(ultima atualização em outubro/2016)
São Fidélis, RJ, 1976.
Vive e trabalha em São Fidélis, RJ.
Representado pelas galerias Roberto Alban e Athena Contemporânea.
Indicado ao PIPA 2016.
Ao dedicar-se tanto à recriação de obras preexistentes quanto a representações sem referencial fixo de figuras que compõem o imaginário cultural – o trabalho de Alexandre Mury dialoga, ao mesmo tempo estreito e libérrimo, com a história da arte. Dominando todo o processo de elaboração: do figurino, à cenografia aos modos de incidência da câmera, ele alcança a sua própria maneira de inserção na cena contemporânea, em especial entre os artistas que tomam a própria imagem como elemento maior de criação. Sua obra faz parte de importantes coleções, como as de Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva.
Site: www.alexandremury.com.br
Vídeo produzido pela Matrioska Filmes, exclusivamente para o PIPA 2016:
“Lisa”, 2013. Duração: 04’05”.
Fotografia, locução e direção: Alexandre Mury
Edição: João Henrique Costa
Agradecimentos: Filipe Rasta
Texto: Giorgio Vasari em “Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, de Cimabue até nossos dias”
Música: Antonio Vivaldi – “La Stravaganza” – Concerto No. 2 RV279
“O catador na floresta de signos”
Por Roberto Conduru
[Texto para o catálogo da Individal Galeria Roberto Alban, Salvador, BA, 2015]
Uma dinâmica ao mesmo tempo centrípeta e centrífuga constitui as obras de Alexandre Mury. Ele se faz onipresente para figurar outros, para ser muitos outros. Agora, empresta seu corpo a Exu, Ogum, Xangô, Iansã, Oxumaré, Oxum, Oxóssi, Ossanha, Obaluaê, Nanã, Iemanjá e Oxalá.
A princípio, a nova série – Orixás – pode sugerir uma ruptura com sua obra prévia. Contudo, é possível perceber como ele desdobra seu trabalho anterior, incentivando revê-lo à luz de seu atual momento. Não causa tanta estranheza o foco em divindades. Haja vista, por exemplo, seus São Sebastião, Shiva e Zeus Amon. Surpreende mais o modo como são representadas.
Antes secundário, ganha proeminência um hieratismo ora sóbrio, ora dramático, por vezes lírico. Mas a sacralidade inerente ao tema religioso não inviabiliza o humor algo herético que tem caracterizado suas imagens. Não tanto por explicitar sua masculinidade em representações de orixás femininos, pois a relativização dos gêneros é algo vivenciado nos terreiros a partir da fusãode diferenças em conjunções de corpos naturais e divinos. Pode causar mais incômodo seu corpo nu, sem marcas visíveis de iniciação e a princípio classificável como branco na complexa paleta constituída pelas relações étnico-raciais no Brasil. Se a nudez vai contra ditames e hábitos religiosos, para muitos pode ser ousado alguém não afrodescendente e não iniciado se apresentar não apenas como um mas como 12 orixás. Se usualmente Mury explorava a diversidade para dar vida a suas encenações, em sua exposição individual anterior, Eu sou a Pintura, concentrou-se em monocromos. Embora prevaleça o verde na série mais recente, interessa menos a cor e mais a autolimitação do artista à flora. Kosi Ewè Kosi Òrìsà; simples, direto, profundo, revelador é esse dito ioruba – sem folha não há orixá. Parafraseando esta expressão fundamental para o candomblé e outras religiões com matrizes africanas no Brasil, deve-se atestar: sem folha não há Orixás. Para representar divindades do panteão afro-brasileiro, ele tomou esta lei como princípio de ação e valeu-se apenas de folhas, flores, frutos, ramas, raízes e outros elementos botânicos.
O patrono de Orixás é Ossanha, o Senhor das Folhas, que rege seu uso litúrgico e medicinal. Eleição que permite pensar outras dimensões políticas do trabalho de Mury. Estas imagens estãovinculadas à ecologia. Sem folha não há orixá, nem fotossíntese e, portanto, oxigênio, vida no planeta. A experimentação com matérias in natura norteia ainda a série Os Quatro Elementos, com representações de fogo, ar, terra e água. Elementos que, por serem fundamentos dos orixás, determinam a estruturação das imagens no espaço expositivo e no catálogo. Sutilmente, estas séries remetem à crise mundial causada por desmatamento, escasseio de fontes e mananciais d’água, aquecimento. Falam de como se deterioram água, ar e terra, a Terra.
Orixás também é política ao propagar novas imagens de divindades afro-brasileiras. Reitera a vitalidade do candomblé, a atualidade de sua cosmovisão e de seu imaginário sacro. E reafirma a necessidade de difundi-los publicamente em uma conjuntura social marcada por cerceamentos e perseguições às religiões com matrizes africanas no Brasil. Outro diferencial destas séries é Mury ter criado suas próprias representações. Sem partir de obras preexistentes, evita remissões explícitas a ícones exponenciais da história da arte e da cultura visual. Suas imagens sãopróprias porque o artista lhes dá sua carne, se cerca e se veste de matérias que são essenciais aos entes representados: os elementos da natureza e as folhas específicas de cada orixá. Sãopróprias também por serem criações suas e de ninguém mais. Antes, para além de sua presença, sua subjetividade se delineava à medida em que colecionava imagens e ao conjugar acréscimos e subtrações nas releituras. Agora, ela corre outros riscos, manifestando-se desde o esquema norteador até as minúcias de cada mise en scène.
Ainda que a imaginação tenha agora mais peso do que a memória, permanece o diálogo cerrado com a História da Arte, anunciado desde a primeira hora de sua trajetória. Além de rever o tema dos quatro elementos, ecoam relações entre visadas e gêneros artísticos, entre objetos da visão e modos de ver. Enquanto os orixás têm enquadramento vertical que está mais associado aos retratos e autorretratos, as imagens dos elementos da natureza têm formato dominantemente horizontal – uma novidade na obra de Mury – que é tradicionalmente empregado em representações paisagísticas. Nesse sentido, a última série deixa uma questão: horizontalidade, paisagismo e autoimagem minimizada anunciam um novo caminho em seu trabalho, menos centrado na figura humana, menos autorreferente?
O confronto com a História da Arte também persiste no diálogo que Orixás mantém com algumas séries de representações das divindades afro-brasileiras. Sem citações, estas imagens se alinham com outras interpretações desse panteão. Notadamente, com as fotografias publicadas por Pierre Verger em seu livro Orixás, as representações feitas por Carybé em diferentes meios e, mais recentemente, o conjunto Bori de Ayrson Heráclito. Enquanto os desenhos, pinturas, esculturas e impressos de Carybé são reelaborações gráficas de suas experiências da vida religiosana Bahia, dentro e fora dos terreiros, as séries de Verger e de Heráclito são registros mais imediatos: no primeiro caso, de rituais religiosos; no segundo, de uma performance artística. Oacontecer de um rito também é primordial para que as imagens de Mury venham à luz. Múltiplas, indubitavelmente artísticas, suas encenações foram menos públicas e mais mediatizadas, derivando de ações que, embora tenham se dado muitas vezes em espaços de uso coletivo, convergiram para espaços restritos à atuação do artista e de seus poucos colaboradores. En passant, assinale-se: situações não isentas de lampejos mágicos. Características que aproximam sua série às poses fotografadas no estúdio, em preto e branco, por Mário Cravo Neto, algumas inclusive representando orixás.
Tendo em vista a potência do candomblé e da arte dedicada às relações entre Brasil e África na Bahia, Mury considerou necessário ir até lá para realizar Orixás. Não à toa, ele entende esta série como fruto de uma residência artística. Uma residência em trânsito, eu diria, entre territórios consagrados a divindades: São Salvador e São Fidélis, entre outras. Pode-se dizer que esta série foi iniciada há muito tempo, na cidade natal do artista, no Norte do Rio de Janeiro, a partir do jardim constituído por plantas comestíveis e de uso medicinal, portanto de cunho mais utilitário do que estético, cultivado por sua mãe, Hilda de Carvalho Mury. Com efeito, para fazer Orixás, foi necessário catar folhas. Literalmente, colhê-las em jardins, quintais, lojas de ervas, matas,florestas. Metaforicamente também. No candomblé, se diz que alguém cata a folha quando aprende algo. Com efeito, Mury conquistou conhecimento, catou folhas no candomblé, na arte e além.
