Ocupação dos artistas Premiados do PIPA 2023: Helô Sanvoy

Bem-vindes à Ocupação dos Artistas Premiados do PIPA 2023! Até o dia 28 de outubro, os premiados desta 14a edição compartilham com o público virtual do Prêmio PIPA vídeos, fotos e textos – alguns exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 02 a 07 de outubro, Helô Sanvoy exibe alguns trabalhos recentes acerca das poéticas do corpo e fala sobre sua trajetória com o uso de materiais diversos.

Nesta edição, o Prêmio PIPA reforça o formato adotado desde 2021 de receber indicações de trajetórias recentes, direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há 15 anos. O foco do PIPA neste momento é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada.

O material abaixo, publicado diariamente, está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas InstagramTwitter e Facebook.

E lembre-se que os Artistas Premiados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro até o dia 12 de novembro. Será um prazer te receber por lá!


Dia 01:

Goiânia, GO, 1985
Vive e trabalha em São Paulo, SP

Helô Sanvoy é mestre em Poéticas Visuais pela ECA/USP e licenciado em Artes Visuais pela FAV/UFG. É membro do coletivo de performance Grupo EmpreZa desde 2011, no qual desenvolve pesquisa acentuada sobre a poética do corpo e seus derivados. Como artista individual, busca a experimentação e a junção de materiais diversos, como também o estudo de processos, linguagens e suportes.

Realizou exposições individuais no MAC/GO (2014, GO), na CAL/UnB (2014, DF), na Referência Galeria de Arte (2018, DF) e na Galeria Andrea Render (2017, 2018 e 2020, SP). Foi selecionado para o 30° Programa de Exposições do CCSP (2020, SP) e para a Temporada de Projetos do Paço das Artes (2022, SP). Participou de exposições como: Bienal do Mercosul (2020, RS); Zona De Perigo (2016, PR e PE); Imagens que Não se Conformam (2021, RJ), e Carolina Maria de Jesus – Um Brasil para os Brasileiros (2021, SP).

Para a indicação no PIPA 2023, Helô conversou com a equipe da Do Rio Filmes sobre alguns de seus trabalhos e sobre a técnica escolhida para abordar temáticas históricas e sociais. Ouça a fala do artista no vídeo abaixo:


Dia 02:

No segundo dia de Ocupação, selecionamos a série “Lucidez difusa”, de Helô Sanvoy, para ser apresentada ao público. Nela, o artista investiga cacos de vidro temperado, normalmente utilizado em fachadas de lojas e bancos, como símbolo de um material que permite a passagem, mas por outras retém. Enquanto o olhar é autorizado a atravessar o vidro, o corpo encontra uma barreira entre o dentro e o fora desse ambiente. 

Veja abaixo fotos dessa série:


Dia 03: 

Todo ano, o curador do Instituto PIPA, Luiz Camillo Osorio, conversa com os artistas Premiados. Este ano, Helô Sanvoy, um dos entrevistados por Camillo Osorio, fala sobre sua participação no coletivo de arte Grupo Empreza e sua produção individual e comenta sua investigação sobre os materiais e o corpo. Leia a conversa completa abaixo.

Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Helô Sanvoy

LCO – Fale como foi o começo de sua trajetória. Ela se deu junto ao Grupo EmpreZa? Como é a relação entre o coletivo e seus trabalhos individuais?

Acredito que a questão de como surge uma trajetória em arte é bem incerta. Cada vez mais, tenho entendido que essa coisa de fazer arte vai ganhando corpo durante a vida, sem momento específico. Talvez esteja relacionada a uma vontade de lidar com os mistérios das coisas do mundo e/ou com determinadas realidades internas. Durante a infância, em Goiânia, eu morava ao lado do Morro da Serrinha. No topo do morro, tem uma torre de concreto. Pela sua altura e para quem a olha de baixo, dá uma sensação de que a torre está balançando e que, a qualquer momento, ela vai cair. Passava tardes no quintal de casa olhando para a torre, vendo-a balançar de um lado para o outro, esperando o instante em que essa estrutura iria cair. Essa imagem está carregada de questões abordadas na produção de vários artistas. Penso que ter dedicado momentos percebendo esse balançar da torre já fazia parte dessa trajetória. Hoje entendo que já era um processo de maturação do olhar e do pensamento, mesmo sem ter contato com alguma instituição formal de arte. De modo mais prático, o que chamamos de “tornar-se artista”, na minha opinião, está ligado a uma atuação em um meio. É passar a atuar socialmente com as questões e com a história desse meio. Nesse sentido, essa atuação teve início em 2009, quando entrei no curso de Licenciatura em Artes Visuais na FAV/UFG. Nesse período, comecei a buscar uma produção e a conhecer os espaços de arte com os quais eu não tinha contato. Logo nesse início, já busquei experimentar linguagens e produzir trabalhos. A primeira participação em exposição aconteceu em 2010.

