(ultima atualização em abril/2023)
Rio de Janeiro, RJ, 1986.
Vive e trabalha no Rio de Janeiro, RJ.
Representada pela A Gentil Carioca.
Indicada ao Prêmio PIPA 2017 e 2019.
Obras na coleção do Instituto PIPA
Vídeo produzido pela Do Rio Filmes, exclusivamente para o Prêmio PIPA 2017:
Aleta Valente, a boca do novo mundo, por Alessandra Colasanti
Revista Nin vol. 2 (Editora Guarda-Chuva)
O nosso tempo é constituído de muitos tempos. Enquanto um bilhão de pessoas conversa via WhatsApp, outro bilhão vive nas mesmas condições que seus antepassados seis mil anos atrás, sem luz elétrica, água encanada, penicilina ou gadgets eletrônicos. Em 2016, 400 milhões de usuários publicam 80 milhões de fotos e são responsáveis por 3,5 bilhões de curtidas diárias no Instagram, enquanto isso, a cada 11 segundos uma menina tem seus órgãos genitais mutilados, e 140 milhões de mulheres sobrevivem a despeito dos clitóris ceifados com cacos de vidro, a frio, a céu aberto, sem anestesia, em nome da cultura, de deus, dos costumes e da tradição. Em 2016, o Brasil vive uma refrescante lufada no movimento feminista. A Primavera das Mulheres levou milhares delas às ruas exigindo a legalização do aborto. Sim, a interrupção da gravidez é considerada crime, e a cada uma hora e meia um homem mata uma mulher no Brasil. E nessa coexistência estranha de múltiplos tempos históricos ingressamos na Idade do Deixa Ela em Paz. Ela quem? Ela, a vulva, a vagina, a buceta. Ela, a boca do mundo.
E na manhã do dia 23 de fevereiro de 2016, o tema em questão era uma fotografia de uma vulva envolta supostamente em seu sangue próprio, uma vulva em seu período menstrual. Abaixo da vulva lia-se, “L’origine du noveau monde”, uma citação ao famoso quadro pintado em 1866 por Courbet, “A origem do mundo”. A dona da vulva seria uma figura intitulada Ex-miss Febem. Um título inventado pela artista e ativista Aleta Valente, corruptela de Aleta Gomes Vieira, seu nome de batismo. Aleta estudou História da Arte na UFRJ, integrou uma companhia de teatro, estrelou um documentário cultuado, é mãe, maconheira, mulher, moradora de Bangu, periferia do Rio de Janeiro e em 2016, causa alvoroço nas mídias sociais pela maneira explícita como apresenta seu misto de vida, obra e repertório polêmico. E naquela manhã muitas pessoas ficaram confusas se aquilo era narcisismo, exibicionismo, guerrilha, piada, neurose ou poesia.
É preciso ler Aleta dentro do campo das manifestações simbólicas. É esse o território de onde seu discurso é emitido. O Instagram, bem como Twitter, Facebook e outros, não é apenas uma rede social. O Instagram é uma mídia, como o teatro, o cinema, a televisão, o livro ou um muro. As frases podem estar em muitos lugares, até nos muros. A página do Instagram denominada Ex-miss Febem é a página da persona criada por Aleta Valente. Persona é um conceito de personagem onde criador e criatura se misturam. O que Aleta promove é sim, um show do Eu, um Eu inventado, um Eu construído, um Eu poético, um Eu ficcional. Sim, é um show, uma representação voltada para uma plateia, diante da qual ela constrói, destrói, desconstrói e desestabiliza estereótipos em torno de sua autoimagem e do próprio conceito de auto-representação. Ela se apropria das mídias mais corriqueiras, acessíveis, descentralizadas, abocanha sua linguagem, engole seu sistema de sinais e, a partir dos mesmíssimos códigos, vocifera sua lógica subversiva. Parodiando selfies, quebra as regras de conduta social e descortina a ficção não apenas do seu, como de todos os corpos à sua volta. Seu perfil materializa nosso Zeitgeist, suas contradições, excessos e dilemas. Encarar o Instagram da Ex-miss Febem como a página pessoal de Aleta é negar sua expressão simbólica e dimensão discursiva.