O processo produtivo das imagens e a interlocução com os trabalhos de Verger, Heráclito e Cravo Neto fazem pensar se a fotografia é o fulcro da obra de Mury. Por um lado, é. Como sua obra prévia, há esta série porque a fotografia existe. No caso de Orixás, a velocidade do processo fotográfico é fundamental para preservar a fugaz existência desses tableaux vivants, com temporalidade por vezes brevíssima devido à curta sobrevida de algumas folhas e flores. Entre parênteses pode-se perguntar: sem fotografia há arte contemporânea? Por outro lado, não é. A Mury interessa menos a fotografia em si e mais o acontecimento, sua momentânea performance, quase como uma efêmera escultura, em uma cena viva capturada pela luz, processada e arquivada eletronicamente, impressa em papel.
Nesse sentido, é preciso ressaltar como a releitura feita por Mury de uma imagem de Ossanha criada por Carybé é a exceção que confirma outro modo de significar, ainda que não seja inteiramente novo, nem seja entendido como regra. Como Ossanha, ele habita a floresta. Mas sua mata é feita de outra matéria. Suas folhas são os signos, também ricos em sua variedade: ícones, índices, símbolos. Signos embaralhados, pois ele sabe que, assim como ocorre com as folhas no candomblé, a mágica resulta da mistura. A qualidade indicial é a que mais sobressai nessas imagens compostas por rastros luminosos de acontecimentos. Contudo, se não reverberam imagens preexistentes, elas mantêm a iconicidade na figuração dos elementos botânicos e do artista, já instituído como ícone, em sua obra e para além dela. E potencializam a dimensão simbólica, seja porque, mais do que pontos de chegada, os orixás abrem múltiplos significados, seja porque com eles, como visto, Mury fala de muito mais.
Mury adentra na mata, na floresta de signos, para catar a folha e aprimorar a mistura. E sabe que é preciso sacrifício, é necessário oferecer o corpo para que o sagrado se instaure. O sagrado da arte, bem entendido. Assim como a etnografia que a antecede, nessas imagens a incorporação é artística. Incorporação centrípeta, mas pouco autorreferente, pois visa à corporeidade da arte – ao corpo da obra e, centrifugamente, aos corpos por ela conectados. A imagem é encarnada, ganha corpo ao ser impressa luminosamente no papel. Mas cabe a seu corpo, mínimo que seja, conectar os corpos do artista e do público. O que permitiria abrir outros parênteses e questionar se há arte contemporânea sem corpo. Contudo, estas séries e o trabalho precedente de Mury ensejam ver algo mais profundo, apesar de óbvio – sem corpo não há arte.
“O catador na floresta de signos: Alexandre Mury na Galeria Roberto Alban”
Por Márcio C. Campos
Inaugurada ontem à noite na Galeria Roberto Alban, em Ondina, a exposição O catador na floresta de signos, que mostra fotografias elaboradas pelo artista Alexandre Mury tendo os orixás como tema central, reúne um conjunto de imagens cujo rigor estético permite uma continuidade no enfrentamento de questões que perpassam a sua obra, como a autonomia da imagem e a tensão entre repetição e diferença.
A obra de Mury faz vibrar a inquietação muito contemporânea do desequilíbrio em favor da mensagem e em detrimento do meio: fruto da cultura compartilhável, da intercambialidade de formatos, o conteúdo parecia retomar fôlego depois de décadas de primazia da forma.
Na época dos passeios virtuais pelos grandes museus do mundo, as suas reproduções fotográficas de exemplares famosos da história da arte, tematizam a questão do conteúdo de um outro ângulo: e quando a imagem é em si o conteúdo cultural que possuímos – e a estratégia de reconhecimento de repertório por parte do público é mecanismo essencial para o seu trabalho – como paradoxalmente amplificar a sua validade cultural, sem cair no fetiche da experiência da verdade material da obra única, que por si só é “apenas suporte” da imagem?
Aqui entra o espírito divertido e leve no tratamento da diferença na repetição: Mury reconstrói em estúdio – e por isso suas fotografias são elaboradas – as cenas retratadas em famosos quadros da história da arte, assumindo o protagonismo das figuras neles retratadas, para fazer valer a diferença na repetição, sublinhando e amplificando a autonomia da imagem, daquilo que ironicamente acreditamos como autônomo a cada uma das milhares de vezes que a reproduzimos.
O passo que Alexandre Mury dá nesta exposição é por isso interessante e arriscado: sair do campo da história da arte – com seus objetos únicos assinados por artistas inconfundíveis – para entrar no campo da cultura popular do candomblé – que além de ser impossível de ter um autor reconhecido como tal e, portanto, longe de uma compreensão estilística que contribua para a refeitura da imagem, possui um processo de construção de símbolos e imagens próprio, distintos da tradição da arte européia – é definitivamente um teste para as duas questões – autonomia da imagem e a tensão repetição/diferença, que continuam aqui presentes.
Nestas fotografias, que representam individualmente os orixás, Mury é mais uma vez o protagonista. A escolha pelo mundo vegetal como suporte de signos que identificam os orixás revela a mesma dedicação e apuro que a produção dos ambientes dos quadros já demonstrava. A delicadeza da obra é percebida aqui exatamente como seu traço mais autoral, ao se dedicar a um mundo de imagens tanto aberto em suas codificações, como saturado por clichês. A exposição Catador na Floresta de Signos revela uma grande sensibilidade de Mury ao se arriscar em tarefa tão difícil, separando da floresta de signos um estrato preciso para suas composições. É uma grande experiência, que passa longe da transgressão e ruptura, tanto com o conteúdo tratado como com sua trajetória até aqui, e é, com certeza, muito bem sucedida.
* Márcio C. Campos é Professor de Projeto, Teoria e Crítica de Arquitetura na Universidade Federal da Bahia, formado por esta universidade e Mestre em Arquitetura pela TU-Vienna.
“Eu sou a pintura”
Por Elisa Byington
[Texto para a mostra individual do artista na Athena Contemporânea Galeria de arte, maio 2014.]
A pintura é a ação. O corpo, a superfície sobre o qual o artista plasma tintas, faz colagens, superpõe panos e adereços. Ele é sujeito e objeto da obra. A fotografia é parte da construção e torna tangível o instante, a pose, o travestimento de natureza efêmera. As imagens ambíguas e transgressivas se servem do jogo de palavras, fantasias e recursos do corpo que encarna sentimentos, desejos e sonhos, supostamente não seus.
Os tableaux vivants de Alexandre Mury usam a parodia e o pastiche para encenar uma outra historia, outra arte, a partir de referencias célebres da pintura e da cultura em geral. Eles resultam de um processo ao qual o artista se entrega durante dias de árdua e meticulosa preparação de cenários, figurinos, maquiagem, para criar o simulacro fantasioso no qual se imerge corpo e alma.
O original não existe. Já se foi há muito no mundo de imagens virtuais com as quais o artista convive em suas viagens pelo web, onde tempos e lugares se confundem em uma simultaneidade desnorteante. Navegando nesta fonte infinita, Mury elege imagens icônicas com as quais estabelecer um dialogo, uma relação que inclua o olhar do observador em um jogo triangular. Na articulação de uma linguagem própria, ele aproxima imagens cultas e triviais, sacras e profanas, sublimes e banais, que superpõem mundos diversos e solicitam a memoria do espectador/interlocutor para a produção de sentido. A arte fala sobre a arte, o presente desliza no passado e vice-versa. É neste caráter dialógico da obra, que o artista escreve seu próprio tempo e identidade.
Mury promove a discussão das noções tradicionais de feminino e masculino nas imagens que testam os limites da androginia visual. Os travestimentos põem à prova o corpo do artista em sua identidade de gênero, raça, sexo: mulher-barbada, homem-cactus, morto-vivo, representação negra de figuras brancas. Ele empreende uma leitura carnavalizada – no sentido de mundo às avessas, definido por Michail Bakhtine – dos ícones da cultura e dos grandes personagens das letras, da história, da religião, da mitologia, feita com roupas, perucas, atributos postiços. O resultado é uma identidade duplicada, fragmentada e multiplicada em pseudo-autorretratos que a cada vez nos dão um rosto diverso, outra pessoa, outra historia, outra cor.
Para a nova série de trabalhos, Mury decide buscar na cor mais um fio condutor para suas experiências. Mas, afinal, o que é a cor? é luz ou matéria? Coisa ou pintura? Vibração ótica ou tecla de uma escala cromática espiritual, como queria Kandinsky? Na medicina de Hipocrates, a teoria do humores apontava a biles negra como razão da melancolia e a biles amarela, a da cólera. Ao tipo sanguíneo, avermelhado nas feições, eram atribuídas características de otimismo e alegria.
