(ultima atualização em abril/2018)
Rio de Janeiro, RJ, 1966.
Vive e trabalha no Rio de Janeiro, RJ.
Indicada ao PIPA 2010.
Arquiteta de formação, Anna Paola Protasio apropria-se de objetos comuns do cotidiano em seus trabalhos. A artista não se interessa, porém, apenas pelas dimensões formais e estruturais desses objetos: é também a partir dos anseios e fazeres, simbolismos e metáforas implicitamente associados a eles que a artista vem construindo sua poética.
Site: www.annapaolaprotasio.com
A artista visual Anna Paola Protasio trabalhou vinte anos com arquitetura e design de móveis. Com especializações em desenho, história da arte , desde 2007 trabalha com Artes Visuais no campo da escultura, instalação e vídeo – arte. Nestes últimos dez anos, Anna Paola apresentou suas obras individualmente em museus e centros culturais do Rio de Janeiro como Museu Nacional de Belas Artes, Casa França Brasil e Centro Cultural dos Correios e na capital de São Paulo no Mube, Museu Brasileiro da Escultura em 2012, além dos Sescs das cidades de Bauru, São José do Rio Preto, São José dos Campos e Ribeirão Preto. e em galerias no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Nova Iorque, Cartagena na Colômbia e Genebra na Suíça. Há ainda, coletivas como 27º Salão de Artes Anuário Embu das Artes em 2010 e a exposição A Nova Escultura Brasileira que aconteceu no Rio de Janeiro em 2012. Ganhadora dos prêmios do Ibeu em 2016, Itamaraty em 2011 e um primeiro prêmio de escultura em Shangai em 2011 e o prêmio em Embu das Artes em 2010.
Um crescente Limiar
Por Cesar Kiraly
1. O surrealismo, no âmbito artístico, foi responsável por tornar o sonho mais presente na vida cotidiana. O fato de ter utilizado também o cinema tornou o gesto notório. Tratava-se de impor núpcias antinaturais entre coisas, animais, feiras, praças, pessoas, casas etc. Este é um débito do qual não podemos nos esquivar.
2. O artista contemporâneo, em viragem importante, ao invés de simplesmente fazer o sonho contrastar, meteu-se na atividade de mostrar que a diferença estrita entre o onírico e a realidade, deve-se, tão somente, à convenção.
3. A questão não é de beleza ou feiura, de nenhuma forma o sonho é tomado em acepção de recompensa noturna à uma consciência tranqüila, mas sim de notar que o descobrimento da imaginação irreprimida, dá-nos conhecimento sobre a elasticidade da nossa realidade, para o bem e para o mal.
4. Há quem veicule que a insensibilidade ao onírico nos dias, à natureza imagética e pictórica das nossas paisagens diárias, seria-nos útil, porque assim estaríamos protegidos de nós mesmos. Nada mais falso ou imoral. Porque nem sequer somos homogêneos no que ignoramos e nem estamos condenados a sempre usar o lado cortante da faca. A imaginação é fardo e asa.
5. Protasio se sente atraída por tais questões que reputamos de primeira grandeza. A aparente dispersão de sua obra é sentida apenas por quem não reconhece a capacidade da arte contemporânea enfrentar as dúvidas mais importantes. Se muitos artistas se sentem confortáveis com a repetição de um único tema, ou com pequenas mudanças, de modo a fugirem da tensão causada pelo desconhecido, tal não ocorre na pesquisa dela. Não só ela insiste nas mais radicais buscas de material, e de portentosos formatos, como nunca se põe a frequentar perguntas para as quais já se sabe as respostas.
6. Neste quadro estão os trabalhos com os quais busca atribuir visualidade para as especulações da ciência sobre o comportamento da matéria. Merece destaque sua linda instalação com vídeo em que uma fila de ciclistas vestidos de vermelho se transportam de cenário bucólico para objetos escultóricos e transitam entre paredes e salas. Isso como se assistíssemos a simultaneidade da materialidade, mais ou menos como se a mesma pessoa que nos passou à frente dos olhos, repetisse-o de novo e de novo, desafiando a progressão temporal, em um insistente déjà vu.