O Coletivo Grupo EmpreZa (GE) surgiu no ano de 2001, também na FAV/UFG. Inicialmente, era formado como grupo de estudo e pesquisa em performance e era composto por professores e estudantes. Logo, alguns integrantes desse grupo sentiram a necessidade de não apenas estudar, mas também realizar ações. Meu contato com o grupo se deu em 2009. Fui aluno de uma disciplina ministrada pelo Paulo Veiga Jordão, um dos membros do coletivo. Nesse mesmo período, acabei conhecendo outros membros e, em 2011, fui convidado pelo GE para colaborar com a apresentação do coletivo na exposição “Caos e Efeito: Contra-Pensamento Selvagem”, no Itaú Cultural. Pouco tempo depois, fui convidado a integrar o coletivo. 

As duas produções se deram de maneiras independentes. Após a minha entrada no coletivo, continuei encarando as duas pesquisas desse modo, buscando períodos de dedicação para cada uma. Fora essa postura, existe uma contaminação, que ocorre a partir dos processos de vivência. Com o tempo, fui aceitando de forma menos conflituosa esse processo. E com esse tempo, no trabalho do coletivo, foi possível perceber a presença individual de cada membro dentro de cada trabalho, mesmo a autoria sendo diluída dentro do GE e mesmo com o processo de criação passando por discussão e decisão coletivas. Individualmente, não existe uma colaboração direta com meu trabalho. O coletivo acaba vendo minha produção quando apresento em exposição ou quando recebo alguém em casa. À parte esse diálogo, são duas produções independentes.  

LCO – Há uma exposição sempre radical do corpo nas performances do EmpreZa. Isso de alguma maneira se desdobra no seu trabalho, mas me parece que a dimensão escultórica ganha mais protagonismo, com os materiais ganhando autonomia e energia plástica. Faz sentido isso?

É possível que eu tenha adquirido uma postura mais radical com a vida nos anos 90, o que era um tanto comum entre as pessoas da minha idade diante dos “dramas” e das dificuldades nesse período. Indignação mesmo. E a sensação de estar lutando contra o mundo por sobrevivência e por dignidade. Em um campo mais sensível nesse período, e com uma linguagem áspera, estava o rap: Cirurgia Moral, Consciência X Atual, Álibi, Facção Central, Guind’Art 121, Racionais, Realidade Cruel, entre outros. Essas questões, de um certo modo, foram somadas a essa radicalidade. Quando conheci o trabalho do GE, tive uma identificação. Ainda não sabia o que era performance. Foi durante uma aula que acabei conhecendo Chris Burden, Marina Abramovic, Grupo EmpreZa, Valie Export, Grupo Fluxus, no mesmo dia. Tive a sensação de estar diante de uma entrega, de artistas que se davam à linguagem. De se desdobrar, e não fazer dos seus limites o limite do trabalho.

