(ultima atualização em maio/2020)
Cuiabá, MT, 1961.
Vive e trabalha em Cuiabá, MT.
Indicado ao Prêmio PIPA 2018.
Gervane de Paula é brasileiro e nasceu em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, localizado na região centro-oeste do país, precisamente no centro geodésico da América do Sul, onde reside e trabalha desde 1977. Integrou a “Geração 80”, movimento artístico brasileiro de grande relevância nas artes plásticas, e desde então vem participando de mostras individuais e coletivas em museus do Brasil e do exterior. Sua obra tem sua natureza na cultura de massa, popular e religiosa, e trata do realismo social falando sobre as várias formas de violência urbana, partindo do cenário local para retratar o mundo em que vive. Sua produção está situada entre a pintura, desenho, objeto e instalação, utilizando diversos suportes e materiais.
Site: gervanedepaula.blogspot.com.br
Vídeo produzido pela Do Rio Filmes exclusivamente para o Prêmio PIPA 2018:
“O ANIMAL – Gervane de Paula – NO MUNDO”
Por Prof. Dr. Laudenir Antonio Gonçalves – UFMT, Associação Brasileira de Críticos de Arte – ABCA
Gervane de Paula nasceu na periferia de Cuiabá, Mato Grosso, em 1961, no bairro do Araés (grupo indígena extinto) onde reside até hoje. A poucas quadras de sua residência, em meio há tantas “bocas de fumo”, visitamos o seu ateliê denominado por ele de “Boca de Arte”. Desde os 15 anos de idade sempre foi um militante da arte e grande animador cultural.
Para quem não o conhece, a sua primeira grande inserção no cenário artístico nacional ocorreu em 1984, ao participar da exposição “Como Vai Você, Geração 80?”, realizada nas dependências da Escola de Artes Visuais, no Parque Lage, no Rio de Janeiro, que foi um marco de renovação nas artes plásticas no Brasil.
Esta exposição, “Mundo Animal”, foi contemplada pelo Prêmio Funarte Conexão Circulação Artes Visuais, Edital 2016, e somente agora foi possível viabilizar a sua itinerância para as cidades de Belo Horizonte (MG) e Campo Grande (MS). O objetivo do MinC/Funarte é promover o intercâmbio de exposições e artistas de vários Estados da Federação, com a “finalidade de estimular a multiplicidade e a diversidade de linguagens e tendências da arte contemporânea brasileira”.
E o “mundo animal” criado pelo artista, contempla perfeitamente os propósitos da Funarte e apresenta aqui sete instalações inusitadas, ousadas e criativas, além de telas, fotografias/performances e dois vídeos-arte. A heterogeneidade de sua obra é grande e por isso é extremamente contemporânea em dois sentidos amplos: o primeiro é em relação ao suporte. Não há mais limites para a sua forma de expressão artística, pois trabalha com… “qualquer coisa”. Pode ser troncos de madeira, placas de alumínio, anotações e recados escritos, restos de animais, borracha, plástico, jornais, papelão, ferro, ou qualquer outro produto industrializado que lhe desperte interesse para compor uma obra ou uma instalação. Em suas prospecções urbanas e rurais – quando recolhe o material para as suas obras -, o imaginário do artista não tem limites.
Por outro lado, sua obra dialoga de forma satírica ou dramática e transita entre a crítica e a ironia, a ficção e o real, o possível e o impossível, sem o menor problema. Desnuda temas que estão em debate hoje, não só na sociedade brasileira, mas também mundial.
A forma de trabalhar do artista é extremamente interessante, pois, segundo ele, um objeto, ou um fato, ou uma ideia desencadeiam um longo processo de criação que pode demorar dias ou não, para materializar-se. Por exemplo, a instalação “Sofram Comigo, vamos dividir essa cruz” começou a ser montada há uns dois anos atrás, quando o mesmo passou “por alguns momentos difíceis, de puro sofrimento mesmo, quando fiz a primeira cruz”. Portanto, inicialmente o artista estabelece um diálogo interior, com ele mesmo, a partir da sua sensibilidade e da percepção das contradições de seu entorno ou do cotidiano. Dessa forma, a expressão interior do artista – criadora da obra – pode ter mais valor que o resultado final do trabalho. E assim, em alguns casos, sua obra tem uma fatura quase artesanal, e o inacabado acaba por compor a obra final.
