(ultima atualização em novembro/2022)
Vive e trabalha em Brasília, DF.
Membro do Comitê de Indicação do Prêmio PIPA 2017, 2019 e 2020.
Membro do Conselho do PIPA 2022.
Ana Avelar é professora de Teoria, Crítica e História da Arte, na Universidade de Brasília (UnB). Lá desenvolveu projetos curatoriais para a Casa Niemeyer entre 2017 e 2021, sendo curadora responsável pelo Programa de Residência Artística Internacional OCA. Realizou exposições no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP) e Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte (CCBB-BH), entre outros. Participa de júris de prêmios nacionais, como o Marcantonio Vilaça – do qual foi finalista em 2017 –, Pipa e Rumos Itaú Cultural, além do Jabuti em 2019. No mesmo ano, foi ganhadora do programa Intercâmbio de Curadores, promovido pela Associação Brasileira de Arte Contemporânea – ABACT em parceria com o Getty Research Institute.
“Fronteiriço, de Matias Mesquita”
Por Ana Avelar
Entre as nuvens e o concreto, o trabalho de Matias Mesquita acontece nas possibilidades da paisagem. É possível associar Fronteiriços a lugares comuns da cidade de Brasília pensados a partir da imensidão do cerrado – bastaria a máxima atribuída à Lúcio Costa: “o mar de Brasília é o céu”.
Entretanto, em termos de um assunto da representação, Mesquita conversa com referências mais distantes na história da arte, como, por exemplo, artistas viajantes que, partindo de um procedimento entendido como documental, buscavam reproduzir diferentes fenômenos atmosféricos criando uma espécie de inventário de nuvens.
Considerada um elemento enigmático da paisagem, em referência à complexidade de sua representação, cujo caráter gasoso impede de mensurá-la ou dar-lhe contornos fixos, a nuvem já configurou tema de pesquisa de historiadores da arte, sendo pensada sobretudo a partir de imagens produzidas pelo renascimento e o barroco.
Entretanto, a tipologia científica das nuvens realiza-se apenas no século XIX, quando ganham a nomenclatura – um tanto poética – que conhecemos hoje: cumulus, cirrus e stratus. Tais termos dizem respeito à morfologia – montes, cachos (de cabelo) e camadas, respectivamente. Note-se como é também uma tentativa da ciência de aproximar essa massa informe de algo que conhecemos no mundo, das coisas que possuem delimitação mais definida.
Ao nos determos mais de perto nos Fronteiriços, descobrimos, para além das nuvens, restos de paisagens, partes da copa de árvores e, aqui e ali, a indicação de contornos de edifícios; a sugestão de um skyline. Embora a pintura à óleo seja feita após a realização das placas em cimento, ela parece ter sido revelada pelo descascamento das camadas superficiais dessas placas, como se as paisagens surgissem aos poucos das camadas mais interiores. A montagem dessas placas encostadas na parede, entre a parede e o chão, evoca um tratamento dado a objetos arqueológicos recém-descobertos que, de natureza ainda desconhecida, esperam para serem identificados.
Para Mesquita, a percepção mais comum de que haveria, no trabalho, um encontro entre objetos de natureza aparentemente oposta – a nuvem e o concreto –, não configura seu interesse. Segundo ele, interessa a pintura e sua relação com um outro elemento construtivo. Mas, ainda, o caráter de expansão e contração do cimento; a efemeridade eternizada pela pintura aparecem ali. O objeto que é também plano pictórico, afinal, indica como a fronteira diz respeito à ideia de limites, ao mesmo tempo, como ela é, da mesma maneira, o ponto de encontro entre partes, coisas, áreas. Fronteiriços parecem indicar que na situação urbana contemporânea é concebível o espaço e um tempo para a contemplação.
“No Grande Vidro: a pintura das fuleirices”
Por Ana Avelar
[Texto curatorial da individual de Camila Soato “Virilha Suada”, exibida na Casa de Artes da América Latina (CAL/UnB) em abril de 2018 como parte do projeto “Grande Vidro”]
Na Brasília contemporânea de Camila Soato, evidencia-se a convivência improvável dos signos da capital idealizada, como na citação aos azulejos de Athos Bulcão, com a vida como ela é dos bares das superquadras. A indicação dos percursos frequentes dos habitantes, entre o plano-piloto e os arredores, é sugerida pela placa indicativa de Planaltina, Goiás, e pelas traseiras de caminhões que seguem seu curso. Personagens são apresentadas em cenas descontraídas, às vezes atravessadas por uma erotização sem ornamentos; o movimento é conferido por pinceladas rápidas em torno delas, lembrando a visualidade eficiente das HQs. Os cenários podem ser apenas desenhos indicativos; há silêncios no espaço pictórico; listras verticais sugerem profundidade (e remetem à rigidez de algumas pinturas modernistas), a tinta escorre das formas que parecem se dissolver junto à história heroica da capital. Soato aposta que nós, espectadores, somos bons entendedores e não está interessada em entregar todas as pistas.
A elegância da cidade ideal – conferida por suas edificações modernas ordenadas em escala monumental – cai por terra. No lugar dela, a rebolada do dia a dia. Essas pinturas podem ser vistas como cenas de costumes pintadas à óleo, com um pé na tradição, e outro – o esquerdo – no grotesco como procedimento simbólico e formal. A reunião de supostos contrários como esses orienta a produção da artista.