Além das vibrações luminosas e da experiência sensorial, as cores trazem consigo uma historia filosófica, politica, marcada por mudanças constantes ao longo da historia e significados opostos segundo a cultura, propondo outro universo de ambiguidades. O vermelho é cor eclesiástica ou da paixão carnal? É emblema da realeza ou das revoluções? Em sua investigação, Mury entrega-se com rigor à limitação monocromática, mesmo sabendo de antemão que para um “modelo vivo” a experiência jamais será total. Busca referencia em Whistler, Klimt, Kupka, Kokoschka, Picasso, Djanira, elegendo obras que trabalham a cor de maneira particularmente significativa. A adoção da monocromia inibe a exuberância colorística do trabalho anterior forçando-o a uma postura mais analítica, à indagação das características primordiais de definição da forma plástica e do volume, dos segredos do claro-escuro e das gamas cromáticas. Ele se submete à subtração de um vitalismo espontâneo em prol da reflexão e constrição às limitações de cada cor, às exigências de cada uma para que a forma e contornos sejam percebidos.
Em poucos anos Mury marcou para si um lugar singular e inconfundível no panorama das artes, jogando com a transgressão aos códigos sociais e o desafio à solenidade repressora dos cânones culturais. Adotou no seu trabalho um léxico de elementos corriqueiros, prosaicos e jocosos, com os quais compôs uma linguagem própria que flerta com o kitsch, abusa do nomadismo identitário que caracterizou a cultura Pop e aposta na liberdade fecunda e regeneradora da arte.
“Alexandre Mury: fricções Históricas “
Por Vanda Klabin
A alquimia poética que envolve os trabalhos de alexandre Mury tem a capacidade de nos trazer questionamentos, inquietações, provocações e até um insistente desconforto aliado às ambiguidades de um prazer libidinoso. Desdobrar-se e despersonalizar-se ao estabelecer o seu eu como centro de todas as suas obras, por meio de um procedimento descontínuo e lacunar, gerado ao transformar a própria imagem constantemente e introduzir o seu ser como agente de suas investigações históricas, é exatamente a junção de acontecimentos que o torna portador de uma experiência artística bastante singular.
Arthur Rimbaud, na sua correspondência Du voyant a Georges izambard (charleville, 13 de maio de 1871), faz uma afirmação contundente para a iden- tidade contemporânea, ao dizer: Je est un autre [eu é um Outro]. isso significa que o ser só pode existir através do movimento que gera ao diferir de si próprio. encontramos essa dispersão do eu ou multiplicação de personagens, no poeta português Fernando Pessoa e seus heterônimos, nas suas palavras, “uma tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”. Nos personagens tão diferenciados, múltiplos e controvertidos, como ricardo reis, alberto caeiro, Álvaro campos ou Bernardo soares, temos a pluralidade como o cerne de suas obras, “um sentir tudo de todas as maneiras”, ou podemos dizer “eu não sou eles”. Essa constelação de sentidos, essa vertigem de significados, indica um caminho convergente para um território instável da conjugação de uma reflexão sobre as diversas modalidades da pintura e da interpretação da história artística, elementos de uma espiral infinita de leituras que fazem parte dos fios que se entrelaçam no pensamento pictórico de Mury.
A sua multiplicidade se orienta pela busca de um conteúdo plural; trabalha ícones, cria enigmas e desloca o posicionamento de imagens da arte na constituição de um sistema no qual o seu corpo converte-se no motor do próprio quadro. Nesse processo de dessacralização, desloca o vetor histórico para um processo híbrido, de remeter-se a si mesmo, numa espécie de fusão amorosa para construir algo inesperado em territórios fictícios para realizar a sua inscrição no mundo.
O seu corpo constrói sua linguagem própria, atua como um elemento conectivo nas suas permanentes torções e contorções em busca de um outro, um exercício de plasticidade e de desdobramentos de sua existência personificados em outros personagens. tudo fala através ou por intermédio de um conteúdo concreto e outro ficcional, em que nada corresponde à realidade original, mas a uma realidade diferente, truncada, ambivalente. Na concepção de Platão, encontramos a ideia de mimese, da arte como imitação, como simulacro do real. Mury adota o procedimento constante da desconstrução e adulteração da história da arte através de uma abordagem irônica e mesmo enigmática, ao deslocar o posicionamento histórico de obras de arte para outro diálogo como um vol de parole [roubo de fala], uma verdade sonegada, mediante uma releitura da iconografia clássica.
Mury utiliza o próprio eu como o seu centro de ordenamento e para sinalizar as suas experiências estéticas, o seu eu como agente artístico que se converte na própria obra, é como se desempenhasse um ato escultórico, um transporte de significados, sempre colocados em confronto com outros personagens. essa continuidade de si nos outros, através de apropriações históricas e de um processo de desnudamento constante ou travestimentos é um dispositivo de linguagem que retira a distância e a áurea de inacessibilidade da obra de antigos mestres, uma espécie de embaçamento da nossa memória para as obras já familiares ao nosso olhar, algo paradoxal como ver e não enxergar. experimentar, romper a distância e a inacessibilidade, um conflituoso fascínio entre poder ser e poder não ser, como uma reconstrução arqueológica.
Suas ações ficcionais estão conectadas com as práticas contemporâneas por meio do registro fotográfico, quase como um ato pictórico. Produzem alternativas provocadoras, insólitas e muitas vezes irônicas. são olhares múltiplos, diversificados, ao dilatar questões subjetivas relativizadas evocando o pensamento no qual o eu é o outro que me pensa. Uma espécie de desordem de todos os sentidos, uma transformação constante, uma equivocidade.
Os meios pictóricos têm diversas entradas pela pintura, escultura, instalação ou performance, com leituras infinitamente abertas e não conclusivas que se infiltram no seu arsenal de imagens pelo trânsito livre da arte, seja pelo viés histórico, clássico, moderno ou contemporâneo. Os temas literários, mitológicos e religiosos também se fazem presentes no seu ideário e abrem um novo espaço para as suas preocupações visuais. esse jogo de diferenças e similitudes, equivalências ou dissociações remete ao pensamento de rené Magritte, ao escrever uma carta para Michel Foucault (23 de maio de 1966), na qual tece considerações sobre o que é falso ou autêntico, quando analisa o jogo entre as palavras o visível e o invisível: “as coisas não possuem entre si semelhanças, elas têm ou não têm similitudes”.
O seu processo permanente de se apropriar e realinhar os ícones históricos da arte e inseri-los em outra estratégia discursiva pode ser uma forma de negá-los, já que vai reinscrevê-los em ritmadas oposições. Problematiza, aciona novos significados para o trabalho de arte, deslocando o seu posicionamento histórico, quebrando as fronteiras de recepção que temos desses ícones e recolocando a emergência dessa imagem em circulação e reenervar a superfície representacional atrás de diversos procedimentos, numa vitalidade insuspeitada.
No dizer de Marcel Duchamp, “é o observador que faz o quadro”. Mury é, ao mesmo tempo, produtor e observador de sua própria obra. Há a presença de uma perda da identidade ao se despir de si próprio e representar a figura do outro, imaginativo e considerado sob o ângulo de um constructo real no qual nada corresponde à realidade inicial. Olhar para si próprio, criar uma intimidade através de espelhos de dupla face ou de desnudamentos constantes, como se interpretasse diversos papéis ao mesmo tempo, tem um caráter e uma estrutura ficcional da invenção de uma pluralidade de mundos possíveis, dos entrecruzamentos do seu trabalho, ora com intensidades irônicas, ora dramáticas.
A apropriação de formas existentes ou a criação de cenas imaginárias são a estrutura do seu trabalho e de sua organização acional, na qual esse universo torna-se efetivado pelo registro da câmara fotográfica. Na utilização da banalidade dos objetos encontrados na profusão cotidiana, Mury vai acionar novos significados para reconfigurar outra ordem no seu trabalho de arte. Desenvolve um vigor cênico e alegórico para acentuar o alcance estético de suas obras e, na organização desse discurso, reúne vários procedimentos como a escolha do cenário, do material e do kit de fragmentos que vão compor a cena e fundar uma obra resultante da sua imaginação. O aparente caos é uma reconfiguração para a emergência de nova intervenção artística. De aparência a princípio anárquica, dissonante, torna-se densa e complexa quando se materializa na superfície fotográfica.
A espinha dorsal é o retratar o próprio eu e, a partir desse ponto nodal, fazer operações de redução ou acréscimos que, apesar de suas origens em algumas obras históricas, adquirem matizes diferentes por um sistema de simulação e dissimulação do seu corpo físico que faz parte da cena constituída. No processo de destituição da imagem original, está presente uma ruptura entre a concepção e a execução física da obra, um fazer-se a si mesmo que se manifesta numa exacerbação simbólica e sensorial de aparecer no mundo. Por vezes estabelece uma fusão de linguagens artísticas, onde se entrelaçam os elementos de performance e de fotografia.