Com os materiais, não sigo um modo único de trabalhar. Entendo que cada trabalho tem suas demandas, ou seja, não fico preocupado se o próximo trabalho necessita estar atrelado ao anterior. Procuro lidar com as demandas da ideia. Nesse processo, existe uma pesquisa ou um modo de ver o trabalho que é quase intimista. Geralmente toda essa pesquisa fica guardada mentalmente como processo, e o trabalho finalizado vira outra coisa. É como um fluxo de pensamento em que, ali, toda a produção dialoga. Nesse processo é quando vêm os materiais, é quando são feitas as escolhas, o vidro, o couro, o pau-brasil, a palavra, o cabelo. O primeiro trabalho que apresentei em uma exposição foi um desenho, “Sem Título”, com nanquim sobre papel vegetal. O desenho, basicamente, eram as marcações dos textos que estava lendo na graduação. Cada página do texto virava um desenho, e as várias páginas eram sobrepostas. A escolha do papel possibilitava a visão das várias camadas de desenho sobrepostas, o que, de alguma forma, estabelecia uma relação com o tempo de leitura, de ver várias páginas no mesmo instante. Logo, um trabalho que basicamente era linha sobre superfície poderia ser visto a partir das características do material, ou seja, como um objeto, e não como linhas sobre superfície, o que também não deixava de ser. Ou mesmo lidar com coisas sem matéria, como a palavra, que em alguns trabalhos poderia estar na ficha técnica dentre os materiais, como no trabalho “Enquanto Objeto” (2017) ou em “Parabrigar” (2020). O título, em “Parabrigar”, a meu ver, é indissociável do objeto. Com ele, o trabalho é um; sem ele, o trabalho é outro. Falo dele, nessa questão, por ser um objeto que remete a uma ação. O objeto, estando guardado ou sendo lançado, contém sempre essa imanência de ação ativada pelo título. Em 2022, apresentei uma instalação feita com quase 50 peças do “Parabrigar”. Ao fim da exposição, o trabalho ficou disponível para o público levar para casa. Foi um modo de tornar pública a decisão dessa ação, de dar mais uma camada ao trabalho. 

Pensando cronologicamente a minha trajetória, o material veio antes da performance. O primeiro trabalho com a presença do corpo foi o “Estão sendo tecidos”. Ele foi pensado e gravado em 2013, mas, antes mesmo da edição do vídeo, acabei perdendo o HD com os arquivos. Só fui refazê-lo em 2018. Apesar de ser uma ação para o vídeo, a palavra e o cabelo estão presentes como materiais. Ainda em 2013, realizei “Desvio para o branco”, que foi uma intervenção para gerar notícias na mídia. O que estava em questão, inicialmente, seria essa inserção na construção de um imaginário ou de narrativas populares. Essa margem, em que a aparência inicial das coisas vai puxando outras, é um tanto fascinante. Como processo, busco trabalhar com os materiais me atentando às possibilidades simbólicas, sem perder de vista o material como substantivo. É possível abordar questões históricas e sociais com determinados materiais, ao mesmo tempo que é possível trabalhá-lo como matéria. O simbólico e o substantivo do material não são excludentes entre si. Permitir a matéria é dialogar com o átomo, com o grão de areia, com a pedra, com o planeta e com os Pilares da Criação. O corpo faz parte disso tudo também. Uma trança pode trazer toda uma história relacionada à população negra, como também pode levantar questões sobre uma força presente no arranjo da trança, como fez o Tunga. A trança é um produto da atividade humana. O chumbo e a madeira são coisas que existem antes mesmo da língua que os nomeia. Entendo que esses materiais perdem se forem vistos sob perspectivas unívocas. Usá-los é agir para tornar algo presente, algo que seja verbo e transite entre possibilidades.

LCO – Como você pensa a relação entre o performativo e o escultórico na sua obra? Eles se complementam ou se diferenciam?

Especificamente, não tenho essa preocupação. Entendo que, de certo modo, os limites das linguagens em artes são diluídos, a não ser quando há uma escolha pessoal do artista. Tenho pensado que lidar com a liberdade é uma questão fundamental do fazer arte, o que é bastante complicado e moroso, pois, a todo momento, estamos lidando com as imposições externas e internas. E os recortes que surgem dentro da própria pesquisa podem virar limites. Não deixar que o conjunto de trabalhos já feitos seja uma margem, um limite a ser obedecido, e sim uma possibilidade de ampliação.

Tento lidar com a demanda de cada trabalho. E lidar com o que aparece depois, com o que vem junto com ele. Dessa forma, é possível empurrar um pouquinho os limites que aparecem dentro da própria pesquisa. A ideia do que “está sendo” e não do que “é” me parece mais instigante; deixar a coisa se desdobrar no olhar e no debate. De maneira geral, o corpo estático ou em ação no espaço já invoca uma relação escultórica. Uma escultura está atrelada a uma ação, mesmo nos casos em que há uma apropriação de objetos da natureza.