Durante o processo de criação da instalação “Sofram Comigo”, o artista convidou amigos para colaborar na construção de sua obra, que passou a ser coletiva, pois, “achei que deveria envolver outros artistas”, afinal, “juntos somos mais fortes”. E assim, a cruz ganhou nova representação, pois passou a ser suporte para desenvolver a criação, mas, “a maioria é de minha autoria”. E a instalação se transformou em uma grande homenagem aos amigos e aos artistas que influenciaram em sua formação e que merecem ser citados. É o caso de Keith Haring, que influenciou no desenvolvimento do grafite na década de 1980, na cultura nova-iorquina; Jean Michael Basquiat, Andy Warhol, Robert Rauschenberg, entre outros, como os mais antigos, Matisse, Picasso, Gabriel Orosco, Phillip Guston e o argentino Alberto Cedrón.
Homenageou também os amigos que colaboraram na confecção de “suas cruzes” para a instalação, mas que faleceram durante o processo de criação. São eles: João Sebastião Costa; o escultor Roberto de Almeida; e o grande primitivista Nilson Pimenta, falecido em 23/12/2017.
Humberto Espíndola também é homenageado com a “cruz-chifre de boi”, ao lado de Wladimir Dias Pino, criador do símbolo da Universidade Federal de Mato Grosso e que, em 1967, junto com Álvaro de Sá, assinaram o manifesto que deu origem ao “poema-processo”, que renovou a linguagem poética no Brasil e no mundo.
Cabe destacar que, a cruz – principal objeto da instalação – é um símbolo que faz parte do universo simbólico humano, que está presente praticamente em todas as culturas, com os mais diferentes significados, segundo Carl Gustav Jung.
“O mundo animal é o mundo bárbaro em que vivemos”, declara o artista e, “Sofram Comigo”, desvela o dilaceramento a que o “sapiens-demens” de Edgar Morin está submetido e expõe todas as formas de violência que estamos sofrendo/vivendo hoje, e que, sem dúvida, precisamos superá-las, de uma vez por todas, antes que a sociedade sucumba em um abismo de atrocidades, sem volta. De certa forma, “Sofram comigo” está conectada tematicamente com todas as outras instalações e obras – Desbaratamento de Quadrilha, Eles Voltaram, Arte Aqui Eu Mato, Portal de Entrada (turismo, droga e agronegócio), Deus Ápis, suas esposas e seu rebanho -, e dá, portanto, uma coerência e homogeneidade à exposição, apesar da diversidade de materiais e obras.
Assim, no “Mundo Animal” de Gervane de Paula nosso cotidiano está escancarado, escarrado em nossas caras, através dos mais diferentes temas, tais como o tráfico de drogas, estupro, fascismo, machismo, nazismo, sexo, extinção de animais e de seres humanos, narcisismo, abuso/vício em tecnologia e redes sociais, enfim, as principais contradições da sociedade de massa e de consumo.
Sua obra, em geral é autobiográfica – pois é muito antenado em seu tempo/momento histórico -, e dessa forma, consegue transformar em arte todo o seu sentimento ao viver cotidianamente neste “mundo animal”. Exatamente por isso, sua arte é provocativa, contundente, política, inovadora e propositiva. A arte tem várias funções na sociedade como, p. ex., “captar os traços essenciais do seu tempo e desvendar novas realidades, assim como (…) trazer, em seu bojo, o novo, e, no ato de apontá-lo, a obra artística configura-se como coadjuvante para a construção de um novo mundo” (Peixoto, Unicamp, 2001).
