“Fronteiriço, de Matias Mesquita”
Por Ana Avelar
Entre as nuvens e o concreto, o trabalho de Matias Mesquita acontece nas possibilidades da paisagem. É possível associar Fronteiriços a lugares comuns da cidade de Brasília pensados a partir da imensidão do cerrado – bastaria a máxima atribuída à Lúcio Costa: “o mar de Brasília é o céu”.
Entretanto, em termos de um assunto da representação, Mesquita conversa com referências mais distantes na história da arte, como, por exemplo, artistas viajantes que, partindo de um procedimento entendido como documental, buscavam reproduzir diferentes fenômenos atmosféricos criando uma espécie de inventário de nuvens.
Considerada um elemento enigmático da paisagem, em referência à complexidade de sua representação, cujo caráter gasoso impede de mensurá-la ou dar-lhe contornos fixos, a nuvem já configurou tema de pesquisa de historiadores da arte, sendo pensada sobretudo a partir de imagens produzidas pelo renascimento e o barroco.
Entretanto, a tipologia científica das nuvens realiza-se apenas no século XIX, quando ganham a nomenclatura – um tanto poética – que conhecemos hoje: cumulus, cirrus e stratus. Tais termos dizem respeito à morfologia – montes, cachos (de cabelo) e camadas, respectivamente. Note-se como é também uma tentativa da ciência de aproximar essa massa informe de algo que conhecemos no mundo, das coisas que possuem delimitação mais definida.
Ao nos determos mais de perto nos Fronteiriços, descobrimos, para além das nuvens, restos de paisagens, partes da copa de árvores e, aqui e ali, a indicação de contornos de edifícios; a sugestão de um skyline. Embora a pintura à óleo seja feita após a realização das placas em cimento, ela parece ter sido revelada pelo descascamento das camadas superficiais dessas placas, como se as paisagens surgissem aos poucos das camadas mais interiores. A montagem dessas placas encostadas na parede, entre a parede e o chão, evoca um tratamento dado a objetos arqueológicos recém-descobertos que, de natureza ainda desconhecida, esperam para serem identificados.
Para Mesquita, a percepção mais comum de que haveria, no trabalho, um encontro entre objetos de natureza aparentemente oposta – a nuvem e o concreto –, não configura seu interesse. Segundo ele, interessa a pintura e sua relação com um outro elemento construtivo. Mas, ainda, o caráter de expansão e contração do cimento; a efemeridade eternizada pela pintura aparecem ali. O objeto que é também plano pictórico, afinal, indica como a fronteira diz respeito à ideia de limites, ao mesmo tempo, como ela é, da mesma maneira, o ponto de encontro entre partes, coisas, áreas. Fronteiriços parecem indicar que na situação urbana contemporânea é concebível o espaço e um tempo para a contemplação.
“No Grande Vidro: a pintura das fuleirices”
Por Ana Avelar
[Texto curatorial da individual de Camila Soato “Virilha Suada”, exibida na Casa de Artes da América Latina (CAL/UnB) em abril de 2018 como parte do projeto “Grande Vidro”]
Na Brasília contemporânea de Camila Soato, evidencia-se a convivência improvável dos signos da capital idealizada, como na citação aos azulejos de Athos Bulcão, com a vida como ela é dos bares das superquadras. A indicação dos percursos frequentes dos habitantes, entre o plano-piloto e os arredores, é sugerida pela placa indicativa de Planaltina, Goiás, e pelas traseiras de caminhões que seguem seu curso. Personagens são apresentadas em cenas descontraídas, às vezes atravessadas por uma erotização sem ornamentos; o movimento é conferido por pinceladas rápidas em torno delas, lembrando a visualidade eficiente das HQs. Os cenários podem ser apenas desenhos indicativos; há silêncios no espaço pictórico; listras verticais sugerem profundidade (e remetem à rigidez de algumas pinturas modernistas), a tinta escorre das formas que parecem se dissolver junto à história heroica da capital. Soato aposta que nós, espectadores, somos bons entendedores e não está interessada em entregar todas as pistas.
A elegância da cidade ideal – conferida por suas edificações modernas ordenadas em escala monumental – cai por terra. No lugar dela, a rebolada do dia a dia. Essas pinturas podem ser vistas como cenas de costumes pintadas à óleo, com um pé na tradição, e outro – o esquerdo – no grotesco como procedimento simbólico e formal. A reunião de supostos contrários como esses orienta a produção da artista.
Nesse sentido, o conceito de “fuleragem”– que, na linguagem popular, reúne significados variados, desde o comentário sobre uma sexualidade sacana até aspectos de uma produção mal acabada ou de mau gosto – é entendido por Soato como princípio de organização do trabalho. É inusitado como o termo congrega acepções de naturezas tão distintas; ao mesmo tempo, como diz respeito ao amálgama da cultura brasileira, podendo ser encaixado na família de seus semelhantes: a gambiarra, a malemolência e a ginga.
Se, por um lado, a fuleragem – ou fuleirice? – traz uma emancipação para a pintura de Soato, incluindo-se aí uma comicidade evidente, por outro, o processo de produção é bastante elaborado, tanto em termos conceituais como naquilo que diz respeito à fatura. Ao escrever sobre as etapas do trabalho, a artista explica como monta um banco de imagens coletadas. A partir desse banco, acessa diferentes situações do cotidiano, para então cruzar essas imagens, promovendo alterações de todos os tipos. Apenas, então, projeta-as sobre a tela que será pintada. A reunião desses elementos díspares gera resultados provocadores, embora acabem fazendo sentido dentro de uma poética que procura elaborar o contemporâneo e, simultaneamente, falar de outros tempos. Como pontua Giorgio Agamben, a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”.