No processo que permeia o seu trabalho, estão presentes os cenários que, muitas vezes, desintegram-se no ato de fazer. Fragmentos, objetos diversos, componentes alimentares criam verdadeiras alegorias, um mosaico de elementos que adquirem diferentes vozes e sentidos. O seu corpo, principal protagonista e integrante da obra, tal como cindy sherman, ora se duplica ou se triplica por meio de um jogo de espelhos. Nesses exercícios de despojamento ou de acúmulo em situações ambíguas, Mury pensa a arte em torno da transformação do nosso olhar, a partir de uma reinterpretação, de releituras e, ao mesmo tempo, é um desafio que parece encenar a sua vida, ao discutir continuamente seus enigmas. Pensar a arte a partir de uma interpretação, agregar novas entidades e significações, decifráveis ou não, isso tudo me faz lembrar a frase de clarice Lispector: “decifra-me mas não me conclua, eu posso te surpreender”.
Na rota segura de ícones artísticos composta de grandes mestres, Mury faz seus próprios desafios e exercícios estéticos, reativa cenas ou representações, destituindo-as de seus territórios originais, alinhando suas ideias em contundentes sinfonias cênicas, produz metáforas e estranhas ligações repletas de significados, devolvendo-nos outra identidade, transitiva e limítrofe, das questões históricas.
Como artista gerador e agenciador de múltiplos sentidos, em sua lógica perversa, irônica e provocadora, Mury delineia nova grade de leitura para os objetos artísticos. torna-se o palco para uma inesgotabilidade de experimentações estéticas e configura uma nova e fértil discussão para os parâmetros da arte contem- porânea. segundo Ortega y Gassett, “Deus colocou a beleza no mundo para que fosse roubada”, e isso Mury soube potencializar e compreender.
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Referência Bibliográfica:
1. em Foucault, Michel. isto não é um cachimbo. 5ª ed. rio de Janeiro: Paz e terra, 1988, p. 82.
* Vanda Klabin é historiadora da arte, curadora de diversas exposições de arte e autora de artigos e ensaios sobre arte contemporânea. É formada em ciências políticas e sociais, pela PUc-rio e em história da arte e arquitetura pela Uerj. Fez pós-graduação em filosofia e História da arte, PUc-rio. Nasceu, vive e trabalha no rio de Janeiro.
“Alexandre Mury – Citação, Criação, Transgressão”
Por José Alberto Gomes Machado
Há que saber primeiro, conhecer profundamente, para poder transgredir depois.
Alexandre Mury é um profundo conhecedor das tradições da pintura ocidental, as quais subverte na sua obra artística de modo radical, por um profundo movimento de translação de sentido e por um total empenhamento, também corporal. O corpo do artista transforma-se em matéria de sua arte. E isso alarga poderosamente o conceito de auto-retrato. No caso de Mury, temos diversos auto-retratos em situação e em constante citação. São auto-retratos historiados, na velha tradição do Renascimento e do Barroco, em que o artista assume poses retiradas dos clássicos, numa subversão total, de sentido e de género. O artista barbudo reinterpreta com seu rosto e seu corpo diversos mitos, que ganham novo sentido, a partir da irrisão, do quase deboche, criando um efeito espantoso: o reactualizar de uma poderosa tradição, adaptando-a de forma contestatária e tremendamente original a uma visão contemporânea. Assim, Ganimedes, por exemplo, ganha novo e portentoso sentido, numa imagem recriada de fortíssimo impacto visual, para que concorrem, conjugados, todos os atributos de pintura e/ou fotografia e da escultura também.
A polissemia de um rosto e de um corpo detonam as categorias de masculino e feminino, de modelo e de reinterpretação, réplicas contemporâneas VIVAS de imagens de há séculos atrás, que sobrevivem como referenciais, como camadas de um palimpsesto a que se sobrepõem novas camadas vitais, o artista se transformando em sua própria obra, num exercício erudito e terrivelmente criativo de gozação total. Sim, porque raras vezes um artista se terá envolvido a tal ponto, que chega a transformar-se em novo signo para múltiplos sentidos, assumidos todos com feroz alegria, numa arte de vitalismo arrebatador.
Vejamos alguns exemplos.
O artista apresenta-se como Neptuno numa piscina insuflável, de coroa na cabeça e tridente na mão. O domínio do rei dos mares encolheu até ao limite do ridículo: seu corpo quase ocupa completamente seu domínio. A água recobre parte das pernas e metade de um pé – se o deus marinho se estender, um pouco que seja, esse seu domínio extravasará. Aqui, a pequenez da envolvente destrói o significado tradicional de poderio. Coroa, tridente e pano de pureza tornam-se irrisórios face a tal diminuição. O rei permanece, o reino encolheu até ao limite do suportável.
Numa reinterpretação de quadro famoso do maneirismo francês, Mury ocupa na banheira o lugar de Gabrielle d’Estrées, a amante de Henrique IV de França. No lugar das duas mulheres que protagonizam essa obra prima do erotismo europeu, temos agora o artista com uma boneca de plástico. O toque delicado no mamilo é substituído pela ameaça velada de uma agulha, preparando-se para fazer estoirar a boneca. Ou seja, para fazer literalmente o que toda a imagem faz de modo simbólico: estoirar e subverter o sentido. O caso ainda é mais grave: ao substituir a mulher nua original por uma boneca vulnerável e muda, o artista/protagonista transforma em objecto passivo sua parceira de imagem e transforma radicalmente o sentido original – machismo e reificação substituem uma das mais celebradas imagens lésbicas da pintura ocidental.
O desempenhar de vários papéis e assumir de vários géneros convém perfeitamente ao artista. Polivalência e transgressão multiplicam a sua imagem na sua viagem pelos séculos da arte europeia.
Num dos mais impressionantes exemplos, um Mury conspurcado e impassível assume o papel do Adão da Criação do Homem. Aqui, o ridículo deixa lugar ao trágico. É uma imagem de impossibilidade. O Criador está ausente e a Criatura se apresenta na sua digna sujidade, na assumida solidão, na fragilidade de sua nudez afirmativa. É uma imagem fortíssima, imensamente contemporânea. Aqui o artista se desnuda literalmente e é o sentido que o recobre. O Adão originário, o homem primigénio da Sistina está (re)vestido de eternidade.
Ao assumir-se como Dafne, o artista personifica um dos mitos mais fecundos da tradição antiga. A inversão de género, que é uma constante nestes exercícios de citação/transgressão, parece convir perfeitamente ao autor/objecto. A face está oculta, não porque repugnasse apresentar uma Dafne barbuda, mas para dar maior realce à cabeleira loira que oculta totalmente a face, às ramagens de loureiro, centrais para o mito e, sobretudo, à bunda delicada, verdadeira protagonista desta remitificação.
E justamente, este repetido mitificar personalizado nunca é mistificar, porque o artista se expõe plenamente, seja no que mostra de si, seja na honestidade audaciosa da nova leitura que propõe e personifica.
No Anjo do Getsémani, por exemplo, um banho dourado de barroco e um pouco de carmim na face, quase tornam credível esse Mury barbudo que esvoaça, assumindo com grande seriedade essa trasmutação, já não de género, mas de verdadeira natureza. Artista audacioso e criativo não hesita em ir além da própria natureza humana. Ao representar-se como Anastácia, torna presente o drama de uma natureza humana amordaçada pelo mais banal cotidiano.
A visão cumulativa de todas essas fotos audaciosas tem um efeito contraditório: fazer admirar o polimorfismo hiperfacetado do artista em sua arrebatadora imaginação, mas também despersonalizá-lo, esse Mury tornado um denominador comum de tantos temas da arte e da mitologia. Por isso, a barba assume diferentes coloridos, ao ponto de no final, o artista se interrogar sobre qual é a sua verdadeira imagem.
Pessoalmente, há duas ou três que me tocam de modo especial:
Em primeiro lugar, o Sátiro – talvez a mais vitalista de todas essas autorepresentações carregadas de cultura transcendida. Nessa imagem, a natureza é caravaggesca e o personagem remete para o Barroco do Norte, de Rubens e Jordaens, dois dos pintores que mais valorizaram a corporalidade (não admira, pois, a identificação, já que Mury é um artista cerebral feito corpo vital e pujante).
Em segundo lugar, a releitura da Madona do Leite de Jean Fouquet, obra prima da pintura francesa, representando outra amante real, Agnès Sorel. Há algo de sintomático nesse revisitar das concubinas reais… Aqui, a chave de leitura é o efeito de brancura quase sobrenatural, que também marca o original. O Menino Jesus é agora um boneco branco, como branca de talco é a barba da Madona/Mury, que assume o biberão na ausência de instrumento lactante próprio…. Uma série de bonecos azuis e vermelhos enquadram a cena. E não é que o mais espantoso é que essa gigantesca gozação inteligente não deixa de produzir um efeito de majestade? Esse artista é solene, solene seu corpo e sua barba de profeta. Como aqueles entertainers que nunca riem de suas próprias anedotas, Mury é sempre sério em suas representações. O próprio esgar sorridente do Sátiro é um assumir de papel e não um convite ao riso fácil. Aqui, o riso é muito sério. Repleto de referências culturais. O Ganimedes ou a Madona do Leite são imagens muito sérias, para levar muito a sério. Mury é um artista para levar a sério no seu dinamitar autocentrado de tantas obras primas.