Nesse sentido, o “mundo animal” disseca muito bem o difuso sentimento que a nação brasileira passa nesse momento histórico, pois nunca o nosso país foi tão vilipendiado como nos dias de hoje. Disseminou-se o ódio na sociedade brasileira, a intolerância, a luta de classes nunca esteve tão acirrada.
Não posso deixar de registrar as fotografias-performances realizadas pelo artista. O seu ícone principal de representação, o tuiuiú (ave símbolo do pantanal), também conhecido por Jaburu (nome do Palácio do Presidente da República do Brasil), já passou pelas mais diversas transformações, pois já foi moído, triturado, crucificado, pendurado e metamorfoseou-se muitas vezes durante a sua carreira. Agora, nesse momento de ruptura proposto pelo artista, o criador incorporou o espírito da criatura e assim, ele se transformou na própria obra de arte. Esta forma de intervenção estética é também utilizada pelos artistas Yuri Firmeza, Cabelo, Paulo Nazareth, entre outros.
Por Frederico Moraes, em visita a exposição “Mundo Animal”, em maio de 2016.
Estou francamente surpreendido, primeiramente porque é um trabalho muito bem humorado e versátil, dentro desse humor há todo um comentário político, não é só das coisas que acontecem aqui dentro da região, do país e tal, o comportamento atual de uma boa parte da população brasileira.
Essa última produção é quase que uma pequena história da arte, ele atua aqui não só como artista mais como uma pessoa capaz de fazer uma leitura conjunta, não só do mundo da arte, mais também do mundo real, de todo dia, tem esse sentido de um comentário, não só sobre o próprio trabalho dele, mais do trabalho de colegas dele, de artistas, de trabalho da própria história da arte.
Ele joga muito habilmente esse coisa da palavra e da imagem, ele faz isso com uma grande versatilidade. E no fundo quer dizer é uma produção ousada, que o circuito dela não deveria se limitar ao estado de mato grosso, poderia sair, eu acho que ela cria um contraponto com uma certa pasmaceira que está acontecendo na arte assim, repetitiva as coisas, não digo aqui, digo fora, de repente brota assim uma vitalidade no trabalho dele, eu acho que pode ser um contraponto interessante para uma certa repetição de coisas, de tendências e tal, acho que ele dá uma desarrumada na arte não só daqui mais da arte brasileira.
É preciso repensar a arte brasileira também a partir das regiões, eu insisti com muita freqüência sobre essa questão da produção regional brasileira, porque se fala muito da crise da arte atual, por muitas razões, mais é uma crise na verdade de uma arte internacional, que também se reproduz aqui e está intimamente ligado a mercado, o problema é que o Brasil tem muitas regiões produtoras de arte que não conseguem ter uma cobertura brasileira, acho que é preciso mergulhar alguém, algum crítico, eu apenas esbocei, que é o estudo dessa produção regional.
Então um trabalho como esse do Gervane é supreendente porque ao mesmo tempo que ele está comentando toda essas tendências, mais é uma coisa muita particular muito inventiva, muito dele, é uma produção supreendente, exuberante.
Esse trabalho pode dar uma outra energia no Brasil.
Por Aline Figueiredo, em março de 2018
Gervane faz do deboche o gatilho da comédia crítica da sua plástica e, para tanto, lança mão de objetos vários, a martelar idéias e denúncias de tudo e contra tudo. Tijolos, latas, pneus, borrachas, troncos e toras de madeira, motosserras, papel, papelão, plástico, materiais reciclados, achados ou comprados, e por aí vai. Abrangências de assuntos, também. Da corrupção ao crime organizado, ou desorganizado mesmo tal a violência urbana, crime ambiental, contrabandos e drogas, cartéis e nem a religião e as igrejas ficam de fora. Mas ninguém pode dizer que Gervane é um homem de pouca fé. Fé, alias, ali é mato, principalmente nele mesmo. Sim, dá até vontade de dizer, “Oui Je Suis Gervane”.
