Bem-vindes à Ocupação dos Artistas Premiados do PIPA 2023, em que os premiados desta 14a edição compartilham com o público virtual do Prêmio PIPA vídeos, fotos e textos – alguns exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 23 a 28 de outubro, Luana Vitra exibe alguns trabalhos recentes sobre a temática dos minerais em consonância com o corpo.
Nesta edição, o Prêmio PIPA reforça o formato adotado desde 2021 de receber indicações de trajetórias recentes, direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há 15 anos. O foco do PIPA neste momento é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada.
O material abaixo, publicado diariamente, está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas Instagram, Twitter e Facebook.
E lembre-se que os Artistas Premiados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro até o dia 12 de novembro. Será um prazer te receber por lá!
Dia 01:
Belo Horizonte, MG, 1995
Vive e trabalha pelo mundo
Representada pela Galeria Mitre
Luana Vitra é artista plástica formada pela Escola Guignard (UEMG), dançarina e performer. Cresceu em Contagem, cidade industrial que fez seu corpo experimentar o ferro e a fuligem. Gestada entre a marcenaria (pai) e a palavra (mãe), se movimenta como reza em busca da sobrevivência e da cura das paisagens que habita. Entende o próprio corpo como armadilha, e sua ação como micropolítica na lida com a materialidade e espacialidade que seu trabalho evoca, confronta e confunde.
Atualmente está especialmente interessada na paciência e na violência das pedras. Com o foco principal de interesse no reino mineral, ela tem realizado um processo de subjetivação de si a partir das características de alguns minerais, o que a leva a um desejo de transição de reino, onde aos poucos vai permitindo o seu corpo assumir características minerais.
Veja o vídeo produzido pela Do Rio Filmes exclusivamente para o Prêmio PIPA 2023:
Dia 02:
No segundo dia de Ocupação, selecionamos o trabalho “fio desencapado, isca de confusão”, de Luana Vitra, série que possui obras expostas na Exposição dos Premiados do PIPA 2023, aberta até o dia 12 de novembro no Paço Imperial. Nela, Luana explora as possibilidades do ferro, elemento principal de sua pesquisa criativa.
Dia 03:
Todo ano, o curador do Instituto PIPA, Luiz Camillo Osorio, conversa com os artistas Premiados. Este ano, Luana, uma das entrevistadas por Camillo Osorio, fala sobre como se desenvolveu sua formação como artista, sua relação com a dança, entre outras temáticas de seu trabalho. Leia a conversa completa abaixo.
1 – Luana, você começou sua trajetória na dança. Como se deu sua formação e como foi se deslocando para o campo das artes visuais?
Eu comecei a dançar jazz com 12 anos, com 15 entrei na dança contemporânea, depois ballet clássico, dança moderna, dança de salão e danças urbanas. Com 16 anos eu comecei a fazer um curso de confecção e moda, porque eu queria aprender a costurar, e nesse curso tinham também aulas de ilustração, então tive meu primeiro contato com o desenho pós infância, e nesse contato relembrei um prazer do qual eu não tinha mais nítido na memória, mas que existiu na minha infância. Ter contato com esse prazer do desenho me fez mudar o trajeto que eu estava projetando para mim, eu pretendia cursar dança na universidade, mas mudei para artes visuais de última hora. Então fiz a prova da UEMG-Escola Guignard, passei e iniciei o curso na passagem dos 17 para os 18 anos. Entrar na universidade me fez não ter mais tempo para dançar, então deixei de frequentar as aulas, mas depois de 1 ano de curso consegui retomar a dança, mas dessa vez me dediquei a estudar educação somática e composição coreográfica. Me dediquei durante quase todo o período na universidade ao estudo do desenho, no entanto, próximo ao momento de definir qual seria minha habilitação no curso de artes visuais, eu fiz minha primeira aula de escultura, e nesse momento entendi que o fazer escultórico juntava o raciocínio do desenho ao raciocínio da dança, a escultura era um corpo de linha e gesto que movia a matéria, era o exato espaço para o tipo de ação que eu me interessava em imprimir sobre o mundo.
2 – Há algo muito poético nos títulos dos seus trabalhos, assim como uma relação quase mística com o seu processo de produção, em que você fala de reza, milagre etc. Acho isso bastante interessante, pois vem junto a uma materialidade muito forte da sua poética. Pode falar sobre isso?
