erguidas com certa freqüência, em anos recentes, por artistas como Santiago Sierra, que contratou o motorista de um enorme caminhão para que o colocasse transversalmente em uma das principais avenidas de Cidade do México, bloqueando o trânsito por vários minutos ; Narda Alvarado, que atingiu um resultado análogo fazendo enfileirar uma tropa de policiais bolivianos no meio da rua, em La Paz, para comer cada um uma azeitona ; ou o chinês Lin Yilin, que atravessou a Lin He Road, em Guangzhou construindo e desconstruindo um muro de tijolos cinzas, sob os olhares perplexos dos pedreiros dos infinitos canteiros de obras que rodeavam a avenida .
Mas a referência mais concernente seja, talvez, Richard Serra, cuja obra Tilted Arc foi cortada e removida da Federal Plaza em Nova York na noite de 15 de março de 1985, quatro anos após a sua inauguração, concluindo um processo enormemente polêmico. A obra, uma parede de ferro de quase 4 metros de altura e 40 de comprimento, cortava a praça obrigando os pedestres e, em especial, os que trabalhavam nos prédios adjacentes, a uma deriva ao redor dela. O epílogo, no caso das obras do Caetano, poderia parecer análogo: o labirinto na Estação Ferroviária da Calçada, por exemplo, é mordido, comido, os pedaços de seu muro arrancados, até não sobrar praticamente nada mais do que os vergalhões que o seguravam por dentro. Nos outros lugares, cabe imaginar, a cena deve ter sido mais ou menos a mesma, mas o que importa aqui não é o resultado final e sim como se chegou a ele. Mais uma vez, o que conta, para o artista, parece ser o processo, isto é, a maneira como as pessoas se aproximam, tocam, experimentam, trocam olhares e impressões, a atenção catalisada e como esta é aguçada pelo estranhamento provocado pelo material: mais uma vez, enfim, o objeto parece, apesar da sua evidente, ineludível materialidade, estar aí apenas pela capacidade que possui, de juntar as pessoas.
“Desvios”
Por Daniela Bousso
A obra de Caetano Dias emergiu no contexto dos anos 1990 e pode ser analisada a partir de um prisma sociopolítico, levando-se em conta o Brasil das duas últimas décadas. A ótica deste artista é parâmetro de entendimento da constante tensão entre mecanismos de poder e técnicas de resistência, e tem no centro de sua poética o corpo.
A complexidade na obra de Dias resulta de uma produção feita a partir de operações com diferentes meios, que vêm da escultura e da pintura propriamente ditas, passam por ações e intervenções na escala urbana, e desembocam na fotografia, no vídeo e no filme, além das ações e das intervenções na rede internet que geram sites e obras interativas.
O leque de questões propostas por Dias é abrangente, pois implica a criação de diferentes patamares metafóricos: a discussão da sexualidade, o deslocamento do estatuto da religiosidade, a presença de aspectos míticos e de fabulações. Caetano se coloca, ainda, muitas vezes, na posição de voyeur. A exaltação da sensualidade do espectador nas experiências relacionais, por último, configura o amplo conjunto de ações e desdobramentos que fazem do corpo o protagonista significante capaz de gerar metáforas em sua obra.
Ao recriar o precário e ao lançar um olhar sobre o barroco, Dias promove interações humanas inseridas no contexto urbano de Salvador e discute a condição homossexual a partir de um patamar metafórico. E o faz por meio de uma estética homoerótica, mesclada a um forte sentimento de religiosidade. Um exemplo é a série Bestiário digital: a retirada das imagens da internet, que patinam em um possível limbo, pode ocorrer por assepsia e pela elevação do pornô ao sacro.
É no campo das intervenções urbanas, seja no espaço real ou no espaço cibernético, que podemos alocar a produção deste artista, que pesquisa diferentes modos de existência e diferentes modelos de ação no interior de uma realidade. A escala escolhida por Dias é a da recriação de sentidos e novas subjetividades a partir de uma estética que conjuga perfis simultâneos que interagem.
Pelas características da época em que vive, Caetano não enfrenta problemas em relação ao uso de um determinado meio na arte. Ao contrário, vale-se da convergência e da coexistência dos meios para retirar deles o sujeito e o objeto do seu universo.
Assim, quando o artista transfere as suas apropriações do plano analógico para o plano digital, virtual, globalizado, produz as séries Santos populares, Sobre a Virgem e Corpus Christi. Cada uma delas tem gerado inúmeras outras, dentro das próprias séries, e resultam em fotos, instalações, sites, performances e vídeos.