Vale dizer das travessuras cotidianas do artista. Sua mulher lhe escreve um recado: “Gervane mantenha suas ferramentas em seus devidos lugares. Ass. Magna”. E de imediato ele faz uma placa com as silhuetas das ferramentas, metralhadora no lugar da furadeira, dentes de jacaré no lugar do serrote, etc. Taí, de um recado uma obra como resposta. Enquanto isso, o seu filho, de 10 anos, diz, “pai, por favor, não use os meus objetos para fazer arte.” Aí está o cotidiano travesso e transgressor que move a veia criativa do nosso Gervane que a tudo contemporiza.
No Mundo Animal de Gervane os artistas da “arte do mato” ali estão. Sejam convidados a participar com obras, a exemplo das 100 cruzes de diversos materiais e dimensões a formam a instalação “Sofram Comigo”. Ou, sejam eles, referidos, refletidos, introduzidos ou traduzidos nas suas interpretações conceituais de arte. Assim, entre outros, ali estão Benedito Nunes, Aleixo Cortez, Alcides Pereira dos Santos, e, claro, João Sebastião. Onças e suas manchas contracenam com caminhos de rodelas de toras, numa alusão explicita da ação devastadora das motosserras e suas cruéis indústrias.
“Deus Ápis, duas esposas e seu rebanho”, é outra instalação que sobe pela parede. Três moirões com apelo erótico, munidos de chifres, representam Ápis ladeado das esposas. Na parede, sobem em tamanhos decrescentes, 15 tocos de madeira, todos com chifres, aludem a bucráneos, numa alusão caricata das instalações de Espíndola.
Como dissemos, o deboche é o gatilho da critica e, para tanto, a paródia é um prato cheio. Vamos a um exemplo, o nosso livro: “Arte aqui é mato” (Ed. MACP, UFMT, 1994) O que faz Gervane? Ora, a idéia vem ao pé da letra. Tira o “é”, verbo que garante o valor substantivo do mato, e faz da palavra “mato” um verbo e o conjuga na primeira pessoa do presente do indicativo: “eu mato”. Portanto, “Arte aqui eu mato!” Mas também, heim Gervane, a piada ou a matação já estava pronta, não é? Mas, como sempre digo, escrever é bom porque um dia alguém vai ler e pensar. Puxa vida, só por isso vale a pena passar horas e noites insones.
Louvo essa Fé, quando analiso o modo objetivo com que este artista soluciona e apresenta os seus “gozos” plásticos, tão crus e diretos, sem lançar mão de suportes sofisticados. Ele não precisa disso, alias está longe disso esse negão de braços fortes. Não, não e não! Não tem nenhum preconceito na palavra aqui situada, até porque nós sempre valorizamos o desempenho do caráter contribuidor da negra sensibilidade nas artes plásticas mato-grossenses. Então, resta-me a dizer, que Gervane tira de letra e arremata no peito a arte do seu mundo animal.
Raras vezes se vê tal compulsiva vontade de criar, recriar, questionar sobre uma ideia a descobrir e a redescobrir o lado satírico, sarcástico de modo cru e sem subterfúgios. Assim, esse jovem senhor de 57 anos mostra que nada, absolutamente nada é tão obsceno quanto à vilania política e a hipocrisia social em que hoje vivenciamos.
Gervane nada canha, nada sonega ao seu trabalho, nem em esforços, dimensões ou materiais. E, então, essa compulsão de tão intensa, resulta longe dos caprichos da estilização repetitiva e adocicada. Nada disso, em Gervane a liberdade de expressão ganha voz através de acido deboche contra a corrupção e do preconceito racial.
E tem mais: Gervane faz questão de ser um artista “regional” pois daqui ele enfrenta o aqui e o agora, políticos, escândalos, dá nome a tudo, sem medo. Daqui deste mundão de dentro, o artista fala do mundo animal, global e ecológico. Muito à vontade ele transa pelos transes transitórios da arte contemporânea.