Eu sempre tive uma certa obsessão pela palavra, sempre foi algo muito sério para mim, quando eu era criança lembro de passar horas lendo o dicionário, porque eu queria dizer as coisas que eu sentia de maneira exata, tinha o desejo de conhecer o máximo de palavras que me fosse possível. Eu penso a comunicação como uma lâmina que precisa estar sempre afiada, e a palavra é esse corte preciso que desenha o feitiço das coisas. Para fazer um feitiço você não pode errar nem a erva, nem a palavra, porque se você erra, a intenção desvia do curso. Para mim, a repetição é um gesto espiritual, quando você cria uma reza, você está definindo palavras para enfeitiçar a partir da repetição. Os títulos dos trabalhos são ladainhas que as pessoas entoam por aí, muitas vezes é mais difícil para mim escolher o título do que fazer o trabalho, porque a reza do gesto o corpo conduz, é o transe. Mas a palavra é anterior ao transe, e uma junção errada faz com que a frase não se torne um espírito. Só as coisas com espírito são eternas e podem dançar à revelia do sentido, porque o sentido se torna uma imanência suspensa em si.
3 – Você fala do ferro tanto como matéria de estruturação, como também elemento mineral que passa por transformações constantes – ferro em pó, ferro em barra, ferro do nosso corpo etc. Estes dois aspectos combinam algo da relação entre escultura (estruturação) e dança (movimento). Como você vê isso?
Todas as estruturas arquitetônicas precisam ter um cálculo para que se movimentem, porque se o movimento não acontecer, a estrutura quebrará. De igual maneira, acho que tudo que existe traz em si a consciência de que mover-se é necessário para a manutenção da vida. Ao meu ver, a tentativa de retirar o movimento de uma coisa viva é um dos gestos mais violentos que podemos imprimir sobre um outro corpo. O contato com a dança foi um presente, pois me deixou sensível para perceber o movimento de todas as coisas, talvez por isso o que mais me atrai no ferro é a oxidação, porque esse é um dos processos no qual essa matéria pode dançar. A apreciação da dança é a vista de um corpo fazendo e desfazendo forma no espaço e no tempo, e é exatamente isso que o ferro faz enquanto oxida: nos oferece a vida do seu movimento.
4 – A oxidação do ferro é apontada por você como uma forma de liberdade do ferro e que isso levaria à ruína, como sendo a culminância do processo e negação da forma. Todavia, olhando o seu trabalho, parece-me mais interessante pensar em metamorfose e não em ruína, aquilo que está sempre virando outra coisa e não aquilo que decai. A sua poética parece ser sobre a decantação dos materiais e não sobre a dissolução deles. O que você acha?
Alguns anos atrás uma amiga sonhou com a vista aérea de uma ruína, aos poucos a imagem foi ficando mais próxima e ela me viu lá, organizando o corpo da ruína, levando partes de um lado para o outro, refletindo onde cada fragmento ficaria melhor. Houve também um sonho que eu tive, onde eu abraçava uma amiga e então eu entrava dentro dela, e por dentro ela era um floresta fértil e úmida, de um verde muito intenso. Depois eu saía de dentro dela e entrava dentro de mim mesma para encontrá-la. Quando eu entrei, vi que por dentro eu era uma ruína muito bonita, iluminada pelo sol, e então eu sorri muito profundamente por ver que era assim minha própria imagem interna.
Para mim a ruína é a ancestral da metamorfose. E ao pensar a metamorfose do ferro, é nítido que as transformações dessa matéria são em direção à terra. É uma herança europeia positivar o céu e negativar o chão. Se olharmos para a cosmologia bantu, por exemplo, o mais elevado está no chão. Os gestos da capoeira angola são também movimentos para escutar a espiritualidade que repousa sobre o chão. Então, para mim, a ruína não é um movimento que decai, e sim um corpo que se eleva para baixo. É um gesto de entrega, um estado onde a matéria já é velha o suficiente para não temer a gravidade. Eu nasci com essa velhice dentro de mim, por isso me entendo como ruína, aprendi sobre isso com o ferro, e sei que essa é também a minha forma de liberdade.
Dia 04:
Exclusivamente para a Ocupação, Luana Vitra gravou o vídeo a seguir, em que conta sobre seus trabalhos atualmente em cartaz. Veja o vídeo completo abaixo:
Dia 05:
Outro trabalho de Luana Vitra em cartaz neste momento é a instalação “Pulmão de mina”, desenvolvida para a 35a Bienal de São Paulo. A artista rememora histórias do período extrativista no Brasil e representa um fato narrado por pessoas escravizadas que costumavam levar canários para o trabalho em minas de ouro. O pássaro era utilizado como bússola, pois seus pulmões reagiam em instantes à presença de gases tóxicos emanados pela extração mineral, e o cessar do canto, o silencio, era o alerta para que os mineiros abrissem caminhos para escapar daquelas galerias, evitando os perigos de uma intoxicação letal.