Na obra de Caetano, o interesse pela possibilidade de ressignificar o corpo remonta ao início dos anos 1990, quando se apropriava de gravuras confeccionadas pelos artistas viajantes do período colonial brasileiro para retrabalhar o olhar exótico daqueles. Mantendo trânsito constante entre construção e apropriação, Dias é um investigador das possibilidades dos meios e os coloca a serviço de suas reflexões. Utiliza sites de busca na internet para encontrar imagens de repertório erótico e reprocessá-las. Diluindo suas formas e desfocando-as, o artista as devolve à condição de anonimato: ao perder o foco, as imagens perdem a origem; os configuradores de identidade – olhos, nariz, boca, fronte – são alterados para mudar o significado imagético.
Em um segundo momento de seqüência operacional, o artista renomeou essas representações e criou as séries Santos populares e Sobre a Virgem. Promoveu um deslocamento no centro de gravidade do objeto considerado e realizou a mutação de sua identidade. E resgatou o sentido “sacro” da tradição popular. O resgate e a aproximação com a tradição popular não ocorrem em relação à forma. “A minha intenção não é a de virtualizar o real como tecnologia da forma”. Dias caminha no sentido oposto da forma representada na cultura popular. Cria pictorialidades no uso da fotografia, atualizando a representação do corpo: “Faço uso de recursos ‘desrealizantes’ para subtração de parte da matéria… também mesclo imagens da internet com registros fotográficos de lugares que freqüento no meu dia-a-dia”.
A pintura que se desfaz em suas fotos e a perfuração das Santas Bárbaras, para subtração da matéria, configuram atos de violação, de iconoclastia; o mesmo ocorre com o site Corpus Christi – de sentido ambíguo – no qual a imagem se desintegra onde quer que o usuário passe o cursor.
Todas essas ações de Caetano estruturam um processo de criação que constrói e instrumentaliza a perda de sentido. A criação de uma relação sensório/lúdica, que se estabelece como um jogo e promove interação, contém a percepção visual em sua gênese e propõe um confronto com a realidade. Afinal, as imagens escolhidas são partes significantes de um determinado contexto geográfico ou histórico. Por meio de ações que alteram o conteúdo “sígnico”, simbólico e formal, Dias promove “ressemantizações” que abrangem do espiritual ao estético, a despeito da tecnologização da cultura e da virtualização do uso do corpo no mundo globalizado.
As ações “iconoclastas” criadas por Dias parecem beirar a abjeção, mas as aparências enganam. Os títulos das obras evidenciam seu constante ir-e-vir entre a construção e a desconstrução. Criam antagonismo para desestabilizar um sistema dado a priori. Talvez Caetano não acredite exatamente em uma aproximação com o sacro. A tentativa de redução da carga simbólica sacro/religiosa coloca a imagem em um plano mais humano, aproximando profano e sacro. Nessa intersecção, transparece a tentativa de reduzir a culpa, situada entre o desejo e a proibição. O artista subtrai para neutralizar uma pulsão de morte. Na era cristã, a alusão à negação do corpo revela um desejo de reafirmá-lo. É uma forma de promover uma espécie de utopia do corpo pela não-negação.
A afirmação do corpo passa a ser a proposta de um outro modelo de gestão social, uma vez que ele é o espelho da nossa sociedade. A religiosidade, nesse caso, é aludida, mas não acontece de fato. A elevação do profano ao sacro é simulada, uma quase-sacralização, já que a imagem sempre se desmaterializa: nas santas, nas fotos desfocadas ou no site Corpus Christi.
O site é quase um anti-site, pois não permite o acesso a algumas imagens. Concebido a partir do princípio do mito de Midas – no qual tudo o que era tocado por ele virava ouro –, cada vez que o cursor passa pelas imagens, que representam a Paixão de Cristo, elas se desfazem. Se, em Midas, o ouro pode ser associado à morte, a imagem desfeita pelo cursor também pode associar-se à metáfora da morte, causada pela culpa do desejo.
De um lado, esse campo de abjeção em sua obra pode nos levar à idéia de uma ação predatória, uma vez que “saquear” imagens da internet evidencia o caráter voyeurístico da ação. Mas, de outro lado, a ação erótico-virtual de Caetano Dias ocorre segundo a perspectiva dos cidadãos do terceiro mundo globalizado – em direção oposta ao tipo de abjeção encontrada no universo duchampiano ou no de Cindy Sherman –, nos quais a apropriação e a ressignificação acontecem para desestabilizar os estatutos vigentes da arte e do mercado. O campo de ação de Dias é o universo da tradição e do dia-a-dia baianos no contexto do mundo global.
Com essas ações, Caetano indaga sobre a possibilidade de se simular o prazer absoluto, por meio da “erogeneização” da imagem na internet. Investiga também a idolatria do corpo morto e nu, assim como a culpa, simulada no catolicismo com a ingestão do corpo do Cristo. Ao ironizar a idéia de que a representação iconográfica de Cristo é feita “à imagem e semelhança de Deus”, acirra o conflito entre culpa e desejo por intermédio da apropriação.