7. No que poderia ser denominada uma preocupação com ontologia social, na instalação Revoada, Protasio multiplica pássaros dourados, por todo o espaço expositivo, pintados sobre intimidadoras lixas industriais, em bandos realizando movimentos distintos. Eles apenas são interrompidos por fios amarelos / distribuídos como facho de luz / a demarcarem fronteiras para o vôo. Este ciclo, assistido por pesadas runas de cerâmica, presas ao teto, e por uma vestimenta,
quase armadura, das mesmas lixas, cortadas um pouco menores, confeccionada nas medidas do corpo da artista.
8. Walter Benjamin escreveu em suas teses que a história é uma locomotiva rumando para o abismo. Essa sorte de enunciado, lido como messiânico, tem convencido a muitos, o que se reverte na aceitação das mais desesperadas cosmologias, que acabam por nos distrair dos efeitos ruins presentes na retórica do fim do mundo. Digamos, então, que essa seja uma leitura desatenta, que, na verdade, ele falava de um trem transpirando fumaça, como um cavalo de corrida, mas que seria mantido no mesmo lugar, pelas decifrações permitidas pela coragem diante da imagem, numa versão pictórica da vitória da tartaruga sobre Aquiles. Donde não estaríamos diante do fim, mas sim do Limite, como sabia Mario Peixoto. Se fosse isso, e tivéssemos coragem de parar e olhar o vazio de frente, entre nós e o desconhecido haveria um limiar. Estaríamos sobre um sólido dourado, de corpo mais bojudo do que o prolongamento que nos levaria até o abismo. Nós seríamos o olho, a esfera de cristal, decidida, paciente, a perceber.
“Instante Fraturado”, numa visão de físico
Por Cláudio Lenz Cesar
Talvez o gênio de Albert Einstein tenha sido o que mais se dedicou a entender a relação entre espaço e tempo na natureza, incorporando o espaço quadri-dimensional em nossa língua e cultura. Suas teorias, da relatividade restrita e geral, mudaram o conceito de tempo e espaço absolutos. Esses conceitos nos parecem estranhos pois são distantes da escala do nosso dia-a-dia e requerem um ferramental analítico e matemático sofisticado para bem compreendê-los. Diversos livros foram escritos para ilustrar essas ideias ao público geral. Na ficção quase poética de “Einstein’s Dreams”, Alan Lightman nos conduz por sonhos que o jovem Einstein poderia ter tido nos meses anteriores à sua descoberta da Teoria da Relatividade, imaginando diferentes maneiras de como o tempo poderia passar em diferentes universos. Junto com a Relatividade, a Mecânica Quântica nos trouxe conceitos ainda mais difíceis e fantasmagóricos, como a não-localidade, o tunelamento e a teleportação. São teorias de bastante sucesso – contra testes experimentais – e que nos permitem uma gama de aplicações práticas: do transistor – e assim toda a eletrônica e computação – ao laser, ressonância nuclear magnética, e GPS. A instalação “Instante Fraturado” de Anna Paola Protasio fala imediatamente ao nosso sentimento sobre o tempo – o antes, o agora, e o depois – misturado no mesmo e outros espaços. Ela atiça a mente com a noção de causalidade, da seta do tempo e a 2a lei da termodinâmica, e ainda remete ao tunelamento. Ela instiga e ao mesmo tempo traz um certo conforto, num reconhecimento tácito desses conceitos. Nada melhor do que o uso da bicicleta para representar o conhecimento “tácito”: simplesmente aprende-se a andar de bicicleta sem contudo se poder traduzir em palavras esse conhecimento. “Instante Fraturado” primeiro dá um nó na sua cabeça e depois traz a sensação de “eureca!”, uma ponta de compreensão tácita e questionamento dos conceitos de causalidade, tunelamento, teleportação, e da intricada relação espaço-tempo. Hoje, especulamos sobre universo-espelho, multiversos, e até um outro universo todo de antimatéria distante de nós. Será? A arte e a ficção sempre foram grandes aliadas da ciência nessa busca ao manter viva a chama da possibilidade do “diferente” e de comunicar essas ideias, algo bem vivo na arte de Anna Paola.