Em meio a tal voraz experimentação o nosso “turbilhão criativo”, não se esquece da pintura. E, junto a tudo, ela, a pintura, vai e ainda é o embalo.
“Gado Agro Droga Tuiuiu: Mundo Animal”
Por Daniela Labra, em março de 2018
Há 500 anos, no território virgem que ainda não se chamava Brasil, humanos nus viviam segundo as regras da natureza e suas divindades, organizados em coletividades inimagináveis para o europeu. Ao invadir o solo tropical, o português católico e escravizador impôs suas noções de civilidade aos nativos pagãos, dizimando culturas e etnias para decretar culpa, pecado e vergonha sobre o corpo natural, ensinando que o modo como fomos concebidos e viemos ao mundo seria imoral. Ao longo de cinco séculos a colônia extrativista e escravocrata, onde a educação formal era proibida até o final do Século 18, foi-se tornando um país de população miscigenada, controlado politicamente por poucos grupos de poder, majoritariamente representados por homens brancos. O Brasil, essa nação exuberante de cultura popular alegre, cuja história é marcada por injustiças sociais e precariedades institucionais, ocupa na atualidade rankings paradoxais: A sétima economia do mundo é também uma das mais corruptas, além de destacada nas taxas de assassinatos da população, com cerca de 60mil vítimas ao ano. O Brasil, moderno e cativante, selvagem e belo, historicamente nunca foi muito doce com as mulheres, pretos, pobres e indígenas. Além destes, hoje pessoas LGBTQ somam o triste perfil dos que geralmente preenchem as estatísticas de homicídio culposo, que crescem no mesmo passo que as máfias do crime, organizado ou não, infiltradas em todos os estratos e setores sociais.
Gervane de Paula, sensível a esse quadro de contradições e tragédias incontáveis, sorri sarcástico, ciente das complexidades do contexto que inspira – e por vezes rejeita – sua obra enérgica e irônica, em desenvolvimento há mais de 30 anos. Suas pinturas, esculturas, ready-mades, colagens, objetos, instalações, ações e outros, carregadas de símbolos locais e nacionais, homenageiam a arte bruta e o brutalismo da vida com altas doses de acidez corrosiva. Ele explora, com humor e amor, o lado doloroso e potente do ridículo, tomando como tema os mais escabrosos cenários de mortandade, ganância, desamor, frivolidade, erotismo e exotismo, presentes no cotidiano do Brasil.
Baseado em Cuiabá, terra natal distante do Sudeste, região por onde se move o sistema da arte e seus agentes, a produção artística de Gervane de Paula ainda circula pouco pelo país, embora chame a atenção de críticos e historiadores da arte nacionais há bastante tempo. Essa questão, inclusive, está presente em vários trabalhos onde ironiza a estrutura hierárquica, branca e exclusivista do meio das artes. Por sua vez, a forte presença do elemento regional, tanto estético como temático sobre aspectos sócio- políticos do Centro-Oeste, dá ao trabalho um ar localista que pode distanciá-lo daqueles que têm mais olhos para a arte das capitais cosmopolitas do que para a produção plástica do interior do país. Mas, como em todas as narrativas de Gervane, aquilo que à primeira vista parece ser local, na realidade inclui contextos mais abrangentes. Cada caso ou situação transposta na obra, ainda que faça referência sobretudo ao Mato Grosso ou Cuiabá, traz críticas a uma conjuntura brasileira, tão semelhante a de demais nações latinoamericanas também imersas em problemáticas de pobreza, abandono da infância, narcotráfico, tráfico de armas, instabilidade política, e outros.