A virada do milênio traz uma outra mudança na obra deste artista que passou, a partir de então, a buscar mais e mais a participação do espectador. De 2001 em diante, Caetano introduz o viés relacional em sua obra. E propõe um outro trabalho para tentar, mais uma vez, desestabilizar a noção de corpo na cultura cristã: o Re-ligar.
Migrando do universo da cultura judaico-cristã para o universo da cultura oriental, o artista observa que, no Kama Sutra, o sexo origina-se de uma cultura mais permissiva, na qual flui a alteridade nas relações. Re-ligar propõe uma nova forma de interação ou reconciliação com o corpo, daí o aspecto quase místico do vídeo Re-ligar. Nas fotos, aparecem pessoas comuns sendo “re-ligadas” ao cotidiano por meio de ventosas.
Como no site Paixão de Cristo, o trabalho só se torna real caso interaja com o público, propondo, assim, uma mudança nas relações entre as pessoas. Nas ventosas, destituídas de sacralidade e sem componentes eróticos, a ligação entre as pessoas é realizada a partir de um marco zero. Retiradas da milenar medicina chinesa, as ventosas têm a função de drenar, purificar e liberar o fluxo de energia entre os fluidos do corpo, daí a metáfora da fluência entre pessoas. Re-ligar revela novamente a idéia de resistência, no sentido de desmascarar relações de poder para “reestabelecer” uma nova ordem entre o corpo e o seu imaginário.
Esse espaço de relações humanas e de elaboração coletiva dos sentidos, que instaura diálogos em simultaneidade com os aspectos religiosos, míticos e com o das fabulações, cria o interstício que favorece e amplia certas zonas de comunicação e, ao mesmo tempo, problematiza a esfera social a que Dias se refere.
O embate antes presente entre o virtual e o real no site Corpus Christi é alçado ao plano da materialidade com a efetivação do corpo tridimensional para ser consumido a partir da metáfora da antropofagia presente na obra Cristo de rapadura – Cristo em tamanho natural feito a partir do molde do corpo de um homem negro, disponibilizado ao público para deglutição.
A representação do Cristo morto evoca o sublime já enunciado em Bataille, onde erotismo e morte se confundem. Aqui, o artista deixa vazar o tênue limite entre a erótica e o sacrifício, propagados pelo cristianismo.
Água benta geladinha, por sua vez, é uma instalação composta por geladeira de bar, copos descartáveis e água, que convida o público a beber um líquido “sacro”. A ingestão da água torna (supostamente) o público participante passível de uma espécie de “purificação” ou “batismo” coletivo e, mais uma vez, o artista coloca o espectador diante de um experimento jocoso e irônico.
Canto doce 01, 02 e 03 é uma série constituída de instalação (01), de seqüência fotográfica (02) a partir da construção de um muro de açúcar que interdita uma rua em Salvador, e (03) da construção de um pequeno labirinto, com a participação do público, na estação ferroviária da Calçada em Salvador. As três ações da série geraram um processo de construção e deglutição das obras, caracterizando a evanescência e o efêmero. Como contraponto à estética da desaparição, agora se apresentam sob a forma de registro em foto e vídeo.
Já em Doce amargo, a cópia de um corpo masculino simula um indigente. Dias criou uma escultura sólida, fundida em açúcar, para ser depositada em espaços públicos como terrenos baldios, matas, praças ou lugares de passagem. Cada vez que a peça é exposta, a ação do público que se depara com a mesma deve ser filmada, como registro das diversas reações que podem decorrer do contato com a obra.
Santa preta de duas cabeças – fala que te escuto 2006 é uma intervenção urbana constituída de uma imagem sacra de uso popular retirada de seu contexto – comércio de ícones religiosos – modificada e re-inserida em seu lugar de origem. A imagem anômala, quando presente num lugar que não é mais o seu, cria um incômodo entre os transeuntes. Na feira livre, os transeuntes trocam olhares, ansiosos por entender o ícone bicéfalo, um ruído na iconografia sacra. Caetano Dias chama a atenção para a dinâmica religiosa como processo cultural. De certa forma, a mutação imposta ao ícone é, também, uma alusão às alterações dos organismos vivos, uma transgenia sagrada que fala da manipulação da vida.
Em Respire (Eternit), o artista discute a permanência das fantasias do mundo infantil escondidas no inconsciente dos adultos. Nesta videoprojeção, uma pessoa dorme dentro de um tanque Eternit cheio de água. O áudio reforça a idéia da água enchendo o tanque e sendo movimentada pelo personagem. Os temas recorrentes de subordinação do consciente às imperativas fantasias infantis e o afloramento de símbolos e imagens inconscientes são tratados aqui de forma mais contundente. O não poder acordar ou a sujeição a um estado de encantamento do qual não se pode sair torna-se agônico.