No Estupor Das Horas
Por Marisa Flórido Cesar
Saquear do cotidiano seus objetos, mas também os delicados desejos e os pequenos devaneios implicitamente a eles associados. É desse modo que Anna Paola Protasio vem construindo sua poética. Deslocados para o universo da arte, tais objetos colhidos do mundo, repetidos (como escadas e cones) ou solitários (como torres e cones de tricô), agigantados ou diminutos, pesados ou frágeis, formam, em geral, estruturas ou sólidos geométricos.
No MUBE estão reunidos, pela primeira vez, cerca de 32 trabalhos realizados ao longo cinco anos de sua recente trajetória artística. Arquiteta de formação, transparece em sua obra a herança construtiva da arte. No entanto, a artista introduz na abstração da geometria e em seu anseio de universalidade, elementos que vêm perturbar a rigidez matemática e a vontade de ordem da tradição construtiva. Como se, nas estruturas previsíveis e decididas do mundo, o estupor das horas banais com seus sonhos e dores, solidões e temores, viesse reclamar seu lugar e ocasião
Se, por um lado, as referências ao repertório da arte construtiva são evidentes, por outro, os fragmentos do mundo inseridos na abstração das estruturas tornam-se provocações visuais e sensíveis. Buscam responder a uma interrogação cada vez mais urgente para a artista: como fazer com que a arte responda à experiência humana em sua complexidade? Como fazer com que esse mundo se abra às sutilezas e às pequenas sensibilidades?
Para a artista, não bastava apenas deslocar objetos mundanos para o contexto da arte, esvaziando-o de seu sentido e função habituais. Tampouco importava conservar os significados socialmente determinados de tais objetos. Tratava-se também de tomá-los em toda sua intenção simbólica, a um só tempo amplificando-a e modificando-a, gerando um confronto entre o ascetismo das abstrações e a impregnação significativa dos objetos. Se a arte deve ser invadida pelos langores e sobressaltos do cotidiano, o dia a dia deve ser esvaziado de sua familiaridade (de sua cotidianidade, portanto) pela arte, para extasiar-se e assustar-se com sua excentricidade. Por isso ela usurpa os objetos do mundo: para devolvê-los em reverberações poéticas e em pequenos estranhamentos.
É então que o título surge em jogos semânticos, tecendo com a obra relações curiosas. Ou a artista toma a palavra em sua literalidade descritiva, tanto explorando
tautologias como a pluralidade e deslocamento dos sentidos; ou ela concede a esses objetos e obras, ao nomeá-los, um sopro vital, uma anima, como se os objetos corporificassem estados afetivos.
Na primeira estratégia, vemos um conjunto de trabalhos feitos com cones de trânsito recebe a denominação de “Sentidos”. Afinal, é para isso que se destinam, orientam o sentido do trânsito. Mas sentidos ali também supõem a direção e arranjo interno das peças ao estruturar as geometrias que a artista constrói: os cones se voltam para dentro, para fora, formam uma mórula ou uma estrela, tensionados em contenções e expansões. Sentido é ainda o significado transformado no deslocamento do objeto de seu contexto originário (do trânsito para arte). Sentido é, por fim, o que nos permite perceber e sentir nesse deslocamento.
“Desvio concreto”, por exemplo, é composto por dois planos separados e torcidos – desviados de sua ortogonalidade, portanto – por um livro entre eles, “Poesia neoconcreta” de Ferreira Gullar (afinal, o neoconcretismo pretendeu um desvio do concretismo, a emancipação do plano pictórico para a experiência imanente do espaço).
Na segunda estratégia, os jogos tautológicos são substituídos pela indexação ao significado simbólico de determinados objetos. Assim, se torres são signos de proteção e isolamento; escadas traduzem anseios de ascensão e transcendências; cones de tricô e fios de lã, tensionados por um agigantado peso de madeira que se contrasta à delicadeza do gesto de fiar, conduzem ao imaginário feminino e às fábulas infantis; e mundos são esferas de vidro entre o alcance das mãos e a iminência da queda e da destruição, entre delírios de onipotência e a impotência sentida nos prenúncios de uma catástrofe universal.