LCO – Como se articulam o artista e o pesquisador para você? A teoria inibe ou libera a criação?

Tenho pensado como os processos e as linguagens, que são mais comuns nas universidades, têm se tornado cada vez mais presentes nos processos em artes – apesar de pensar sobre isso com uma profundidade de poeira de superfície. Fazer arte está ligado a processos de pesquisa, mesmo em casos em que o fazer está voltado para questões mais técnicas e práticas do que para teorias ou métodos não formais ou científicos. Quando a atenção é direcionada para um meio mais teórico, há uma busca de um campo ampliado de referências e suportes, em uma tentativa de se ter compreensões mais amplas da produção.

Compreendendo arte como fazer, como atividade, como ação, o que direciona a produção de quem cria é o conjunto de experiências acumuladas, juntamente com o recorte que vai surgindo com o conjunto de trabalhos realizados. Entre essas experiências acumuladas, está a teoria, e ela é somada às outras. Não estou falando aqui de embasar ou de direcionar a produção a partir de conceitos ou autores. Isso pode engessar o trabalho, quando é feito pelo artista, na minha opinião. Estou falando de estar aberto a dialogar com as coisas que existem. Nesse sentido, vejo uma perspectiva mais interessante.

Nos processos diários, pesquisar coisas pode fazer parte da prática. Na pesquisa com o pau-brasil, os trabalhos foram desenvolvidos a partir de processos de leitura da história dessa árvore. Esse período de leitura, a meu ver, é tão prático quanto pôr a mão na massa. Esse processo de leitura delimitou a forma, a escolha dos demais materiais e os títulos. Claro que não é necessário que quem se coloca diante do trabalho precise saber das leituras que foram feitas. E o trabalho não precisa ser visto sob essa perspectiva. É nesse sentido que algumas coisas se perdem e outras aparecem depois que o trabalho é finalizado.


Dia 04:

Exclusivamente para o Ocupação, Helô produziu um vídeo em que conta sobre seus trabalhos recentes e que estão em cartaz neste momento. Conheça esses trabalhos no vídeo abaixo:


Dia 05: 

No quinto dia de Ocupação, selecionamos o trabalho “Gamela”, de Helô, para ser apresentado ao público. A obra está sendo exibida na Exposição dos Premiados do PIPA, no Paço Imperial. 

O trabalho é composto pelos materiais que fizeram parte dos principais ciclos econômicos do Brasil: o ciclo do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro, do algodão, do café e da borracha. Para somar aos materiais correspondentes aos ciclos econômicos presentes no trabalho, acrescenta-se a carne seca. 

Veja nas imagens abaixo detalhes da obra e vistas da exposição em cartaz até 12 de novembro. 


Dia 06:

Como Premiado, Helô pediu à Rachel Vallego que escrevesse um texto crítico sobre seu trabalho para estar disponível no catálogo desta edição. Leia o texto na íntegra abaixo:

Na balança de Anúbis

Rachel Vallego

No antigo Egito, acreditava-se que após a morte as pessoas, independentemente de sua origem ou posição social em vida, eram julgadas no Tribunal de Osiris, e seu coração seria pesado na balança de Anúbis. De um lado o deus com cabeça de chacal colocava o coração do morto e, do outro, uma pena de avestruz, símbolo da deusa Maat, senhora da verdade. Assim, para entrar no reino da além-vida, seu coração precisaria ser tão leve quanto uma pluma. 

Essa imagem traz uma dimensão fundamental da obra de Helô Sanvoy: o equilíbrio entre simbólico e formal, razão e sentimento. Acima de tudo é a perspectiva da plenitude de quem consegue equilibrar um trabalho profundamente crítico, intenso, provocativo, que exige presença e reflexão, e o faz de forma tão serena quanto contemplar uma paisagem. 