O sótão escuro onde se guardam os medos e os desejos, coisas velhas, sem uso, coisas do passado são cenários desse sonho. O vídeo fala do resgate da infância, onde o medo, a curiosidade e a fantasia acordam o encantamento. Esta obra também depende de interação com o público, que aciona um dispositivo que pode impedir ou facilitar a respiração do personagem.
Mar de dentro apresenta uma série de objetos escultóricos construídos com os mesmos materiais das favelas. Estes objetos não chegam a ser casas ou abrigos por sua condição de impenetrabilidade. São projéteis, são bólidos irregulares para rolarem sem rumo, realizados para serem acionados por moradores de uma favela de Salvador. São não-esculturas, sem lugar e sem rumo, que rolam morro abaixo a partir da ação coletiva.
Os atos criados por Dias não podem ser dimensionados a partir de uma unidade de medida. Sim, pois os seus atos relacionais visam apenas a criação de intersubjetividades, de espaços fluidos e móveis no interior do sujeito, e por vários instantes eles beiram a iconoclastia.
No ato de compartilhamento proposto nestas obras, o artista comissiona o diálogo, põe em prática a relação entre sujeitos e altera as formas de recepção da arte, essência da sua prática artística. A expansão do fim primeiro da obra e seu suposto destino (a instituição, a galeria, o mercado, a coleção privada) é constantemente realizada por Dias, o qual, em última instância e por vias indiretas, também coloca em xeque o valor de troca promovido pela obra. A troca aqui é feita de transitividades abstratas, que transcendem a noção de estilo, temática ou iconográfica.
A esfera das perspectivas inter-humanas que pretendem re-ligar indivíduos e criar espaços de comunicação entre eles, escapa ao imediatismo pragmático da lógica do consumo. O artista constrói agenciamentos, relações possíveis entre unidades distintas, alianças entre diferentes parceiros; ainda nos vídeos Uma e O mundo de Janiele – uma das mais delicadas obras produzidas pela arte contemporânea atual –, o que o artista busca são situações sociais mais justas, modos de vida mais densos na construção de espaços complexos de subjetivação.
Entende-se com facilidade, então, que a fotografia, o filme e o vídeo sejam os meios predominantes. São mídias que se prestam perfeitamente à formalização das suas ações, intervenções e experiências sensoriais, onde a idéia de transformação é um veículo que favorece a alteridade, porque o que Dias visa é um tipo de comunicação expandida que alcança o coletivo no interior do seu cotidiano. Os deslocamentos que promove são, sim, de ordem conceitual, no interior da linguagem, e não desprezam o conteúdo estético da obra.
Se os seus experimentos se insurgem contra uma situação de consumo e de massificação, nem assim eles se apresentam em detrimento do objeto artístico. Eles tomam a linguagem como parte integrante da proposta, têm forte carga semiótica e são veículos que conduzem ao “outro”. Para Caetano Dias inexiste a cisão entre objeto e ação, um é parte integrante do outro. Assim, enquanto a experiência sensória vem da intervenção, a fruição estética propriamente dita vem da obra materializada.
Vídeos, filmes e fotos, como a série Coleção de cabeças, por exemplo, traduzem a materialização do efêmero. A série, apresentada sob a forma de fotoinstalação, foi confeccionada a partir de esculturas em açúcar. O espaço- tempo em que estas obras são produzidas, em sua versão fotográfica, então, muda. Muda a nossa noção de realidade, o nosso senso dialético. Os registros das suas ações, estendidos à Coleção de cabeças, quando chegam a nós, são a única fenda para o vislumbre de uma “duração” que dialetiza com a estética do desmanche e da desaparição enunciada durante as intervenções. Quando olhamos para as fotos das cabeças, por acaso nos lembramos das suas vidas anteriores enquanto esculturas? Neste sentido transparece o contraponto a uma estética de desmanche, de apagamento, onde a discussão do efêmero tangencia a idéia de morte e desaparecimento como presença.
Pelas vias do registro foto/vídeo/filme, é como se Dias enfrentasse a morte, a tradição barroca e sua carga religiosa. É uma espécie de militância do desejo explicitamente oposta a qualquer noção de tradição, sem, contudo, afirmar a ruptura. É aí que o artista desdobra seus corpos em metacorpos e formula a enunciação de um corpo erótico e de um corpo social. É, também, uma forma de sobrevivência em condição fronteiriça, sempre em suspensão. No fio da navalha, Dias resiste e promove o enfrentamento do desafio da vida, na seara da visceralidade, dos grupos malditos, das minorias sociais e raciais, dos desvios.
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