Em “Solidão” uma pequena torre de xadrez flutua transparente e ensimesmada no interior de cubos vazados de ferro e luz (em que vemos as referências aos cubos de Franz Weissmann e à vibração luminosa de Jésus Soto). Cubos que se autossustentam, interdependentes, pensos por cabos quase invisíveis. Se são estruturas euclidianas do espaço e tempo na tradição clássica, ali insinuam uma perspectiva introvertida, guardando a torre de cristal que paira como sem amarras ou contatos com o mundo exterior que a envolve. Uma deriva cercada, uma proteção asfixiante. Tal incomunicabilidade, tal solilóquio e recolhimento reaparecem em outras obras, como em “Sede eterna”, “Buscando a resposta”, “Liberdade vigiada”, “Insustentável leveza”. São gaiolas diáfanas, aquários envoltos em pesadas âncoras, redomas de vidro
apartando mundos que se enamoram, mas não se tocam. Cárceres de cristal encerrando prisioneiros de uma ilusória liberdade.
No sentido oposto da absorção melancólica, outros trabalhos apontam para a busca em transpor ou extenuar os limites, roçar o irrepresentável e o invisível, aquilo que nos excede e sobre o qual não temos controle. Acenam metafísicas improváveis extraídas do mais trivial dos objetos, como se fosse preciso pactuar secretamente com as coisas do mundo para descobrir o extraordinário perdido na rotina extenuante dos dias.
É assim que um bloco de concreto (material associado ao universo masculino e rude da construção civil) levita, imobilizado, como se ignorasse a gravidade e a brutalidade de sua matéria. “Pacto com o infinito”, lê-se na legenda do trabalho.
Se “Pacto” insinua a desmedida do espaço, “Instante fraturado”, “Quase”, assinalam a fugacidade do tempo e a pretensão de conjurar efemeridades e consumações, de paralisar os pequenos e os grandes movimentos — como a tinta que precipita da pá interrompendo o escoamento em um ainda não. Na vídeoinstalação “Instante fraturado”, bicicletas vermelhas atravessam paredes e paisagens, estendendo e invadindo o extra-campo da imagem projetada, como se fatiassem o contínuo temporal. Nesse corte, é como se o instante se debatesse entre a distensão e a fratura, entre o movimento e o repouso. Situando-se no limite visível do espectro luminoso, os vermelhos possuem os maiores comprimentos de ondas de luz perceptíveis ao olho humano. Seria possível percorrer o mundo (em bicicletas vermelhas) no limite justo entre o visível e o invisível?
A mesma alusão à transcendência surge em outros trabalhos. A artista apropria-se de escadas de obra como metáfora poética das elevações: escadas que, sobrepostas em tênue equilíbrio, constroem pontes interrompidas em direção à abóbada celeste. Escadas que, atraídas para um núcleo, sugerem construir um mundo ou dilatá-lo em explosões e vetores, apoiando-se no solo de modo instável em três “Leves pontos de contato”. Escadas transparentes e frágeis de onde pende uma TAG contendo a seguinte instrução de uso: “peso máximo permitido: uma alma por vez”. Escadas que terminam por trair sua função originária: conduzir ao alto. Afinal, são escadas impossíveis, são ascensões impossíveis. Toda ascensão é apenas um desejo, perseguido em reconstruções intermináveis, em escadas e pontes inacabadas. Arte não é o instante da transcendência, alimenta-se das perplexidades e vertigens das quedas, dos mistérios insolúveis do universo, das errâncias que fizeram o homem buscar, em vão, seu rosto refletido nas estrelas.
Sutilmente atravessado de doces miragens, o repertório poético visual da artista, revela-nos apenas que, entre o cálculo das frias geometrias e o inesperado dos afetos, a sólida sustentação que prometem as estruturas será sempre estremecida pela insustentável leveza dos dias e dos seres.