De intenção figurativa e pop, Gervane iniciou sua trajetória nos anos 1980, na pintura, e essa origem pode ser comprovada no colorido carregado das figuras que lembram as de Victor Arruda, José Roberto Aguilar, Ângelo de Aquino, Keith Harring, Basquiat, entre outros artistas que pintaram a união da visualidade popular com a cultura erudita. A fatura e acabamento rudes dos trabalhos de Gervane fazem com que ele seja confundido com um artesão naïf, enquanto que seus dizeres, grafados com letras inspiradas em cartazes de rua anônimos, engana fazendo pensar que o artista é pessoa de poucas letras. Já a profusão de materiais que utiliza, como madeira, ferro, chifres de boi, plásticos, troncos, eletrodomésticos, jornais, sucata e outros tantos, encomendados ou encontrados por ele ou por amigos, leva a crer que sua arte seja apenas a obra de algum obssessivo acumulador de coisas – obsessão esta que não deixa de ser parte da sua vida, é fato. Interessado na apropriação de referências, ele cria por processos de acumulação e justaposição de objetos e matérias, assim como também trabalha com peças confeccionadas por outras mãos, como as dos artesãos matogrossenses Ana Paula Almeida e Clevelson Dias de Moura, ou de artistas contemporâneos que convida para diversas colaborações.
Gervane de Paula é um artista preparado e atento, formado na escola livre de pintura e que continuamente se nutre dos livros de história, literatura, poesia, jornais, revistas, internet, dos boatos de vizinhos ou dos folhetos de publicidade mais ordinários.Tudo é passível de virar obra pelos filtros deste homem que vincula notícias de rádio à elementos da tradição regional, o folclore a movimentos da arte nacional e global, memórias e referências visuais de cidades aos matos e estradas por onde passa. Suas pinturas e instalações esbanjam escracho e sarcasmo, sendo elas a sua interpretação do lado perverso de acontecimentos ligados aos três poderes, à mídia, sistema da arte, aos negócios lícitos e ilícitos que traçam o destino da nação.
Caminhar por sua exposição é navegar em um ambiente ruidoso construído com formas, cores, materiais, ilustrações e palavras que fazem troça da humanidade tornada refém dos seus próprios preconceitos, ódios e problemas inventados contra inimigos que ajudamos a criar. Para parte do respeitável e distraído público, contudo, suas proposições podem parecer demasiado pornográficas e sórdidas em suas denúncias explícitas, sendo de um mau-gosto que é preferível evitar. No entanto, uma expressão artística, seja qual for, que levante questões do real, nunca será nada além de uma caricatura da sordidez existente em eventos cotidianos onde o mal é banalizado – o que constitui a maior das pornografias.
A arte de Gervane de Paula, preto, cuiabano, brasileiro, latinoamericano, internacional, desfia ironia e desafia o público a afirmar que suas temáticas estão fora do mundo animal, esse mesmo mundo onde eu moro, tu moras, nós moramos, e que nos recria e devora a cada dia. Um mundo truculento, sangue-frio, sexual, macho, onde mata-se e morre-se com a ameaça de nos tomar o direito à sensibilidade.
Droga de Arte! que pode transformar em poesia e escárnio a tragédia diária da qual não queremos lembrar! Parafraseando o próprio Gervane indago, por fim: Quantos caminhos uma arte deve andar para que seja aceita como arte? Respondo que todos os caminhos, e quanto mais melhor.
“Frestas”
Trienal de Sorocaba, 2017.
A obra de Gervane de Paula questiona a construção e a circulação de ícones no imaginário popular do estado do Mato Grosso. O artista aborda dinâmicas que atribuem valor a esses símbolos e como eles podem ser apropriados pelo comércio, pelo turismo e até vir a sustentar um discurso regionalista. Dessa forma, lança um olhar crítico, sempre impregnado de humor, sobre a elaboração de uma imagem exotizante do Pantanal. Em lugar dela, propõe retratos problemáticos, que expõem tanto a devastação agrícola quanto o esquema de tráfico de drogas que assolam o Mato Grosso, principalmente sua fronteira com a Bolívia. Por extensão, acaba por refletir sobre o circuito de arte, no qual modelos e temáticas às vezes são repetidos e consumidos como bibelôs de uma loja de suvenires.