A sobrevivência daquelas pessoas significava também a morte das aves, evidenciando como a escravidão estendeu seu terror sobre outras espécies.
“A instalação tem como elemento principal uma série de flechas-patuás preparadas para o desbloqueio de caminhos. Feitas de ferro, material paradigmático e de uso recorrente em seus trabalhos, elas atuam como condutores, apontando para lugares de prosperidade onde a ‘possibilidade prevalece’. Ao centro da instalação, nota-se que algumas delas estão agrupadas e posicionadas diagonalmente entre si. Para Vitra, essa composição cria um caminho que espacializa os significados e as possibilidades que cada agrupamento carrega. Somam-se à composição do trabalho, cuias de cobre, pássaros banhados em prata e cobre, metais de alto caráter condutivo e pó de anil, substância frequentemente utilizada para limpeza energética”, explica Thiago de Paula Souza no site da Bienal.
Veja o trabalho em detalhes abaixo. Fotos de Victor Galvão.
Dia 06:
Para o catálogo deste edição, Luana Vitra convidou abigail Campos Leal para escrever um texto crítico sobre seu trabalho. Leia o texto completo abaixo:
No fundo da terra, dançar o infinito
essas composições são florestas
o ferro é fértil, por isso brotamos nossas raízes no fundo da terra
então, nossas folhas são metais voláteis
Óxida (tratado sobre todas as coisas, 4550 a.C., p. 8)
o trabalho de Luana Vitra não apenas se apresenta diante de nós, mas nos leva a muitos lugares. esse apresentar-se y esse levar-se apenas atestam o magnetismo que a sua carne carrega. somos atraídas pelo seu trabalho como abelhas vigorosas zanzando em busca daquele melzinho suculento que foi farejado. somos atraídas pelo seu trabalho porque o seu trabalho é foda! Luana Vitra nutriu em silêncio y segredo, durante seis anos de estudos na Escola Guignard – UEMG, a força cósmica de sua criação, como um Vulcão paciente que espera a hora exata de entrar em cena. o seu magnetismo emana dessa memória geográfica que é também uma poesia astrofísica. Luana Vitra está emaranhada no fundo da terra, portanto, no espaço sideral. y sente isso. se conecta permanentemente com o Infinito, y essa conexão é também o magma do seu mel. não se enganem, Vitra também se atrai: pela terra, pelo ferro oxidado, pela folia da eletrólise, pelo fogo azul, pelas raízes, pelo voo dos peixes, pela dança das folhas que caem. a composição não é apenas seu exercício de vidaarte, mas o seu destino. o espaçador, instrumento da construção civil em formato de cruz, muito utilizado por pedreiros/as para separar y posicionar azulejos, presente em inúmeros trabalhos de Vitra, pode funcionar como uma pista dessa estrada magnética. sinto, então, o trabalho de Vitra como um aglomerado de adições, onde podemos ver, tocar y farejar inúmeros sinais de mais/adição (“+”) em seus trabalhos. y é isso que Vitra faz: uma grande, instintiva y planejada, orquestra de composição das coisas. espaçador azul + engrenagem oxidada marrom + anzol prateado + seta marrom + fundo esquadrinhado branco. o que também pode ser: conexão alegre + trabalho explorador cansado + alimentação saudável + fluxo imposto + moradia insalubre. essa é uma das formas que posso delirar fio desencapado, isca de confusão (Vitra, 2022). essa não é tanto a descrição formal de uma obra, mas formulação poética do nosso feitiço. não se trata apenas de uma forma belíssima de como juntar as coisas, mas da arte ancestral de se emaranhar na infinitude
Luana Vitra também se compõe com a matéria viva do Mundo. existe ferro no meu sangue y uma pedra de 1 cm na minha vesícula; sou mineral, portanto. mas y Luana Vitra? ah, aí é outra coisa, meu bem. Vitra é bronze relembrando sua dança preferida. Vitra me disse que quando está com alguma dificuldade afetiva, busca respostas no mundo mineral: como ferro responderia a essa violência racista? como chumbo escreveria essa carta de amor? não se trata tanto de pensar como minerais, mas lembrar-se ser ferro para despensar o Humano. é sobre sentir ferro vibrando em si. é isso também que o trabalho de Vitra, misteriosamente, comunica. é aí também que reside seu magnetismo. apesar da aparente dureza y resistência que existe nos minerais, através da sua composição, podemos sentir na sua arte que, de fato, a matéria sabe dançar. assim, os seus trabalhos, que na maior parte das vezes são classificados como instalação ou escultura, podem também ser sentidos como uma poesia declamada ou como um curta metragem. grudado numa parede, pendurado no teto ou saindo do chão, é a terra quem vozea, é o mar quem folguea