Ascensões impossíveis
Por Marisa Flórido César
O que chamamos “homem” é talvez indissociável do signo de sua queda e de seus desejos de ascensão. Desejos de corrigir o desvio essencial, recuperar a origem perdida, ou apenas elevar-se às esferas celestes para, quem sabe, tocar os mistérios do universo e dos deuses. Transcender, ainda que por um instante, nossa miserável e errante existência sobre este astro: não foi esta uma das promessas da arte?
Anna Paola Protasio é arquiteta de formação e transparece nesta exposição sua relação com a tradição construtiva da arte. A artista apropria-se de escadas de obra como metáfora poética das elevações: escadas que, sobrepostas em tênue equilíbrio, constroem pontes interrompidas em direção à abóbada celeste. Escadas transparentes e frágeis que parecem querer alcançar os raios solares ou deles pender. Escadas intocáveis, porque de pregos ou cobertas e vedadas. Escadas que, atraídas para um núcleo, sugerem construir um mundo ou dilatá-lo em explosões e vetores. Escadas que terminam por trair sua função originária: conduzir ao alto. Afinal, são escadas impossíveis, são ascensões impossíveis. Toda ascensão é apenas um desejo. A realização de seu ideal esteve sempre suspensa em reconstruções intermináveis, em escadas e pontes inacabadas. Arte não é o instante da transcendência, alertam-nos as escadas de Anna Paola. Ao contrário, alimenta-se das perplexidades e vertigens das quedas, dos mistérios insolúveis do universo, das errâncias que fizeram o homem buscar, em vão, seu rosto refletido nas estrelas.
Revoada
Por Cesar Kiraly
1. As paredes são tomadas. A imaginação aqui persevera e somos revestidos pela matéria áspera. Se há oposição? Ora, não é o liso ou o estriado, mas relevos muito pequenos organizados na pequena ofensa à ponta dos dedos cuidadosos. Para se mover nessa realidade é preciso desprezar um pouco a dor. Protasio precipita a superfície negra por todas as paredes, mesmo a coluna estrutural é envolvida. Há algo bem ameaçador nesse ambiente de lixas apontadas contra o mundo. Se viradas noutra direção, se friccionadas com alguma vontade, reduziriam todas as imperfeições a pó. Se investíssemos contra elas, certamente seríamos interrompidos por gotas de sangue. Sangraríamos antes de podermos vencer a agrura representada por essa forma de céu. Apesar de tudo isso, mesmo desafiando as chances, pássaros dourados cruzam o horizonte.
2. Impossível não lembrar d’A História de Gerhard Shnobble. Nela Will Eisner mostra que Shnobble é um ser humano comum, filho de pais comuns e criado para ser comum. Em seu oitavo aniversário, escorrega do telhado. Ao invés de morrer, flana lentamente até o chão. Seu pai, aturdido, reage dando uma surra no pobre, advertindo para nunca mais voar, magoado, o pequeno esquece da habilidade. Ele cresce e se torna empregado de banco. Depois de 35 anos de trabalho, ao invés de demitido, é transferido à função de guarda noturno. Um dia o banco é assaltado e ele é agredido na cabeça. Como recompensa, é finalmente mandado em bora. Sai andando desvalido pela cidade. Aparentemente por causa do golpe que levou, consegue se lembrar que sabe voar. Ele sobe até o último andar de um edifício. Após se jogar no vazio, começa a voar. Nota que ninguém o vê. Faz algumas piruetas e tenta chamar atenção de algum público. É atingido por uma bala perdida. Flutua até o chão e morre. Eisner pede que não fiquemos tristes por Shnobble, mas pela humanidade. Porque ela nunca soube que houve um homem que sabia voar.