Nesse sentido, o conceito de “fuleragem”– que, na linguagem popular, reúne significados variados, desde o comentário sobre uma sexualidade sacana até aspectos de uma produção mal acabada ou de mau gosto – é entendido por Soato como princípio de organização do trabalho. É inusitado como o termo congrega acepções de naturezas tão distintas; ao mesmo tempo, como diz respeito ao amálgama da cultura brasileira, podendo ser encaixado na família de seus semelhantes: a gambiarra, a malemolência e a ginga.
Se, por um lado, a fuleragem – ou fuleirice? – traz uma emancipação para a pintura de Soato, incluindo-se aí uma comicidade evidente, por outro, o processo de produção é bastante elaborado, tanto em termos conceituais como naquilo que diz respeito à fatura. Ao escrever sobre as etapas do trabalho, a artista explica como monta um banco de imagens coletadas. A partir desse banco, acessa diferentes situações do cotidiano, para então cruzar essas imagens, promovendo alterações de todos os tipos. Apenas, então, projeta-as sobre a tela que será pintada. A reunião desses elementos díspares gera resultados provocadores, embora acabem fazendo sentido dentro de uma poética que procura elaborar o contemporâneo e, simultaneamente, falar de outros tempos. Como pontua Giorgio Agamben, a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”.
“Corpo do pecado: Rodrigo Sassi no Museu da Inconfidência”
Por Ana Avelar
[Texto curatorial da exposição de Rodrigo Sassi “Corpo do pecado, da redenção, da salvação”, exibida no Museu da Inconfidência em novembro de 2022 que abre o “Programa de Intervenções do Museu da Inconfidência”, em Ouro Preto]
Na primeira metade dos anos 1940, enquanto o globo testemunhava a Segunda Guerra Mundial, as nações lutavam por assegurar a união nacional. Nesse período, o Museu da Inconfidência – MDINC foi oficialmente inaugurado, representando um evidente interesse em fortalecer a identidade do país por meio do estabelecimento de ícones culturais que representassem essa união. Assim, o Museu integraria os esforços para conceber uma narrativa unificadora pautada numa identidade brasileira única.
Não menos significativo é o caráter identitário atribuído à Inconfidência Mineira, simbolizando a distinção entre portugueses e brasileiros. A antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, onde hoje situa-se o MDINC, foi edificada por Luís da Cunha Menezes, governador da capitania à época do levante e personagem satirizado por Tomás Antônio Gonzaga nas Cartas Chilenas.
A associação entre a arte colonial produzida no Brasil, lida pelas lentes do Barroco, e a identidade cultural nacional foi apontada pelos modernistas no início do século XX. Tal estratégia interpretativa convocava para si esse passado, mas seu sentido era positivo, pois visava-se defender a cultura brasileira em seu aspecto de apaziguamento. Para Mario de Andrade, o caráter “sincero” da arquitetura mineira do século XVIII surgia da integração entre elementos decorativos e projeto arquitetônico. Superior a outros barrocos, esse deveria constituir modelo de atitude a ser seguido pela arte brasileira.
Entretanto, na atualidade, a ideia de uma “identidade mestra”, singular e abrangente, como entende o sociólogo Stuart Hall, é substituída por uma noção identitária heterogênea e híbrida, composta de diferentes. Tendo o presente dessa realidade em vista, o MDINC se reposiciona, atualizando sua concepção de museu como um espaço com o qual nossas identidades múltiplas e complexas se identificam.
Recentemente, a definição do conceito de Museu, fruto de pesquisa empreendida pelo Conselho Internacional de Museus – ICOM, ganhou novas acepções, enfatizando seu caráter acessível e salientando a participação das comunidades na concepção e oferecimento das experiências partilhadas. É nesse contexto de renovação museal que se inaugura o Programa de Arte Contemporânea do MDINC com a exposição de uma obra produzida por Rodrigo Sassi para o Museu.
Artista que investiga a história das construções brasileiras a partir de uma perspectiva da forma simbólica, Sassi nos revela formas que estão entre nós e que nem sempre conseguimos ver. Numa proximidade com o pensamento do filósofo Ernst Cassirer, notamos que as formas são coletadas em nossa realidade e as reconhecemos no encontro com os tridimensionais do artista.
Neste sítio-específico, linhas serpenteadas, tanto sensuais como angulosas, delineiam a fôrma artesanal de madeira, como aquela utilizada por operários para moldar o concreto da construção civil brasileira ainda em nossos dias. Assim, mestres-pedreiros de ontem, tão comuns nas Minas Gerais coloniais, e mestres-de-obras de hoje encontram-se nas técnicas construtivas tradicionais, que perduram
dada a possibilidade de exploração dessa mão-de-obra especializada de baixo valor econômico. A história dessas relações de trabalho vaza por entre os vãos do tridimensional de Sassi, que, em sua sinuosidade, evoca ainda os ornamentos característicos de imagens de madeira policromada que visitamos no MDINC e nas igrejas do entorno.
Em 2022, “Corpo do pecado, da redenção, da salvação” nos provoca a refletir sobre como a vida colonial e suas expressões artísticas ainda são constitutivos de nossas múltiplas e diversas identidades. São elementos que nos identificam – inclusive salientando as perversidades que nos constituem socialmente.
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