não é apenas que Luana Vitra presta uma homenagem à terra, mas a terra, através da sua carcaça, dá testemunho de sua grandeza y sagacidade. a matéria se apresenta de maneira fulgurante no seu trabalho, ergue-se diante de nós como uma senhora teimosa, impaciente, esperando o reconhecimento de seu esplendor, mas é preciso farejar aí o que o espírito sussurra. talvez seria melhor dizer Èmi, seguindo os caminhos do povo Yorubá, palavra polissêmica que, dentre seus muitos significados, pode ser traduzida tanto como espírito quanto coração. ou, ainda, Ba, enveredando pela trilha do povo de Kemet, palavra que pode ser traduzida como alma ou espírito. entre o coração y o espírito, é o calor da matéria cósmica que sussurra seus segredos através da carne de Vitra. esse sussurro é uma oração. porque para criar ela precisa dançar. a dança, aqui, não dá seu nome somente porque sabemos que nessa encarnação Luana Vitra estudou dança desde criança, praticando-a a maior parte de sua vida, mas porque a coreografia é a maior y mais velha Lei do Infinito
y nessa encarnação Vitra veio para refazer a História. não digo apenas no sentido da História da Arte, por exemplo, que sofre, agora, um abalo sísmico com a sua chegada y de tantas outras forças escuras que se erguem como enormes cordilheiras enfurecidas, mas também a História das Coisas, a História da Matéria. Luana Vitra nasceu em Contagem (Minas Gerais), terra devastada pelo racismo ambiental da mineração y fertilizada pela teimosa resistência da diáspora de áfrica y dos povos originários que, entre choros y danças, tramam silenciosamente o momento da retomada. seu trabalho é, portanto, a trama dessas forças, é ferro y carne preta vermelha se mancomunando para refazer não apenas a História da Arte, mas através da arte, refazer a História da Mineração. não é ela quem abre essa refeitura, mas a própria terra. seu bisavô, Domingos Zacarias, foi uma figura que ferro assumiu para passar adiante o legado de amor às formas y que, mesmo soterrado pela História colonial, vive através da sua arte
Èmi y Ba da terra, que respiram vivos em Vitra, refazem não apenas a História da Arte, nem mesmo a História da Matéria, mas desfazem a História mesmo, pois o seu trabalho cósmico conhece a passagem que existe antes do Tempo. seu trabalho presta homenagem ao que se convencionou chamar de matéria y com isso, reverencia também a ruína. na tradição eurobranca, a ruína está impregnada de valorações negativas, mas em seu trabalho a ruína emerge como espaço de fuga, isto é, de guerra y de calmaria, como espaço de encontro. seu trabalho faz carinho na ruína, porque sabe que ela é também nossa mãe, essa velha misteriosa. por isso também somos atraídas pelo seu magnetismo, pois transformar o carinho na ruína em arte é também uma forma de oferendar afagos. algumas obras de arte me parecem a criação de Mundos em seu estado mais latente. mas alguns de seus trabalhos, como desejo-ruína (Vitra, 2001-2020), são a gênese do que ainda não nasceu y a ruína do que ainda permanece vivo, uma zona limítrofe do antes y depois desses Mundos latentes
talvez a ruína seja, de fato, como diz Luana Vitra, a ancestral da metamorfose. tomando essa frase não como uma máxima mas como uma oração, podemos arruinar a ficção colonial da presença y seu legado de violência y destruição. podemos também arriscar exercícios impossíveis: transicionar do reino animal para o reino sideral; aprender no contato com o chão uma outra carcaça; ter uma geologia mais volátil do que a do Capital; esquentar o pé até ele atingir a temperatura para fundir o Real. a infinitude cósmica de tudo que existe, existiu y existirá, possui a carne ferruginosa de Luana Vitra y, através da sua arte, nos oferta essas outras possibilidades de respirar para sempre
– eu vim aqui para acabar com tudo! – disse Ventania erguendo suas patas peludas com as palmas viradas para cima, com um sorriso aberto, mostrando seus dentes de drucaryum afiados y disformes como os de um tubarão. ao fundo, sob os escombros, começavam a se erguer árvores frondosas, feitas de metal azul y rochas cristalinas.
Zanzado V. Nascimento (eu era a ruína, 2053, p. 210).
abigail Campos Leal cria entre as fronteiras da Arte e da Filosofia. faz doutorado em Filosofia pela PUC-SP. em 2023 participou de exposições coletivas no Itaú Cultural e CCSP, foi residente da Pivô e contribuiu com textos críticos para a Bienal de São Paulo.