3. Não é apenas com negrume que somos envolvidos. Como abraçar um corpo vestido de agressivas lixas que nos recebesse sorrindo? Esperaríamos o imediato nascimento de asas? Seria viável aguardar o compartilhamento dourado? Ou não. Seria, então, como falar sobre o contato dos animais espinhosos no frio? Aproximaríamos o mais que pudéssemos para o calor corporal, sem exageros contudo, pelo perigo da incompatibilidade de espinhos? Sim, é diferente, se o corpo em lixa se aproxima, pode ser que aceitemos parte do incômodo, como dinâmica de cordialidade, desde que seja conhecido, que abrigue todos os bons efeitos da familiaridade, com a qual a experiência nos presenteia e da qual inconscientemente somos devedores. Se o corpo é estranho, se a vida que detém pode ser tergiversada, ora, apenas quem buscasse justamente as lixas toleraria tê-lo abraçado. É assim tão fácil obter calor, de tal forma que se pode dispensar uma sua fonte só porque por ela não temos simpatia?
4. Parece equívoco tomar o ânimo como intrínseco. Nessa conta o mesmo para o inanimado. Quem nos diz não podermos nos confundir? Se admitirmos que a diferença está toda no calor, como prever? Seria o calor o signo do ânimo ou o
inverso? Não poderia a fonte de altas temperaturas estar por trás de afiadas lixas, estranhas a qualquer familiaridade? O calor é coisa posta, quem precisa dele o torna presente no corpo do qual se aproxima, um pouco como a beleza. Mas se sempre se precisa do calor, e se a animação é sempre possível, por que pode acontecer de desamparados sermos levados ao glacial? Haveria algo perverso na simpatia? Se sim, poderíamos ser levados a buscar calor onde não há e de ignorarmos que o frio pode ser uma forma de ânimo.
5. Protasio prolifera os pássaros, em matéria que nos evoca as dificuldades da simpatia. Como ser aquecido por lixas? São pássaros de mesma espécie, mas de ruidosa existência singular. Está claro que importa produzir o maior efeito de admiração possível: forçar a impressão. Para isso são feitos pássaros delicados, repletos de pequenos acidentes, em diferentes formações aéreas, são desejados, distanciados dos meios industriais em que são pousados, a tinta dourada, as placas de lixa, cada pássaro é um destino, ainda que se movam paralelos. O dourado industrial não serve para evocar beleza, mas para fazê-los perceptíveis, como ciclistas decididos a cortar o trânsito noturno, ou corredores em maratona pela madrugada, mais ainda, como marcadores em espécies animais ameaçadas etc.
6. Os pássaros são assombrosos. Eles estão quase sempre em bando para que possam se proteger. Ainda assim, se alvos do nosso animismo, se tornam representantes da liberdade. O desejo comum é ter a liberdade de voar como um pássaro. Por outro lado, não sem habitualidade, são percebidos como pragas. Um bando de pássaros famintos devorando lavouras é rapidamente associado à multidões de pessoas destruidoras. Uma nuvem de gafanhotos? Teríamos medo de tais portentos. Ser livre como um pássaro guarda violência assemelhada ao movimento que consome os recursos. Não é comum vestir uma estrutura com roupas de homem para espantar os pássaros? Seria o bando que nos visita o resultado de tal sorte de espanto? Se eles não são daqui, por que não voltam para o lugar de origem? Se assustamos daqui enquanto outros intimidam de lá, quando se daria o fim do voo? A beleza de querer voar como os pássaros é assombrosa, pois consiste em poder se mover sozinho.
7. Os pássaros se movem para onde precisam. Porém acabamos por achar que eles se movem para onde querem. Esse antagonismo nos leva aos espantalhos. Há intensa crueza em se espantar quem chega porque precisa. É justamente por essa urgência que espantar se torna tão problemático. O espantalho precisa ser tão terrível a ponto de obrigar o pássaro a voltar para o lugar de onde necessitava sair. Mais ainda, que os difusos custos de voltar sejam inferiores aos de enfrentar as forças que não permitem ficar. No fim, só rivalizam com os espantalhos as aves que se alimentam de animais mortos. Isso quer dizer que se simbióticas com a morte, o estrato da existência evitado por aquelas que migram, não há porque alguém se dar o trabalho de espantá-las. Elas nada têm a temer.
