Luiz Camillo Osorio conversa com Iagor Peres

Leia a conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Iagor Peres, realizada após a escolha do artista como um dos quatro artistas Premiados do PIPA 2023.

1 – Como a dança foi importante na sua formação e na construção da sua poética? 

Sinto que eu já respondi essa pergunta de tantas formas que aqui fica até complexo reinventar um caminho para abordar essa questão mais uma vez, mas aqui vamos… Aquilo que se aprende com o corpo permanece e se transforma no próprio. A dança é uma linguagem até hoje presente na minha maneira de pensar espacialidade e composição, uma vez que essa linguagem conta com não só a presença dos corpos, mas seu deslocamento e transformação no e com o espaço. É através do corpo e no contato com a dança que o invisível toma forma ao instaurar um campo de atenção e energia que surge desse encontro entre esses corpos que ali se dispõem. Perceber e lidar com dinâmicas muitas vezes implícitas que mudam nossas relações é compreender que, a depender da situação, atravessar uma rua com 10 metros de largura pode soar como se fossem 5 ou 50 metros ou até mesmo 1 km de travessia, dependendo do que lhe aguarda, das intenções e mais uma outra série de fatores. É também pela intersecção da dança com outras linguagens, como o vídeo, que tenho meu primeiro contato com a ideia de uma linguagem híbrida. Algo que necessariamente só poderia ser daquela forma, pois existiria nesse entre e no limite de ambas, a ponto de que, se dissociadas, já não mais apresentariam a mesma força e corpo. Outro movimento que me faz perceber a importância da dança no meu pensamento é a ideia da receita. Em muitos dos meus trabalhos, a receita se apresenta como um repertório gestual arquivado no corpo que guarda o conhecimento nele e continuamente o transforma, mesmo que por pequenas variações de dosagem. Algo que poderíamos dizer que se guarda num espaço de memória, mas que está acontecendo e sendo revisitado sempre no agora, no meio do fazer. Para além de tudo isso, o próprio movimento da matéria me faz pensar que existe um gesto coreográfico de composição, já que alguns dos trabalhos contam já com o movimento no tempo e seu deslocamento e desenho no espaço. 

2 – Seu movimento em direção à escultura teria surgido a partir da sua decisão de tirar o protagonismo do corpo na construção da linguagem. Isso implicava uma aposta nos materiais como energias simbólicas, como um jogo entre o que se formaliza e o que escapa? 

Usualmente as pessoas compreendem, por vezes assim o narram – às vezes até eu mesmo –, que esse caminho de retirada do corpo e aproximação de outras corporalidades se deu por um desejo guiado em direção à escultura, e não necessariamente o foi. O desafio maior que se apresentava, e que segue vivo, é habitar o entre das linguagens e pensar junto a corporalidades e corporeidades que desafiassem ou que nem tenham a ver com as bases clássicas e modernas, e que, ao se insistirem inconformadas, entrecruzam linguagens como a performance, a dança, escultura e o desenho sentido à instabilidade e a transformação, transpassando desde sua conformação a um suposto desaparecimento no espaço. Um compromisso de como estabelecer, então, uma relação com uma materialidade que fosse agente de suas transformações e que por isso escapa e nunca se tornará de fato evidência. Além desse ponto, existem movimentos nas linguagens de certos trabalhos que são postos de maneira a convidar a repensar esses limites e por vezes carregam algumas dessas palavras consigo, às vezes estabelecendo diretamente um contraponto crítico sobre a nomeação da linguagem e às vezes não. É interessante trazer tudo isso aqui porque

justamente explicita que um jogo simbólico não seria o suficiente para o que estava buscando. 

3 – O teu trabalho é político sem ser ideológico, ou seja, ele não é nunca evidente nem ilustrativo, mantendo um grau de indeterminação que abre os espaços para quem com ele interage. Ele toca em questões de identidade de forma subliminar, estabelecendo uma relação produtiva entre o dito e o não-dito, o visível e o invisível. Poderia falar sobre como você vê a política no teu trabalho e também sobre esta relação entre arte e política hoje? 