A leveza não é algo leviano, tão pouco deve ser confundida com docilidade. Em “Refazendo Mitos”, 2020, Sanvoy retoma o gesto do bandeirante Anhanguera, ateando fogo a sua estátua localizada na frente do parque Trianon, em São Paulo. Bartolomeu Bueno da Silva ficou conhecido por ameaçar os indígenas a atear fogo sobre a água dos rios, quando na verdade utilizava cachaça, e assim recebeu a alcunha, do tupi, “diabo velho” ou “espirito maligno”. O gesto é fundamental na poética de Sanvoy e está sempre imbuído de profundo significado simbólico. A história se mantém viva, seja na imposição de uma imagem em praça pública, seja na ação poética que faz valer essa história.

Em “Casa de Ferreiro”, 2021-2022, Helô Sanvoy opera uma inversão ao criar uma faca cuja lâmina é de madeira pau-brasil, e a empunhadura de aço inox. Essas obras estabelecem um dos cernes de seu trabalho: objeto e título são indissociáveis em sua produção. Sanvoy torna material o imaterial. Ao buscar nos materiais mais elementares e nos saberes tradicionais, como o ditado popular “casa de ferreiro, espeto de pau”, ele provoca um ruído que atinge o cerne de uma ideia do que é ser brasileiro. O mesmo procedimento ocorre em “Pau de tinta/ Pau de fogo”, onde um cartucho de munição é preenchido com um projetil de madeira pau-brasil. Desde a matéria escolhida, o pau-brasil – árvore da qual origina o nome de nosso país –, à construção de significado que os objetos provocam, uma vez que o extrativismo do pau-brasil inaugura nosso primeiro ciclo econômico e aponta para as consequências vividas pelo país até hoje. A proibição da manufatura em território brasileiro instala o modelo de econômico de exportação de matérias primas que são levadas pelo colonizador. Nós somos os próprios ferreiros usando espeto de pau, despidos de nossas riquezas e fadados a nos adaptarmos com o que restou. 

Evidentemente, o que restou não é tão pouco assim. Contudo, outros ciclos exploratórios vieram, da cana de açúcar, do café, do algodão, do ouro, da borracha, que são também elementos que permeiam o vocabulário poético de Sanvoy. Em “Gamela”, 2021-2022, Sanvoy reúne um bloco de pau-brasil, borracha, folha de ouro, chumaços de algodão, punhados de café e açúcar sobre um gamela moldada em carne seca. É a carne que suporta nossas riquezas, a carne do gado de pecuária que devasta florestas, a carne cortada dos escravizados forçados a trabalhar, a carne seca daqueles que não tiveram direito ao fruto de seu trabalho, a secura dos rios e das matas devastadas, a secura dos retirantes que fugiram para os grandes centros com promessas de trabalho e esperança de um futuro melhor, mas que encontraram novas formas de exploração. Todos figuram ali, naquela gamela que ostenta todas as nossas riquezas, ao mesmo tempo que provoca uma sensação de asco. Ojeriza de nós mesmos? Daquilo que nos tornamos? A carne de “Sal de cura”, 2014-2018, revela algo desse processo. O sal usado para preservar a carne recebe também cartuchos de munição. Da violência ancestral à contemporânea, a carne nunca é poupada.

Sanvoy volta a expor nossas entranhas, espalhadas sobre uma grade de metal em “Âmago encarnado”, 2022. O âmago encarnado é a denominação da parte mais interior do pau-brasil, de onde é extraído o pigmento tão valioso que justificou a quase extinção dessa árvore em território nacional. O pó de café e pigmento de pau-brasil tingem o algodão entramado na grade que sustenta todos os elementos. Mas a grade também nos pergunta se estamos dentro ou fora. O que nos separa do outro é também o que nos separa de nós mesmos? Nossa glória e nosso colapso resumidos. É a brutalidade do fato, como diria Francis Bacon sobre sua obra “Painting”, 1946, da coleção do MoMA-NY. 

É também o que “Não desce pela garganta”, 2021-2022, série em que um nó de forca feito com corda de cânhamo é apresentado como um colar com um pingente de pau-brasil, talhado com números da violência contra grupos minoritários em diferentes períodos da história brasileira. A partir da corda de cânhamo, Sanvoy recupera duas expressões correntes: o “nó na garganta” e “com a corda no pescoço”. A primeira tem relação com um sentimento de forte emoção, enquanto a segunda se refere a situações de grande pressão ou de uma experiência limítrofe. Ao cruzar com dados como a quantidade de mortos durante a pandemia de covid-19, ou que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil, o artista provoca as sensações das expressões de maneira quase sinestésica. 