Finalmente, há uma imagem que me impressiona muito e que traduz, para mim, muito do que é esse grande artista e qual o significado da sua obra. Tirada no terraço de um prédio muito alto, a foto mostra um Mury de costas, nu, sentado frente aos arranha-céus. Não pode identificar-se, seu rosto não se vê, só as costas e um laivo de bunda. Diante de si, na sua e nossa frente, a majestosa solidão construída da cidade. É essa justamente a metáfora do artista. A cidade esmagadora que se cuide. Porque dentro de um instante, o artista vai erguer-se e levantar voo, arrebatado como Ganimedes. Ou então, exuberante e exibicionista, virar-lhe as costas, voltando-se para nós com o olhar irónico do sátiro, ou afagando a barba branca de pó de talco, como quem diz: “olhem para mim, sou sozinho e nu e contudo sou tanta coisa, porque meus olhos viram o passado com olhos de dinamite e o detonaram e recriaram para o futuro, com essa arma que atravessa o tempo – a ironia, parente próxima da beleza.”
* José Alberto Gomes Machado é Professor Catedrático de História da Arte da Universidade de Évora, Portugal.
“Um fruto do Acaso”
Por Afonso Henrique Costa
No princípio da década passada, por volta de 2002 ou 2003, travei pela primeira vez conhecimento com os autorretratos de alexandre Mury.
Um artista, do qual não me recordo, havia me indicado um endereço na internet – uma espécie de blog – para que eu visse os trabalhos que lá ele havia postado. seus trabalhos não me interessaram e nem me disseram nada; mas como era um site coletivo, por puro acaso pude ver pela primeira vez um traba- lho de Mury – uma foto de seu rosto imersa em parte na água onde o reflexo a completava – um exercício de releitura de um “Narciso”, do qual gostei bastante.
Tempos depois, voltando a esse mesmo blog, vi novos trabalhos de alexandre Mury, sempre diferentes autorretratos, todos com uma estética de linguagem própria bem definida, com conteúdo bastante vernacular. Porém, dessa vez me identifiquei deixando um comentário elogioso e uma mensagem, dizendo que desejava travar contato com ele.
Nunca obtive resposta, mas no ano seguinte, descobri pelo “google” que ele tinha um outro endereço na internet onde postava suas fotos, um blog chamado “multiply”. Pude então lhe informar que eu tinha uma galeria no rio, a “arte 21”, e que gostaria de conhecer melhor seu trabalho, com o objetivo de representá-lo e até podermos pensar em uma futura exposição.
Desta vez ele me respondeu, agradecendo e sentindo-se envaidecido pelos meus comentários e pelo meu interesse em expô-lo. alegou que não era um artista, e apenas um curioso que gostava de fazer esses autorretratos, sem qual- quer compromisso ou objetivo. Mas que ele era uma pessoa muito simples, de origem humilde; que morava em são Fidélis, uma pequena cidade do norte flu- minense, e que lutava muito para conseguir cursar uma faculdade. ele então me informou que era filho de um pedreiro e de uma costureira, que sequer máquina fotográfica tinha, e que as fotos que eu tinha visto foram tiradas com câmeras de amigos. Que ele não tinha telefone e nem computador, que teclava de lan houses ou da faculdade; e que aqueles trabalhos pelos quais eu havia me interessado eram sua forma de criar algo, e que esses exercícios não eram trabalhos de arte, e apenas uma forma de veículo que ele precisava fazer para poder se expressar e exercer sua criatividade, algo vital para continuar vivendo.
Prossegui visitando esse seu blog para, assim, acompanhar seu trabalho com novas fotos postadas que sempre me surpreendiam, quando deixava comen- tários ratificando meu desejo em conhecê-lo e poder representá-lo na galeria.
Anos se passaram e, no final de 2008, a convite de meu velho amigo ronaldo Barbosa, que dirige o Museu Vale, fui a Vitória para prestigiar a abertura da expo- sição comemorativa dos 10 anos do museu. Durante o coquetel da abertura – era uma tarde de sábado – lembro-me que conversava com ronaldo e com o secretá- rio de cultura do espírito santo, que então me havia sido apresentado, quando vi pela primeira vez o artista, que pude reconhecer, pois sempre se autorretratava. Pedi licença aos dois, alegando que precisava falar com uma pessoa, senão a perderia de vista; e fui atrás de Mury, quando o abordei e me identifiquei para seu total espanto. eu lhe disse que ficaria em Vitória apenas naquele dia, e que retornaria ao rio na manhã seguinte, e que gostaria de estar com ele mais tarde, se ele aceitava o convite para conversarmos naquela noite, e dessa forma poder- mos trocar ideias. Nessa noite, ele me contou que havia se formado em publi- cidade em campos, e que havia se mudado para Vitória para trabalhar como diretor de arte em uma pequena agência na cidade. ele continuou afirmando que não era um artista, e que não tinha interesse em comercializar seu traba- lho, que ele considerava apenas uma forma de expressão e jamais como sendo um trabalho de arte. Mas esse nosso encontro, fruto de um novo acaso – pois também era a primeira vez que ele ia ao Museu Vale, levado por um amigo –, foi suficiente para que então eu conseguisse seu número de telefone e seu e-mail, para prosseguir nosso contato.
No ano seguinte, ele me informou que viria ao estado do rio para visitar sua mãe em são Fidélis, durante alguns dias que teria de férias, e contou que havia comprado um laptop e que agora tinha como organizar, editar e mostrar seus trabalhos. eu o convidei para vir ao rio, e depois de muita insistência, consegui que ele aceitasse esse meu oferecimento.
Quando ele chegou no rio, pedi que me mostrasse os trabalhos que tinha selecionado em seu laptop. escolhi alguns, que mandei imediatamente para um laboratório fazer as cópias, e lhe disse que as mostraria para algumas pessoas. ele ficou assustado, e me afirmou que não tinha dinheiro para pagar as “printa- gens”, mas eu lhe disse que não estava preocupado com isso.
Decidi, então, jogá-lo aos leões. O primeiro para quem mostrei foi Joaquim Paiva, de quem ele nunca tinha ouvido falar, e ficou muito nervoso quando lhe contei que Joaquim era o maior colecionador privado de fotografia do país. Joaquim foi o primeiro a comprar seu trabalho, quando adquiriu uma série de 16 fotos titulada “the sound of music”. Na manhã seguinte, fomos à casa de Gilberto chateaubriand, que adquiriu mais sete diferentes trabalhos. Nesse mesmo dia, à noite, mostrei seu trabalho para Vera Pedrosa, que comprou mais uma foto. assim, no outro dia, ele voltou para casa com 24 imagens vendidas, e com uma quantia no bolso que correspondia a alguns meses de seu salário, e principal- mente legitimado por colecionadores tão importantes.
Qual foi minha surpresa quando, cerca de dois meses depois, Luiz camillo Osório me procurou, indagando o contato com alexandre Mury, pois alguns de seus trabalhos seriam incluídos na mostra “Novas aquisições 2007/2010 – coleção Gilberto chateaubriand”, no MaM-Rio, cuja curadoria ele estava exercendo. Liguei imediatamente para o alexandre lhe comunicando a notícia, e bem me recordo o quanto ele ficou emocionado ao telefone.
Enviei-lhe as passagens para que ele comparecesse na abertura do MaM-rJ e, por mais incrível que possa parecer, na primeira vez que alexandre Mury entrou em um museu na sua vida… ele estava expondo! Lembro-me ainda que, nessa abertura, Luiz camillo lhe disse “… agora você está expondo em um importante museu e integra o seu acervo … isso não tem volta!”
Bem, o resto é uma outra história …
* Afonso Costa atua como produtor, curador, marchand e consultor no mercado de arte, tendo sido associado a diversas galerias, com as quais realizou antológicas exposições. Participou e ainda integra a diretoria e o conselho de diversos museus e instituições cul- turais. Foi responsável pela formação de importantes coleções, entre as quais a coleção João sattamini, em comodato no Mac/Niterói, na qual desenvolveu, sobretudo, seu fabu- loso núcleo concreto. Produziu inúmeras exposições no Brasil e no exterior, e foi respon- sável pelo lançamento de diversos renomados artistas. Nasceu e reside no rio de Janeiro.