A partir da década de 1970, o termo Performance Arte é cunhado, a prática é categorizada como campo artístico autônomo e encanta a contracultura. A performance se torna um espaço de legitimação do olhar do artista sobre o mundo, sobre si, sobre seu trabalho e sobre a história da arte. O performer desenvolve sua obra a partir do seu corpo, suas inquietações e, não raro, seu objeto de investigação é ele mesmo.
É preciso ainda ler Aleta atrelada ao campo do ativismo artístico, ou seja, da arte como protesto político. Aleta é uma artista visual radical executando uma performance permanente com fins de protesto, uma performance cotidiana com fins de crítica social, uma performance em processo que confronta as normas culturais vigentes, com vistas a uma transformação da realidade, a libertação do corpo da mulher, a dissolução de ideologias machistas dominantes e o fim das minorias. Um protesto continuado que vai tecendo uma obra autorreferente, erótica, política, provocativa, transgressiva, iconoclasta, libidinosa, libertária, escandalosa, irreverente, irônica, escrachada, ambígua, instável, anárquica, vulnerável, pulsante, paradoxal, punk, sem perfume, sem filtro, sem firula, sem rascunho. É como a vida, opera no acerto e no erro, no risco, no agora. Ao mesmo tempo implicada e ingênua, imperfeita e coesa.
Aleta converge sujeito, objeto e suporte, tese e tubo de ensaio, artista e ativista, modelo e fotógrafa, médica e medusa, musa e antimusa. Abre seu corpo, sua carne, sua casa, sua cama, seu banheiro, seu fogão, seus amigos, seu cotidiano, seu imaginário e mídias sociais dissecando, ressignificando e pondo à prova estereótipos, tabus, os limites da rede e os seus próprios. Faz das ferramentas on line, ferramentas ideológicas, de seu corpo, palco, manifesto e bode expiatório, inquirindo, interferindo, alfinetando formas de poder e controle, bem como os modelos instituídos de suas representações.
Seu estilo destemido e dissonante ilumina uma série de subjetividades periféricas, expõe o corpo e a sexualidade da mulher de maneira inaceitável para a cultura heteronormativa, explicita uma atitude que o ideário patriarcal-machista-misógino faz questão de esconder, condenar, oprimir, apagar e castrar. Aleta desafia a tradição, cria ruído, tremor e horror na depiladas redes sociais com sua tempestade de bucetas, pentelhos, sovacos, sangue, drogas, pegação, gays, entulhos, caos, calcinhas, quentinhas e coxinhas de galinha. No seu Instagram Bangu é o centro do mundo.
Olho para Aleta e seu gesto e vejo o imenso serviço que ela nos presta. Ela é a mana que tá colocando a buça no sol. Aleta com sua vulva à solta ajuda a recriar o significado de todas as vulvas que virão. Aleta está dizendo, eu não sou parideira, nem sou cisterna de porra. Não gostou da expressão? A gente também não. Mas tá no dicionário. Ação e reação, uma lei da natureza. Colocar a buceta menstruada no Instagram é gritar pelos direitos da mulher. É dizer eu sou mulher a buceta é minha e eu faço o que eu quiser com ela. É dizer eu sou mulher o corpo é meu e eu escolho se quero mostra-lo, se o quero gordo, magro, se quero ter filhos, dar de mamar, envelhecer, se quero gozar, usar saia, usar barba, não usar. Não é a moral, nem os costumes, nem os bons modos, nem o bom gosto, nem a conduta burguesa, nem as regras estéticas, nem o cânone, nem, muito menos, o Estado que vão decidir onde, quando e como eu faço uso do meu corpo. E a despeito das censuras, continuar. E querer ter domínio sobre o seu corpo é, só, querer ser livre. Só isso. É deixar de ser objeto, deixar de sujeitar-se, e tornar-se sujeito. Como não amar essa menina?