8. Fios dourados partem do teto e se prendem no chão, como um raio de luz que se expande. Protasio se move com destreza pelo deslocamento da matéria industrial. A função conceitual de tais fachos é não poderem ser atravessados, de interromperem o percurso. Lembram, mas não são luz. Não importa que sejam
elegantes no ambiente. O ponto é que só se pode passar por eles se se for mais estreito do que a distância entre os feixes. Não é linha imaginária, tão pouco um meridiano. Trata-se de uma fronteira. Não é bem uma gaiola. Porque essa é como se fosse uma prisão. Não há nada de bom na prisão para quem está dentro dela. Bem, salvo em histórias engraçadas, ninguém quer ultrapassar a cadeia para dentro de seus muros ou grades. A fronteira é bem diferente. Ela tenta instaurar ambiguidade onde na verdade só temos ambivalência. Nela se concentra o esforço de se ver a restrição ao trânsito como às vezes boa e às vezes ruim. As boas aves teriam na fronteira um aliado e as más um inimigo. Mas na verdade, as fronteiras são ambivalentes, quaisquer aves, para elas, são boas e más ao mesmo tempo. Como dissemos, mais protegidas estão as duras, de corpo estranho etc. A fronteira as têm como fronteiriças. Ao mesmo tempo boas e ruins, mas necessárias. Não se confundem com um homem que voa.
Fios e formas
Por Marisa Flórido
Uma trança pende de uma torre de pequenas torres de xadrez. Outra torre mínima, transparente, flutua solitária envolta em teias de cobre. Se uma ecoa na imagem de si, uma metaimagem, a outra se concentra em sua unidade. Se uma dirige-se ao alto, a outra reverbera para um núcleo ao centro. Se uma sonha fugas, a outra se recolhe ensimesmada.
Cones de tricô e fios de lã são tensionados por um agigantado peso de madeira que se contrasta à delicadeza do gesto de fiar ali aludido. Um bloco de concreto ergue-se suspenso, como se ignorasse a gravidade e a brutalidade de sua matéria. Gaiolas diáfanas, cárceres de cristal, caem prisioneiras de ilusória liberdade.
Objetos comuns que Anna Paola Protasio seqüestra da banalidade do cotidiano para reestruturá-los pela arte, para abrir os dias e as melancolias a outros sentidos e outras miragens. Se torres e tranças, fiandeiras e cones de tricô nos levam ao imaginário feminino, a suas fábulas e anseios; blocos de concreto e gaiolas vigiadas nos trazem à metrópole contemporânea, aos terrores e delírios de controle que nos assombram.
Deslocados para o universo da arte, tais objetos repetidos ou unitários, agigantados ou diminutos, graves ou frágeis, introduzem, no estupor das horas inexatas, os sonhos e as dores, as fantasias e as quimeras, a solidão e os temores. Revelam-nos o peso e a leveza dos dias.
Arrasto
Por Renato Rezende
No amplo e variado contexto da rica produção das artes brasileiras desde o pós-guerra, Anna Paola Protasio situa-se na difícil, mas frutífera, construção de uma terceira via – que talvez se constitua em um verdadeiro projeto civilizatório para o país – entre uma forte herança construtiva, ligada a conceitos racionalizantes de progresso e ordenação do mundo, muito em voga especialmente nos anos 1950; e outra, não menos vigorosa, relacionada a uma poética do precário, do orgiático e do sensorial, cujas origens formais e teóricas remontam ao nosso primeiro modernismo, nos anos 1920, recuperado nos movimentos da década de 1960. Isso significa que, se por um lado, em Protasio, a prática do deslocamento de objetos de uso cotidiano (ao lado de materiais tradicionais e nobres) para o universo da arte não significa a manutenção de seus significados sociais ou culturais, sendo impregnados por intensos simbolismos e conotações pessoais; por outro, esses significados, no contexto de suas obras, são submetidos a um rigor formal e gramatical que previnem todo excesso de subjetividade ou a pura experimentação sensorial.