Nos objetos e esculturas em material que compõem Mundo Animal, de Paula problematiza questões inerentes à região e seus símbolos, como a onipresença visual do tuiuiú nas mais diversas logomarcas, no turismo ou nas propagandas políticas locais. Em uma das peças, um moedor tritura uma série de tuiuiús diante de pacotes de açúcar que se valem, como estratégia de marketing, da imagem desse pássaro emblemático do Pantanal. Esses animais também são vistos em outra instalação, composta de uma estante em que são justapostos pequenos suvenires de onças, jacarés e frutas típicas comum isqueiro e um cachimbo de crack em tamanho desproporcionais. Dentro desse cachimbo, no lugar de pedras de fumo há tuiuiús, com se estivessem prestes a serem queimados.
Chateaubriand em Cuiabá
Por Gervane de Paula ( em 2016, Gervane de Paula realizou a performance “Chateaubriand visita Cuiabá”, registros fotográficos podem ser vistos acima, na galeria de imagens. O texto está no verso do livro que aparece na intervenção)
No ano de 2001 o colecionador de arte Gilberto Chateaubriand esteve em Cuiabá a convite da Secretaria de Estado de Cultura (SEC). Veio participar como presidente do júri que selecionaria e atribuiria prêmios aos cinco melhores conjuntos de obras apresentadas no Salão Jovem Arte Matogrossense. O Salão Jovem Arte é uma invenção da crítica de arte Aline Figueiredo cujo objetivo era revelar jovens artistas, pois os que existiam já estavam ficando velhos e cansados – percebeu a crítica e, como sempre, agiu de modo rápido e preciso.
Gilberto tem o costume de visitar ateliês de artistas sempre à procura de uma nova aquisição para engrossar sua coleção que já ultrapassa 7 mil obras – só as minhas e de Adir Sodré somam juntas aproximadamente 200.
Em Cuiabá não foi preciso o colecionador fazer o que tanto ama. Foi pego de assalto pelos artistas na porta do elevador do hotel em que estava hospedado. Bem, nem todos eram artistas: havia jornalistas, abelhudos e dezenas de cuiabanos sem noção.
Com sua classe e educação que são de praxe, ele deu atenção a todos. Gilberto merece uma recepção dessa magnitude, ele é um colecionador independente, dispensa companhia e vigilância dos críticos, marchands e curadores para adquirir suas obras já que tem faro próprio, herdou isso do pai Assis Chateaubriand, o Chatô, idealizador do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Logo após o término das obrigações que o trouxeram a Cuiabá – o que consumiu mais de quatro horas, mas na verdade foram 50 minutos, o resto do tempo foi gasto com a rotina das retiradas das obras recusadas: “Esse, vira essa pintura de costas?”; “tira esses quadros daqui! Some com essas coisas!”; “o que é isso?… “é cansativo e trabalhoso” – finalmente o corpo de jurados seleciona e atribui o prêmio ao futuro artista plástico de Mato Grosso.
Gilberto foi o primeiro a colocar os pés fora do prédio onde as obras inscritas no Salão Jovem Arte se encontravam há meses concentradas. Havia um grupo lá fora o esperando, sua estadia em Cuiabá foi monitorada num passo a passo digno de um popstar.
O grande momento esperado com ansiedade pela plateia só veio a ocorrer no final da tarde, no crepúsculo cuiabano: então Gilberto levou a mão ao bolso e tirou o charuto, olhou para o céu alaranjado acompanhado repetidamente pelos nossos olhares, em seguida soltou o lacre do cubano, acendeu e fumou pela primeira vez, acompanhado por aplausos histéricos e intermináveis. Antes de levar o charuto segunda vez à boca, Gilberto olhou para a plateia delirante e disse: “Vocês precisam de uma baforada de contemporaneidade” – frase de efeito colateral instantâneo que ficou ecoando em nossos ouvidos até a manhã seguinte, e rimos durante meses desse episódio.
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