Ex-miss Febem é tudo ao mesmo tempo agora. É narcisismo, exibicionismo, guerrilha, neurose, panfleto, sintoma, espelho e poesia. Não é piada. O papel da poesia é criar novos sentidos, abrir brechas nas sensibilidades. Como os rios que a cidade cobre, mas continuam correndo sob nossos pés, debaixo do asfalto, falando com a gente sem que a gente ouça. Se o voo da borboleta muda tudo, o que pensar de toda essa força sobre a qual erigimos nossa fálicas metrópoles? Um poema é uma marreta no asfalto fumegante que bate até jorrar água fresca na avenida. Aleta Valente está lá marretando, e isso incomoda alguns. Mas há de chegar o dia, em que o leite da terra voltará a jorrar, nesse dia, uma cachoeira vai correr para o alto, ao contrário, contra a gravidade, e isso ali, bem no centro da cidade. A partir de então, todos nos banharemos o quanto quisermos, o quanto quisermos beberemos, ficaremos pelados o quanto quisermos, faremos sexo ao meio dia o dia inteiro, e esse rio nos levará até o Sol, e teremos acesso ao Sol para sempre. E ninguém vai reclamar, ninguém vai reprimir, punir, legislar, matar ou mutilar. E aí, alguém vai lembrar daquela menina que ficava pelada na avenida, arreganhada, menstruada, marretando o chão, incomodando quem passava a caminho do trabalho, do cinema, da churrascaria ou da primeira comunhão. O papel da poesia é desorganizar o dado, o instituído, o fixo para nos fazer ver o que não conseguimos ver de outra forma.
Esse é o convite que Aleta Valente nos ofereceu naquela manhã. Vamos olhar? Vamos olhar para a gente? A genitália feminina quer dizer o quê, afinal? Quem fala quando olhamos para ela? Que vozes falam dentro de nós? Há quem tenha visto agressão naquela vulva envolta em seu próprio sangue.
Há quem tenha visto um veio derramando todo o sangue da humanidade. Eu vi coração. Eu vi vulnerabilidade. Vulnerabilidade é a coragem de se mostrar vulnerável. Vulnerabilidade não é fraqueza. Eu não estou falando de mulherzinhas, estou falando de Deusas. Tem o mundo, o mapa do mundo e a boca do mundo. Aleta rasga o mapa, vamos deixar a boca cantar.
***
por Ivana Bentes
Ex-Miss Febem nasceu em janeiro 2015 e morreu em janeiro de 2017 nas redes sociais, quando seu perfil no Instagram foi retirado do ar por excesso de denúncias. Um projeto político, ativista e artístico abortado e censurado por parte do público que o denunciou e pela política de “violação dos padrões da rede” do Facebook/Instagram que censura principalmente os corpos e a nudez femininos.
A estética do escândalo, a ressignificação dos selfies, o erotismo fora de lugar, o deixar correr os fluxos de todo tipo, vêm problematizar o consumo público do corpo feminino. Em uma sociedade em que o corpo das mulheres é utilizado para vender pneu, cerveja, comida, carro, sabão em pó, casa, tudo.
Quando “não vende” nada, qual a potência disruptiva desses corpos? Diante da imagem do fluxo menstrual marcando uma legging branca, Aleta recebeu uma enxurrada de comentários de todo tipo que se atém a literalidade da imagem, na sua crueza. Discursos higienistas, misóginos e patriarcais que vão da abjeção ao ódio, passando pela celebração. Um debate ativista pelas imagens que nos provoca a todos.
***
“Fluxos, fixos e fluidos”, por João Paulo Quintella
“Na verdade, a cidade do Rio não existe ainda.”
Le Corbusier, 1936
Existe um Rio de Janeiro, um projeto de Rio de Janeiro, um passado do Rio de Janeiro. Tudo em uma linha só, cheia de C A N T O S. Desgovernada, cheia de fraturas. Assim avança a paisagem como cidade. Uma espécie de confluência urbana do absurdo, um jeito de encontrar caminhos para a propagação de fluxos.
