São Gonçalo, RJ, 1997.
Vive e trabalha em Rio de Janeiro, RJ.
Agrippina R. Manhattan é artista, pesquisadora e travesti. Nasceu e cresceu em São Gonçalo, hoje vive e corre atrás de trabalho no Rio de Janeiro. Seu trabalho é parte de uma profunda preocupação sobre tudo aquilo que restringe a liberdade. A palavra, a norma, a hierarquia, o pensamento. Diz que sente que não é obrigada a nada e isso a realiza. Escolheu seu nome e inventou a si mesma, como escolhe um título para um trabalho ou encontrando a tradução do que sente em poesia. Pensando escultura como poesia, poesia como escultura e tudo como um só e parte dela.
“Por tudo aquilo que é possível imaginar mas ainda é impossível de nomear.
“A Perigosa”, 2019. Duração: 57″
“Transphobia”, 2019. Duração: 30″
Me chamo Agrippina, tenho 20 anos e sou travesti. Se faz necessário nesse momento que eu me afirme enquanto os dois. É por estas afirmações que eu exemplifico minhas questões. Quando me afirmo enquanto Agrippina, estou subvertendo a política que condiciona a aceitar o nome do meu registro geral enquanto minha identificação. Quando me afirmo travesti, desconstruo a imagem que a palavra coloca. A imagem negativa que cerca esta palavra é perversa e manipuladora, ao falar que eu sou travesti espera-se de mim que me submeta a um estereótipo, se espera que seja de um jeito e mais importante, se espera que eu esteja em um determinado lugar. Lugar este que é conectado automaticamente com a margem, que eu seja a exceção, que eu seja o evento que encerra uma exposição que fale de corpo. Sempre um adendo, nunca a pauta. Não aceito mais ser nota de rodapé.
É por meio dessa estigmatização que nos empurram pra fora, que nos jogam pra pratica da prostituição, que nos matam, o que não se percebe, no entanto, é que este estereótipo é na verdade uma das condicionantes limitadoras que impedem que nós travestis consigamos sair da situação de marginalização social assim como da prostituição em si. Se espera muito pouco de nós, e nos é oferecido muito pouco, mas
para a percepção heterocisnormativa a consequência aqui parece preceder a causa. Agora eu vou falar, vocês vão ouvir. Cansei de ser interrompida. Se é preciso fazer uma performance para que me ouçam eu farei. Vocês não sabem o que é o corpo. Não sabem porque não o enxergam em sua totalidade. Eu não sou a exceção, vocês não são a regra. Que direito vocês têm de me colocar como desviante? Eu não sou um corpo mutante, sou tão normal quanto se é possível ser, tão normal quanto vocês são. Meu corpo é tão estranho quanto qualquer um pode ser. A diferença é que não me permitem entrar na brincadeira de fingir. Ano passado participei de um seminário na Uerj onde expus minha pesquisa sobre corpos que escapam a heterocisnormatividade, curiosamente também intitulei o trabalho de Corpos In Trânsito. A questão que me norteava na época era pensar como pode um corpo trans. circular pelo espaço público. As questões que me assombravam lá continuaram e continuam a me assombrar. Hoje, no entanto as vejo com mais clareza.
Consigo inclusive dar lhes uma resposta. Como pode um corpo trans. circular pelo espaço público? Fácil. Só é preciso não parecer trans. Quanto mais passabilidade se tem, mais fácil a vida fica.
É preciso emagrecer, é preciso cuidar da pele, é preciso remover a barba com depilação a laser, é preciso parar de usar roupas largas, começar a usar calcinha e sutiã, é preciso tomar hormônio, é preciso colocar silicone, é preciso deixar o cabelo crescer, é preciso raspar as pernas, é preciso fazer plástica para feminilizar o rosto, é preciso fazer a cirurgia de redesignação sexual. Sai o pinto entra a buceta. É preciso aprender a seduzir, é preciso aprender a ser gentil, é preciso aprender a se calar, é preciso ser forte, é preciso ser resistente. É preciso fingir, é preciso mentir, é preciso retificar seus documentos, se afaste de todos que te conheceram ates da transição. Eles sabem demais, você agora é outra pessoa finalmente no corpo certo. Se você gosta e quer fazer essas coisas, que bom para você!
Tudo vira mais fácil, mas ainda sim a depilação a laser é cara e dói, o hormônio também. Roupa feminina é mais cara também. Os tamanhos são menores, então você tem que diminuir seu corpo. Começar a não comer, a ficar culpada quando come, tomar laxante quando come demais. Mas sem ficar neurótica, sem ficar estressada, sem perder a doçura.