Não deixa de ser relevante que tal característica retira – ou suspende, palavra que, como logo veremos, parece indicar algo caro à artista – o trabalho de Anna Paola Protasio do contexto imediato dos dilemas e debates paroquiais da história da arte brasileira; para inseri-lo no contexto mais amplo das pesquisas intelectuais da arte ocidental, ou, melhor dizendo, da história do sujeito ocidental desde o Iluminismo, com suas angustiante e concomitante necessidade de transcendência (filosófica) e controle (científico). A partir desses fortes elementos de pesquisa e intelectualidade – que marcam, mas não esgotam a obra de Protasio – seus trabalhos podem ser compreendidos como um idioma visual e material, que obedecem à uma lei (da sua linguagem) para produzir simbolismos, metáforas e alegorias que incessantemente apontam para seu próprio limite, no qual o sujeito (e o espectador) se sente aprisionado, usando os grilhões da própria linguagem para forjar, ou, ao menos, apontar para, possíveis estados ou espaços de transcendência ou de suspensão (da lei; do espaço e do tempo).
Entre o aprisionamento asfixiante do construtivo e do exato, e o horror do caos e da dissolução da consciência, portanto, se situa – como um ponto utópico, sempre a ser conquistado – a obra de Ana Paola Protasio, como um projeto possível de sujeito, enfim
transcendente e presente. Tal esforço está atualizado, em maior ou menor grau, em todas as obras desta exposição, desde a instalação “Transe”, em que um farol de alumínio lança seus raios luminosos ao infinito enquanto escuta-se o canto langoroso e profundo de um hino a Iemanjá (deusa e rainha dos oceanos), à poética instalação “Horizonte”, no qual um barco de acrílico transparente navega sem se mexer (suspenso no tempo e no espaço, ou congelado) em direção a um horizonte para sempre inatingível, desenhado na parede (transformada, portanto, em fundo infinito) por um nível a laser; passando por esculturas e pinturas (em metal, definindo uma água dura, ou seja, aquilo que é informe por natureza ganhando forma e rigor) que são, em sua exitosa tentativa de apreender, com nobreza e estoicismo, a sutil passagem de um estado de não-ser a um estado de ser – a uma terceira margem, onde o ser humano se encontra e se inventa –, pura poesia.
Educação
1990
– Formada em Arquitetura e Urbanismo – Rio de Janeiro, Brasil
Exposições Individuais
2016
– Revoada, Galeria de arte do Ibeu Rio de Janeiro, Brasil
2015
– Alma, Escritorio de Arte Gaby Indio da Costa , Rio de Janeiro, Brasil
– O Instante Fraturado, Nohra Haime Gallery, New York, EUA
2013
– Arrasto, Nohra Haime Gallery, New York, EUA
2012
– Insustentável Leveza, MuBE (Museu Brasileiro da Escultura), São Paulo, Brasil
2010
– O Instante Fraturado Centro Cultural dos Correios, Rio de Janeiro, Brasil
– Fios e Formas, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil
2009
– Ascensão, SESC (Serviço Social do Comércio) Bauru, São Paulo, Brasil
– Ascensão, SESC (Servico Social do Comércio) São José do Rio Preto, São Paulo
2008
– Ascensão, SESC (Servico Social do Comércio) São José dos Campos, São Paulo
– Ascensão e Labirinto , Casa França Brasil Rio de Janeiro, Brasil
2007
– Labirinto, SESC (Servico Social do Comercio), Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
Exposições coletivas
2016
– Couleur Matiere, Galerie Espace_L, Geneve, Suisse
– Objetus, NH Galeria, Cartagena das Indias, Colombia
2014
– Escultura, NH Galeria, Cartagena das Indias, Colombia
2013
– Somatório Singular, Galeria Murilo Castro, Belo Horizonte, Brasil
2012
– Salão de Arte Contemporanea do Itamaraty, Brasilia, Brasil
2011
– A Nova Escultura Brasileira, Caixa Cultural, Rio de Janeiro, Brasil
2010
– 27 Salão de Embu das Artes,Brasil
Prêmios
2015
– Salão de Arte Ibeu Rio de Janeiro, Brasil
2012
– Salão de Arte Contemporânea do Itamaraty, Brasil
– Primeiro Premio em Escultura e Instalação Florence- Shanghai, China
2010
– Terceiro Lugar em Outras Linguagens (instalação, video, fotografia e performance), 27 Salão de Embu das Artes, Brasil