Nesse mover-se pela cidade e nos encontros fortuitos que surgem desse trânsito é que se instala o trabalho de Aleta Valente. Através de seu avatar no instagram, @ex_miss_febem, a artista se apropria do espaço virtual como arena, como devir, como cidade. O trabalho na mão, no instântaneo, forte componente da vida social carioca, é a via para a materialização de um trabalho que é unha, sangue, carne e osso, algo ainda estranho ao mundo digital envernizado. Não por acaso, ela foi banida do facebook diversas vezes em função das muitas denúncias, diretrizes impostas pelo pudor hipócrita corporativo, e haters engajados com muito tempo livre. Que bom. No instagram o tempo é outro, mais colado à RL (realidade). Com o celular como dispositivo e uma plataforma como meio, o escoamento de imagens se tornou mais natural. A superexposição fortalece os sinais vitais da @ex_miss_febem. O excesso confere movimento. A profusão é parente do descontrole. O descontrole (ou seria fluidez) é necessário. Essa fluidez corpo-cidade é o trabalho de Aleta Valente, a diluição do sujeito na experiência. A sedução, a sexualidade são as latências que desentopem as veias. Os fluxos da cidade se confundem com os fluidos dos corpos. Quando gera um meme com uma foto de uma quentinha sobre seu corpo semi-nu, avança sobre o imaginário da figura feminina no Rio de Janeiro, escancarando pontos de vista arcaicos que muitas vezes se fazem presente nos comentários. E o melhor são suas respostas, enfileiradas no acumulo frágil da tela onde pulsa um corpo vulnerável aos desfechos da cidade.
Por Aleta Valente
Eu me interesso por estigmas, nasci em uma família de mulheres com um vasto histórico psiquiátrico, cresci no subúrbio do Rio de Janeiro, bairro famoso por ser o lugar mais quente do estado e abrigar um prisão de segurança máxima: Bangu.
Talvez a grande vantagem desde aqui seja enxergar a cidade de forma panorâmica.
Aprendi a pensar a partir deste lugar onde parece não haver escapatória e a criação de outras realidades tornou-se uma saída possível. A ficção permeia meu dia a dia, inventando valores onde ninguém viu em um constante exercício de desconstrução e recriação dos imaginários que aprisionam a mim e meu entorno. Escolhi estudar arte não por uma virtuose precoce ou coisa do tipo mas estrategicamente como forma de acessar a universidade ( já que eu estava grávida e com pânico de ver minha vida resumida a maternidade) escolhi um curso com uma baixa relação candidato x vaga ( ed. artística) e pensei inicialmente que pudesse vir a ser professora, no entanto nunca cheguei a me formar. Ocupei diversas funções no circuito da arte : monitora, produtora, assistente de artista, montadora de exposição, ghostwriter, personagem de documentário, atriz de filme B e por um longo período de tempo participava ativamente do circuito me envolvendo no que dava, mas não imaginava meios de produzir arte a partir da minha própria subjetividade.
Até que há alguns anos atrás inicio uma prática de auto-representação através das redes sociais em um momento em que não fazia ideia de que esta plataforma pudesse ser uma forma de desenvolver uma pesquisa no campo da arte contemporânea. No começo, era um processo intuitivo e ao longo do tempo compreendi que era uma nova linguagem que me levou a construir uma série de perguntas sobre a representação das mulheres pelas mídias, abordando temas como: sexualidade, classes sociais, mídia de massa, consumo, legitimação, auto-representação e representação do outro.
Meu trabalho é o resultado de perguntas que me faço durante os confrontos sociais diários.
Formação
2014
– Escola de Artes Visuais do Parque Lage
– Escola de Belas Artes da UFRJ
2013
– Universidade de Verão, CAPACETE
Exposições Coletivas
2017
– “QAP: Tá na escuta”, Festival Arte Atual, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil
– “Black Hole”, Montreal, Canadá
2016
– “Resonating Surfaces”, Mendes Woods DM, São Paulo, Brasil
– “Além Terreno”, Átomos, Rio de Janeiro
– “International Photography Festival”, Santos, Brasil
– “Permanência e Destruições”, lugares públicos do Rio de Janeiro, Brasil
– “Composições Políticas”, Centro Cultural Municipal Helio Oiticica, Rio de Janeiro, Brasil
2015
– “Abre Alas”, Gentil Carioca, Rio de Janeiro, Brasil
2013
– Bienal de Belas Artes da UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil
Exposições individuais
2019
– “Superexposição”, Galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, Brasil
Residências e bolsas
2020
– Ganhadora da 7ª edição da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS com o projeto “Avenida Brasil 24h”, Brasil
2015
– Bangu I Art Residency, Rio de Janeiro, Brasil
– Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brasil
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