Me parece também que muitos desses problemas são problemas também das mulheres cis, que a mesma forma que me comprime, também o faz com elas. Mas isso não pode ser. Elas são machudas, eu sou homem. Elas são mulheres, eu sou só afeminada. Mulher só até certo ponto. Se o símbolo do feminino é a vagina ou a menstruação então estou fora. Literalmente. Não tenho vagina e nem menstruo. Então não devo ser mulher. Só sei fingir muito bem. Ainda bem que nasci bonita. Mais ou menos. Se olhar de perto dá para ver. Eu ainda quase engano, mas um dia quem sabe serei uma boa mentirosa.
E falo isso sem ironia alguma. Eu quero e muito ter passabilidade. Como poderia não querer? Por que escolheria ser desrespeitada em todo o lugar que eu vou? Porque para vocês é só uma palavra, só um pronome. Não faz diferença. Para mim é tudo. Representa que conseguem enxergar quem eu sou. E quem vier com o papo que as aparências não importam e que eu não deveria me incomodar com o que os outros pensam que vá se foder. Vocês não sabem como é. Param de fingir, se você não está no meu lugar então você não tem ideia.
Esse é um bônus que eu tenho e vocês nunca terão. Vocês não têm ideia do que é ser eu. Vocês percebem a identidade só na metade. Eu sei como é ser cis. Passei 19 anos da minha vida sendo cis. Tudo bem que eu não era tão cis assim, podemos argumentar. Mas eu já estive nesse lugar. Eu sei como é. É por isso que falo de gênero melhor que todos vocês, e vocês tem que se conformar. Eu falo e vocês escutem. Não se trata de acusar ou diminuir ninguém. Mas de reconhecer minha própria força. Foram 19 anos sendo tratada por um nome errado. Foram 19 anos com medo. Foram 19 anos me sentindo feia. Foram 19 anos perdida. Foram 19 anos chorando no quarto porque eu não conseguia entender. Foram 19 anos sem Agrippina. E ainda assim, achei forças para mudar tudo em mim, mesmo cansada e mesmo sozinha eu consegui inventar a mim mesma. Não deixo ninguém tirar isso de mim.
Diferente do seminário que apresentei na Uerj, percebo hoje que não é só no espaço público que encontro problemas em circular. Eu não entro na esfera do íntimo, do privado. Alguém como eu não pode amar, alguém como eu não pode se apaixonar ou se envolver em romances. Primeiramente não sou nem mesmo alguém, sou um corpo. Um corpo estranho que serve para matar o desejo de qualquer um que esteja com tesão. Sou aquela que recebe sempre paus duros, nunca flores. Sou aquela que se olha com desejo imaginado o tamanho do meu pau dentro calcinha apertada, minha bunda redonda com o fio dental, sempre olhando pro macho com desejo dentro de um orelhão no centro da cidade.
O Brasil é o país que mais procura pornografia com pessoas trans na internet. A maior parte da busca é por mulheres trans. Pesquisando em sites de contos eróticos percebi que contos com pessoas trans são minoria. Isto porque esses contos geralmente contam pequenos enredos sobre fantasias sexuais, as vezes inclusive criam se pequenos romances onde a história se desenvolve e o sexo entra como parte da trama. Não achei nenhum conto com pessoa trans que não envolvesse sexo. Ou melhor, nenhum que envolvesse qualquer relação que não a sexual. Eu desde criança sempre fui apaixonada por romances e histórias de amor, é uma cafonice que me permito. Quando tinha 12 anos li pela primeira vez um dos livros que até hoje é um dos meus favoritos: Tristão e Isolda. Trata-se de uma história de amor trágica que inspirou Shakespeare a escrever Romeu e Julieta. Tentei então imaginar se existiria uma história de amor para pessoas como eu. O único livro que achei li e reli 3 vezes, feliz por encontra-lo. Na história, porém, a protagonista não revela que é trans. Ela passa todo o livro se passando por uma menina cis e no final quando ela conta para o namorado ele termina com ela.
Ele na verdade não termina com ela, o livro deixa isso em aberto. Mas fica claro que algo mudou. Algo sempre muda quando eu conto. O clima fica estranho e de repente eu pareço um ser de outro planeta. Algo mudou, sem nada ter mudado. É interessante também que na história a protagonista tem 16 anos, mas já é operada. Essa é a mensagem que enviam para nós. Quer ser amada, o caminho é esse. Não ha lei que
mude isso, não ha campanha de conscientização que vá fazer isso ser diferente. Não quero sua compaixão, não preciso que vocês sintam pena de mim. Não é isto que procuro aqui.
É preciso que vocês revejam como colocam a naturalidade das coisas. Para mim a mais natural das ações se torna uma questão. Não só porque sou trans, mas porque sou eu. Porque não tenho permissão para ser nada além do que trans, porque todo o resto que sou não interessa. Termino minha fala com a seguinte colocação: eu não preciso de vocês. Ou melhor, preciso de vocês na mesma medida em que vocês precisam de mim.