“Mury Atrvés dos Tempos”
Por Guilherme Gutman
As perguntas fundamentais – como não poderia deixar de ser – insistem. (1)
O que vê alexandre Mury quando olha para as obras que inspiram os seus trabalhos? O que experimentamos diante de sua força criativa, que faz com que as suas obras deslizem para perto ou para longe dos originais?
O que vê Mury – do lado de dentro de suas fotos – no olhar daqueles que o observam sobre os ombros de gigantes?
Agora, na repetição diferencial das perguntas – tal qual sintoma sob novas roupagens –, obtém-se outro efeito: deitam-se sobre as suas imagens as camadas do tempo. Porém, não deitam poeira ou bolor, mas história.Ee em alguma dobra do tempo, trata-se da relação do artista com aqueles que o antecedem, com as obras que antecedem as suas, ou mesmo com as obras que – em um futuro distante ou próximo – se seguirão às suas e com as quais, por sua vez, o artista precisará mais uma vez estabelecer um diálogo.
Nesse processo, Mury trabalha bastante: ele pesquisa, monta, desmonta, acha, procura, representa, molda, costura, troca, posa, oferece e recebe, sendo friccionado pela história da arte e, claro, por seus próprios vetores e premências, o que equivale a dizer comichões de sua própria história. Ele rememora, repete e elabora (não seria essa a tarefa de todo artista?).
Sofre os rigores da angústia da influência (2) e o alívio sereno propiciado pela experiência – necessariamente fugaz – de tê-la superado por momentos. Lembremos como referência “Pierre Menard, autor del Quijote”, de Jorge Luis Borges (3), que talvez inaugure uma época em que as autorias são mais fluidas. Assim sendo, Mury faria samplers de clássicos.
Mas como é produzida a subversão que caracteriza as suas citações? Primeiro, é preciso achar o cânone – aqueles elementos mínimos que identificam a referência – para em seguida promover a corrupção da origem. Nesse processo laborioso, faz-se um novo original que aceita a primeira originalidade, com a qual dialoga, por vezes revelando-a ou resgatando-a.
Tomemos o caso de O poeta, de chagall; temos nele a garrafa inclinada, o gato e o movimento amaneirado que leva a xícara à face que é verde e de ponta cabeça… É possível reconhecer-lhe o original, mas com o desconcerto ou com o sorriso cândido adicionado. Às vezes, já com o riso franco, posto que os seus chistes exclamam o sarcasmo, o deboche, os materiais baratos e a atitude burlesca aquilo que a cena séria silenciara.
Mas o efeito produzido, embora fruto de cálculo e de engenho, também guarda espaço para alguma surpresa e é o próprio Mury que em depoimento fala de como foi atravessado pela estranheza ao produzir o seu Lucifer e, especialmente, a sua Monalisa. Estranhezas (urge notar!) entre si diferentes: medo e espanto, respectivamente.
Todos os caminhos levam a Roma?
Como metáfora geográfica da relação de um artista com o seu antecessor, temos todos os movimentos presentes na dinâmica entre o centro e a periferia. como ideia geral, aquela apresentada por carlo Ginzburg em seus estudos sobre a história da arte italiana: “se o centro é por definição o lugar da criação artística e periferia significa simplesmente afastamento do centro, não resta senão consi- derar a periferia como sinônimo de atraso artístico, e o jogo está feito. (4)
No caso da itália, veremos, a partir do segundo decênio dos Quinhentos, roma assumindo a posição central, antes pertencente a Florença e, ainda segundo Ginzburg, teríamos em Giorgio Vasari o grande consolidador da perspectiva da periferia como atraso. Para Vasari, prossegue Ginzburg, “a única solução para um artista nato e criado na província é a de estabelecer contato com o centro: só assim poderá entrar no jogo da inovação e do progresso”.
Assim, uma série de artistas de outras cidades italianas dirige-se a roma – centro do cânone – em busca do precioso tesouro romano e, sobretudo, imagi- nando escapar da escassez ou da ausência de estatura artística necessariamente suposta na vida provinciana. Mas mesmo Vasari pôde admitir que nesse jogo de dominação terá surgido, por acaso pelo desafio da emulação, “obras maravilho- sas” na periferia. Ginzburg procura achar o sentido forte dessas criações alternati- vas no termo scarto, lido por ele como “‘deslocação lateral repentina relativamente a uma trajetória dada’ que se usa, por exemplo, falando de certos movimentos dos cavalos: o scarto é, em suma, uma espécie de ‘movimento do cavalo’”.
Isso nos leva a são Fidélis – cidade onde Mury fez nascer a sua obra mediante movimentos suaves ou bruscos de cavalo. Podemos entender tanto a calmaria da cidade de interior quanto a inquietude nata de Mury, que explode inclemente no furioso deslocamento lateral de seu anjo do lar pelos descampados fluminenses; movimento que o faz dirigir-se à criação de uma obra – a sua obra. Entendemos bem a angústia do Brasil periférico em relação aos grandes centros do país; do mesmo modo, entendemos bem o olhar trópico do Brasil em relação às grandes metrópoles do mundo. É a mesma angustiada influência – produtora de inspiração e de inovação – que resulta na bela queda para o alto do Ganimedes de Mury, possuído pela águia americana nos céus de Nova York.
Seu trabalho tem uma semelhança de família com o de Yasumasa Morimura ou com o de cindy sherman, mas não deriva deles; vai ao encontro deles, a des- peito de suas diferenças específicas. De suas relações com o sistema de arte, ficamos com a respiração suspensa ao sabermos que sua primeira ida a um museu coincide com a sua primeira exposição. isso poderia fazer dele um artista espontâneo – como os ditos primitivos, como as crianças ou como os loucos – capaz daquele gesto criativo bruto que, sem paradoxo, repete e inaugura. Mas a sua vivacidade e inteligência o afastam da inocência virginal, dotando-o da pos- sibilidade antropofágica de incorporação e de devolução transformada, não por acaso presentes em seu abaporu.
Tudo isso pôde dar origem a uma liberdade semelhante às primeiras impressões que Mury recebe de suas leituras iniciais de Freud: o seu interesse pelo conceito de perverso polimorfo (5) e da possibilidade de obtenção de prazer em toda a superfície do corpo, a tinta sobre a pele, sem as delimitações restritoras das zonas erógenas. Ou mesmo o prazer obtido fora do corpo: os objetos com os quais contracena, o olhar do outro que lhe antecede e o olhar do espectador sobre ele em obra.
O fetiche das cores
Uma vez, a sua mãe lhe perguntou: “Por que você faz isso?”
É certamente pergunta fundamental e dificílima para qualquer um que faça qualquer coisa, sobretudo quando essa coisa é arte. Uma resposta que me ocorreu veio de uma de suas reflexões sobre o seu processo criativo: “eu penso muito em cores”. cores essas que, às vezes, são quase volumes, como formas numa sines- tesia interessante. Vejam-se os vermelhos e os azuis de sua Madonna rodeada de querubins e serafins ou as cores vivas dos estudos que vem postando sobre a cenografia de seu Vendedor de frutas. em sua obra, a cor se coisifica em objeto. e quando à frase “eu penso muito em cores” se junta outra de suas reflexões: “Meu fetiche é o azul”, apresenta-se espontaneamente a descoberta de que em sua obra a cor é não somente um objeto, mas um objeto especial.
Como já foi dito, Mury trabalha muito e nota-se que, nessa que pode ser uma nova chave de leitura de seu trabalho, ele se empenha em erigir esse objeto especial. É quando retorna a pergunta sobre a natureza das relações do novo objeto com aquele originário e original que o precede. Quando Mury decalca com diferença o que ele vela na imagem importa tanto quanto aquilo que ele desvela. em criação de adão – único de seus trabalhos que traz um nu frontal –, seu pênis, essa peça da anatomia masculina na qual certo anedotá- rio freudiano reconheceria a materialização do falo, aparece caprichosamente velado pelo barro.
A cena preparada por Mury joga intensamente com uma tensão de presenças e ausências; da possibilidade de fazer aparecer alguma coisa, bem como da possibilidade de fazer desaparecer algo. Mata e revive a obra original; faz nascer a sua criação do ventre daquela que a antecede e nesse trânsito pode perder-se ou reencontrar-se no azul.
Há o medo da ausência, da possibilidade de perder, de já ter perdido ou, tal- vez, de nunca ter tido e aí é que vem o espanto – o prazer e o susto – pelo aparecimento transformado da coisa (7). A obra original, já perdida nas repetições e nas marcas do tempo, reaparece materializada, personificada em cores à sua frente!