A corda de cânhamo lembra também outro material que Sanvoy utiliza com frequência, as tranças de couro, que surgem em trabalhos como na série “Lucidez Difusa” e nas performances “Empelo”, 2023, e “Estão sendo tecidos”, 2018. O couro é o corpo, a pele do boi, que encontra múltiplos usos sociais. Mas é também a trança do cabelo, que evoca uma experiência afetiva e familiar quando mãe e filho se sentam para cuidar um do outro. O trançar os cabelos é um gesto ancestral, e na performance “Estão Sendo Tecidos”, dona Maria Conceição compartilha histórias de sua infância e de como a mãe dela cuidava de seus cabelos. O vídeo permite aproximar-nos de um momento intimo e sereno, mas que foca na tensão necessária ao ato de trançar e as mãos que puxam, separam e penteiam os cabelos. 

Ouvimos as histórias de uma infância na roça, a rotina dos cuidados do cabelo, a banha de porco e o cheiro do óleo perfumado que só era usado em ocasiões especiais. As memórias do trabalho no campo, do isolamento da fazenda onde ver um caminhão passar era um grande acontecimento. Quando as tranças são finalizadas, Sanvoy devolve-as a terra. Num ato de plantá-las, enterra sua própria cabeça e se transforma no homem-árvore que brota daquele chão. Aqui tudo é poesia, mas do tipo que sobe num calafrio pela espinha. 

A tensão necessária para as tranças é retomada na performance “Empelo”, 2023, que surge de uma provocação sobre a origem do nome da cidade de Pelotas, RS. A pelota era uma pequena embarcação feita de couro e puxada pela boca para atravessar os rios da região. De costume indígena, se tornou uma prática comum, retratada inclusive por Debret, na qual negros escravizados nadavam puxando pela boca seus senhores para atravessar o rio. Na performance, Sanvoy aparece nu – em pelo – e seus cabelos estão trançados junto a tranças de couro presas na parede. A ação consiste em tencionar as tranças na distância exata em que seus pés sobem pela parede e seu corpo fica suspenso, formando um triangulo no ar. 

São poucos segundos no qual acompanhamos o gesto de segurar o cabelo tramado ao couro que sustenta toda a tensão e peso do corpo, que é irremediavelmente atraído de volta ao chão. A cada tentativa, a gravidade nos lembra que estamos todos submetidos a ela, somos todos filhos dessa terra. Mas isso não impede Sanvoy de desafiá-la de quando em vez, de buscar o tênue momento em que seu corpo, leve como uma pluma, sustenta-se. 

É importante retomar a dimensão formal de seu trabalho, o gesto nunca é gratuito, e além de simbólico, se estrutura num pensamento conceitual que cria materialidade e visualidade. Nunca mera ilustração, em Sanvoy a ideia toma forma, passa a estar no mundo, a provocarmo-nos, desestabilizarmo-nos. Nada é tão abstrato quanto a palavra, e fala tão alto quanto uma imagem. Seu coração sim, é mais leve que uma pluma.

Rachel Vallego é curadora e pesquisadora. Doutora em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo, mestra em Artes e graduada em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília. Como pesquisadora, estudou a consagração do modernismo e do mercado de arte nas décadas de 1960-70. Entre 2020-2023 foi coordenadora de conteúdo da Base7 Projetos Culturais, coordenou as exposições Brasilidade Pós-Modernismo, itinerância CCBB RJ, SP, BSB, BH; Ideias: O Legado de Giorgio Morandi, CCBB SP e RJ, Prêmio APCA de melhor exposição Internacional 2021, entre outras. Desde 2021 é coordenadora de projetos do grupo de pesquisa Academia de Curadoria, na qual realiza a curadoria para a coleção de artes digitais ARTEMIDIAMUSEU para o Museu Nacional de Brasília. Em 2022 foi curadora da exposição EntrePanos: rupturas do moderno e contemporâneo na Casa Fiat de Cultura, BH. Em 2023 foi curadora adjunta de Ana Avelar da exposição Ohtakes: Abstração Intuitiva, realizada na Casa Caldas, Brasília.

 


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