Mas não reaparece espontaneamente, Mury a erige lá onde a coisa havia antes desaparecido. Tendo certa representação da coisa, Mury trabalha pesado – em braços e em pensamentos – para colocar “a sua coisa” no mundo real. Nesse sentido, o seu trabalho é feito de um duplo ato criativo, no qual em movimentos simultâneos ele desmente o desaparecimento do original no mesmo instante em que lhe faz substituído pela novidade dos elementos que encena.
Mas ele não está sozinho. Quem suportaria a vida se não acreditasse que nem tudo já foi feito e que, por isso mesmo, é possível acrescentar algo novo ao mundo? a possibilidade desse ato criativo, que nesse ponto se confunde com a obtenção do sentido de estar no mundo (9), está fortemente presente em Mury. Tal como o seu rosto – seguro de si – misturado à multidão de rostos-máscaras e esgares em seu James Ensor.
Entrar em sua obra é também acreditar, ainda uma vez, em razões para seguir na vida, para reencontrar o novo no mundo e – se for possível – se deslumbrar.
***
Referências Bibliográficas:
1. GUtMaN, Guilherme. “Mury através do espelho”. Santa art Magazine, 8:86-9, junho de 2012.
2. BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
3. BORGes, Jorge Luis. Ficciones. Buenos Aires: Emecé, 2004.
4. GiNZBUrG, carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.
5. FreUD, sigmund. Tres ensayos de teoría sexual (1905). Buenos aires: Amorrortu, 1993.
6. FreUD, sigmund. El malestar en la cultura (1930). Buenos aires: Amorrortu, 1994.
7. LacaN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
8. FreUD, sigmund. Fetichismo (1927). Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
9. WiNNicOtt, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
“Mury Através do Espelho”
Por Guilherme Gutman
O que vê Alexandre Mury quando olha para um de seus trabalhos?
O que é experimentado ao se ver Mury retratado em uma de suas obras?
O que vê Mury – do lado de dentro de uma de suas fotos – no olhar de quem o observa?
Estar diante de uma das fotos de Alexandre Mury não é experiência da qual se possa sair indiferente; quer dizer, não é possível atravessá-la sem sentir um impacto ao qual se reage imediatamente – com espanto, estranheza ou encanto – ou que se absorve aos poucos, meditando-a, deixando que toda experiência se desloque até se assentar numa síntese final.
Não que seus trabalhos possam ser absorvidos suavemente, embora haja suavidade em sua obra; especialmente em sua nudez, que é forte e presente, mas não agride, que pode ser erotizada sem que seja ostentosa, e que em sua melhor definição (dada por ele mesmo) deve ser tal qual a nudez “que uma criança pudesse ver”.
Talvez como efeito natural de sua força, há, em cada uma de suas fotos, um convite para que o espectador se posicione em relação aos personagens colocados em cena. Identificações e distanciamentos que orbitam em torno de uma das marcas de sua produção: a referência a determinadas obras – algumas, ícones da história da arte e da literatura – ou a figuras do imaginário local ou universal – como o espantalho, o saci ou a sereia – criando o efeito especialíssimo de uma familiaridade em relação a qual é preciso achar a distância, num jogo interessante.
Neste jogo – que remete à topografia de um espelho – há, claro, a relação com um predecessor. Qual seria a natureza dessa relação? Certamente não é a da cópia fiel, ainda que realizada numa outra linguagem; ao contrário, há muita inventividade nas caracterizações, na iluminação, na dramaticidade e, além disso, as referências a elementos presentes nas obras originais – as suas “gambiarras”- são sempre aproximativas, lúdicas, tropicalistas e bem humoradas. Há nelas algo de bem brasileiro, seja no seu caráter de “improviso bem pensado” (trabalho de horas, dias ou meses, meticulosamente montado e ensaiado, ainda que o efeito final seja de espontaneidade), seja na utilização de materiais que, de algum modo, fazem pensar em Lygia Clark ou em Hélio Oiticica.
Por entre tantos personagens díspares e seus cenários inusitados – o conjunto todo formando um inédito cosmorama – encontra-se conforto na presença do semblante de Mury; ele está lá para receber cada observador e para, no mesmo movimento, lançar-lhe de soslaio, um olhar que faz enigma. De dentro da obra, tal qual em sua câmara fotográfica, abre e fecha o seu obturador para, através de suas lentes, receber invertida a imagem que deixa àquele que vislumbra.
“Mury através do espelho (e o que ele encontrou por lá)”
Por Guilherme Gutman
[Ensaio publicado na Santa Art Magazine #08, junho, 2012]
Alexandre Mury está em cada uma de suas fotos: é possível reconhecer-lhe os traços, por debaixo das tintas, das cores e dos artefatos abundantes; a composição não economiza em nada.
Em cena, Mury protagoniza um encontro que não é com os outros personagens com os quais divide o espaço: sua relação fundamental não é tanto a da linha horizontal que configura a trama da composição, mas a de um aprofundamento verticalizado no qual, na outra ponta do fio, está o espectador. Tanto é assim, que ele sempre opta por não se colocar duas vezes na mesma cena – se em alguns trabalhos há algum tipo de multiplicação de sua própria imagem, ela sempre se dá pela utilização de um recurso: pela presença de um espelho que a duplique ou a triplique, pelo desdobramento da foto em uma série, ou mesmo pela inserção de uma foto do artista.
Ele também acerta o alvo – e amplamente – quando, recusando qualquer fixidez interpretativa, faz com que a imagem representada deslize para fora do quadro: ao retirar de seus suportes habituais as características que, mecanicamente, esperaria-se encontrar neles, Mury sustenta a atopia de seus personagens. Tomemos o caso da Duquesa Feia; nela, combinam-se o masculino e o feminino, dobrando-se um sobre o outro, o homem e a mulher. Do mesmo modo, assiste-se à possibilidadede uma sedução que, à despeito da feiúra posta em relevo, insinua-se num erotismo de seios maravilhosamente falsos.
É que o diálogo de Mury é com aquele que se dispõe a olhar-lhe com veracidade e, porque não voracidade. Os outros elementos em cena – os bonecos no Salvador Dali, por exemplo – serão sempre coadjuvantes ou figurantes; a cena, repito, é sempre protagonizada por dois: Mury e o olhar de um outro. Talvez, a partir de um certo ponto, possa haver uma certa solidão de quem olha para os trabalhos, como se Mury gentilmente se afastasse, deixando o espectador com os seus próprios fantasmas, a percorrer um fio imaginário até o momento em que – surpresa! – Mury não estará mais lá.
A esta altura, caberá a cada um contar a sua própria história, construir a narrativa dos efeitos experimentados na obra, no escândalo e na candura dos fios que lhe foram tracionados para, então, inventar, cada um, a cada vez, o que há do outro lado do espelho.
* Guilherme Gutman cursou medicina na Universidade Federal Fluminense, fez residência médica em psiquiatria, quando iniciou sua formação em psicanálise. Fez mestrado e dou- torado no instituto de Medicina social/Uerj. trabalhou em muitas instituições psiquiátricas, onde pôde aprofundar a sua compreensão das relações entre arte e loucura. É professor adjunto do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, psicanalista e autor de vários artigos e capítulos de livro. Nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro.
“Um mundo reinventado”
Por Luisa Duarte
[Ensaio publicado no catálogo da individual do artista na Galeria Laura Marsiaj, novembro 2011.]
As fotografias de Alexandre Mury, exibidas na Galeria Laura Marsiaj, devem causar reações díspares. Desde a admiração diante do virtuosismo na releitura de obras da história da arte ou de cenas caras a um imaginário coletivo, até uma possível reticência diante do flerte com o kitsch presente em parte do seu trabalho.
Se olharmos para a histórica recente da arte brasileira, aquela tecida desde a passagem dos anos 1950 para os 1960, veremos uma visualidade quase sempre marcada pela sobriedade. A contemporaneidade no Brasil traz o traço moderno de maneira forte e, ao mesmo tempo, raramente sofre a influência da vida solar tropical. Influência esta vista na produção artística de outros países latinos.
Desde o concretismo e o neoconcretismo, até o contemporâneo, mesmo em trabalhos que roçam com o barroco, mesmo nesses casos há uma simultaneidade entre excesso e formas limpas que dá ao todo um rosto no qual identificamos a face moderna e sóbria típica dessa produção “brasileira”. Esse rosto não inclui o flerte com o kitsch, a aposta no excesso barroco, a paródia que lida com o humor e a ironia induzindo quem vê a rever o sentido daquilo que já viu. Todos estes aspectos inclusos no trabalho de Mury.
Assim, ultrapassar esse vício do olhar próprio de quem cresceu com uma visualidade “local” seria um primeiro passo para entrar no universo operado por essa poética. Comecemos do início. No caso de Mury é importante contar um pouco de sua biografia para entendermos melhor a sua obra.
O artista mora até hoje na cidade onde nasceu, São Fidélis, interior do Rio de Janeiro. Esse contexto é fundamental para entender o percurso que leva às imagens que vemos hoje. Sem acesso direto às obras de arte – uma dificuldade no Brasil mesmo para quem vive em capitais – a Internet e os livros foram a sua ponte com o mundo da arte.
Numa relação voraz com a rede, o artista já era interessado em fotografia quando se interessou pelo fenômeno dosfotologs (álbuns onde as pessoas publicavam fotos de suas vidas cotidianas). Um aplicativo de meados dos anos 2000 que hoje parece fazer parte da pré-história da Internet. Seis anos para um engenheiro da Google são milênios; para um historiador, um fiapo na linha do tempo.
Intrigado com aquele exercício narcísico das pessoas que exibiam a si mesmas diariamente via rede, Mury, em um ato permeado por certo sarcasmo, passou a fazê-lo também. Mas no seu caso a operação já começava mais complexa. Sempre se tratava de se mostrar travestido de um outro. Sempre ele, mas sempre diferente.
Seu conhecimento da história da arte através de museus virtuais e livros se somou as habilidades para marcenaria, costura, figurino, maquiagem. Saberes próximos da arte teatral, camada presente em sua obra. Assim, o artista passou a se apropriar de obras de arte – desde um Picasso à uma Cindy Sherman– e a reconstruir, ele mesmo, toda a “cena” original. Note-se que sempre existe a imagem do corpo humano nos trabalhos. Essa presença é fundamental em uma obra que abriga fundamentos da performance, do teatro e do cinema, bem como é atravessada por um ar que parece transpirar sexualidade. Mury sempre teve um olho na Internet e um outro nos livros de Georges Bataille e nos estudos de Michel Foucault.
Esse prelúdio é importante porque sinaliza para parte da gênese do trabalho. Se as obras de arte estabelecem uma relação canônica que engendra respeito e distância, Mury estabelece uma conversa que nos aproxima do “original” através de releituras paródicas.
Se toda a sua obra, até o momento, ganha corpo através da fotografia, a mesma, entretanto, é extremamente devedora da pintura. Notemos a construção, sempre muito rica em detalhes, de cada uma de suas imagens. As lições clássicas de composição, luz e sombra, cor, estrutura do quadro, caras à pintura, estão presente ali.
Umas das características que doam uma singularidade toda especial para este trabalho é o fato deste ser ao mesmo tempo virtuoso e precário. Não se trata de releituras feitas de maneira impecável, de maneira a transpirar um ar de mundo irreal típico da publicidade. Não é este o caso. A necessidade de realizar o trabalho com o que tinha à mão, com poucos recursos, potencializa sua face extremamente inventiva. Fazendo com que a obra “aconteça” de maneira forte, tendo o mínimo ao seu dispor.
Vejamos o caso no qual não é um trabalho de arte que está sendo relido, mas uma foto do cacique Juruna, deputado federal nos anos 1980. Lá está o indefectível gravador com o qual o cacique sempre estava acompanhado, e o índice de Brasília, seu local de trabalho. O congresso é reproduzido por Mury de maneira simples, mas aguda e bem humorada. Dois potes brancos, um virado para cima, outro para baixo, dois livros no meio, somente com a lombada aparecendo, e pronto. Basta isso para que a associação com a obra de Oscar Niemeyer seja feita.
Em um outro trabalho, “Abaporu”, o artista “refaz” a obra mais conhecida de Tarsila do Amaral fazendo uso de quase nada além de seu corpo. Sentado sobre o chão, um cacto ao fundo do lado direito, e a escolha certa da hora do por do sol para fazer o clique – basta isso para que tenhamos um “Abaporu” reinterpretado, despido da distância, à nossa frente.
Se no caso do trabalho de Tarsila temos a “cena” inteira desvelada, em uma outra, “Estudo para Seurat”, seu quadro “Standing Model, Study for ‘Les Poseuses” é traduzido de maneira econômica. Deixando de lado uma série de detalhes do trabalho “real”, o artista potencializa o que talvez seja o aspecto mais conhecido da obra do pintor, o uso da técnica do pontilhismo. Mury surge então nu, sobre um fundo esverdeado, sob uma “chuva” de confetes de diversas cores. Impressiona a capacidade de trazer à memória o cerne da obra de Seurat com tão pouco, de maneira ao mesmo tempo lúdica, enxuta e rica em potência visual para a imaginação.
Francis Bacon, Cindy Sherman, Marcel Duchamp, Quentin Massys, Picasso, e tantos outros. Da arte contemporânea ao renascimento, passando pela antiguidade, indo ao moderno, um estudo não linear da história da arte é realizado nas obras de Mury. Obviamente aquele que conhece o trabalho “original” poderá desfrutar de mais camadas de sentido. Mas não é necessário conhecer tudo para desfrutar dessa obra que, em essência, é extremamente contemporânea.
Quando relê uma Cindy Sherman, o artista está “refazendo” um trabalho daquele que é o nome mais conhecido na arte contemporânea por investigar em sua obra a idéia de simulacro. Diversas camadas do “real” forjadas na contemporaneidade fazem dessa idéia um ponto central para o entendimento da nossa relação com a realidade na época “pós-moderna”. Vivemos em um mundo no qual as reproduções, as cópias, surgem tantas vezes mais “reais” que o original, o primeiro, estes tantas vezes já perdidos ou mesmo esquecidos. Assim, ao mesmo tempo em que trabalha com a idéia de cópia, de diluição da autoria, de representação, interpretação, fantasia, de simulacro por fim, Mury opera também e fortemente com o registro da memória.
No mesmo lance em que somos postos diante de um nova imagem, nunca antes existente, e, quem sabe, diante de um novo significado para uma obra de arte ou imagem, somos remetidos àquela primeira, que deu origem à esta que hoje vemos. Nessa passagem, nessa intervenção, nessa tarefa de tradução, sobrevém a poética desse trabalho.
A reinvenção operada por essas fotografias convoca a memória e deflagra um olhar crítico, interpretativo. Se toda a obra de Mury é uma constante reinvenção do mundo, a cada visada para os seus trabalhos temos a chance de reinventar o nosso próprio olhar para um universo que parecia estanque, dado, catalogado, já visto e estabelecido.
Seja para rever aquilo que já conhecemos sob um novo ângulo, seja para passar a conhecer o que até então desconhecíamos, o mundo recriado por Alexandre Mury nos recorda que toda criação é algo que sempre solicita a tarefa da interpretação, ou seja, olhar a sua obra não deixa de ser a chance de cada um de nós também recriarmos o mundo em que vivemos, com o qual lidamos, à nossa maneira. Isso significa, ao fim e ao cabo, um índice de uma possível liberdade.
Exposições individuais
2015
– “O Catador na Floresta de Signos”, Galeria Roberto Alban, Salvador, BA
– “Fricções Históricas”, Centro Cultural SESC Glória, Vitória, ES
2014
– “Eu sou a pintura”, Athena Contemporânea Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ
2013
– “Fricções Históricas”, Caixa Cultural, Rio de Janeiro, RJ
2011
– “Auto-retratos”, Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, RJ
Exposições coletivas (selecionadas)
2016
– “Ao Amor do Público I”, Museu de Arte do Rio (MAR), Rio de Janeiro, RJ
2015
– “Novos Talentos: Fotografia Contemporânea no Brasil”, Caixa Cultural, Brasília, DF
– “Aproximações Pictóricas”, Athena Contemporânea Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ
– “África Aqui Agora”, SESC Quitandinha, Petrópolis, RJ
– “Novos Talentos: Fotografia Contemporânea no Brasil”, Caixa Cultural, Rio de Janeiro, RJ
– “Ver e ser visto”, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
2014
– “Novas Aquisições 2012/2014 — Coleção Gilberto Chateaubriand”, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
2013
– “Virei Viral”, CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, RJ
– “Rio de Imagens: Mostra Cristo Redentor”, Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro, RJ
– “Entrecruzamentos”, Athena Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ
– “Aproximações Contemporâneas”, Roberto Alban Galeria de Arte, Salvador, BA
2012
– “Espelho Refletido – O Surrealismo e a Arte Contemporânea Brasileira”, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, RJ
– “Foto Síntese 2012”, Athena Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ
– “Novas Aquisições 2010/2012 – Coleção Gilberto Chateaubriand”, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
– “Genealogias do Contemporâneo” – Coleção Gilberto Chateaubriand”, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
– “Retratos Performáticos”, SESC Vila Mariana – São Paulo, SP
2011
– “Foto Síntese”, Athena Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ
2010
– “Novas aquisições da Coleção Gilberto Chateaubriand – 2007/2010″, MAM-Rio, Rio de Janeiro, RJ
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