Acredito que esses componentes políticos no meu trabalho se conectam a um desejo de recusa e de perturbação àquilo que, de alguma forma, já orienta ético-politicamente as pessoas que em geral acessam minha obra mais do que uma vontade de alimentar narrativas massivamente difundidas nos últimos anos. Tenho me esforçado para buscar abordagens que estejam pautadas fora dos modelos representacionais experienciados e revisitados com frequência. O que acontece quando aquilo que está dado é a própria Coisa em questão e não uma representação, ilustração ou abstração de si mesma ou de algo, e sim uma própria corporalidade agente? Nessa via, a ideia que me move tem a ver com um gesto crítico sobre como se criam e conformam as ferramentas simbólicas e cotidianas que se desdobram a partir da elaboração do arsenal racial criado e sua habilidade de despersonificar e produzir e justificar morte. Muitas vezes esse gesto é tomado por alguns como uma proximidade a uma questão identitária, mas na qual na verdade não me debruço ou nem alimento interesse. Me interesso por pensar alternativas nas quais o público, se caso apegado à narrativa normalizada orientada por aquilo que conforma um hábito da branquitude – o de estagnar as coisas “em seus devidos lugares” (simbólicos, sociais, espaciais, categóricos, representacionais) porque “assim se supõem que são” –, provavelmente não acessará aquilo que pode não ser tão óbvio assim, e talvez nem esteja tão dado quanto parece. 

Esse é um dos movimentos que me faz relacionar com aquilo que poderíamos entender como não-dito, visível ou (ex/im)plícito de alguma forma, porque ao final, nessa relação, o que me chama a atenção é o potencial que essa corporalidade tem de expor direta e radicalmente a perspectiva de quem encontra com a mesma. Para além de outros fatores e corporalidades que também não são deflagradas aos olhos, falo de um movimento de trânsito simbólico das Coisas em que, a depender das diferentes visões sobre esta, a mesma habitaria posições categóricos distintas e por vezes isso a levaria a ter sua condição de ser/existir atrelada a uma determinada jurisprudência frente às instituições maiores que formam, desenham e mantém a sociedade em que estamos inseridos e que conduzem a partir dos aparatos legais possibilidades e impossibilidades de deslocamento e agência nos meios. Mas, para além de tudo isso, todas essas Coisas seguem carregando seu aspecto incapturável, uma vez que as mesmas podem ser tudo aquilo que seja possível imaginar sobre elas, nada disso e sempre algo mais. 

E assim, através dessa Coisa que habita um terreno categórico elástico, possamos talvez, então, reten(s)ionar composições jurídicas a fim de buscar destruir os aparatos que comumente negam uma transformação de condições de existência para determinados corpos para além dos limites da violência racial e ou categórica. Acredito que uma das ferramentas que nos ajuda a pensar tudo o que estou dizendo é a ideia de frequência. Frequentar um corpo significa aqui então criar ferramentas que te possibilitam transformar nossa noção das Coisas ao perceber algo à primeira vista estático como mutável e vivo. Digo isso pela experiência que já tive expondo em instituições nas quais, quando eu retornava a visitar o trabalho, os comentários mais interessantes sobre o trabalho vinham justamente das pessoas que trabalhavam ali e frequentavam aquele espaço, não necessariamente por visita. Ou seja, a pessoa que cuida da seguridade da sala de exposição, a equipe que é encarregada da limpeza do espaço, a equipe do educativo, e assim vai. Me interessa pensar que, então, essa ferramenta poderosa está então mais perto daqueles que supostamente estão tidos como distantes desses circuitos do que os agentes que supostamente já detêm o saber, a noção e o lugar das Coisas. 

4 – Nos seus últimos trabalhos, a partir de “When the matter is gone”, sua obra parece mais interessada no desaparecimento da matéria, na desmaterialização e na propagação de energia. Ao mesmo tempo, suas esculturas parecem ainda voltadas para a “estruturação de corpos densos”. O que te interessa nesta dialética entre matéria e energia, entre visível e invisível? 

Eu não acredito no desaparecimento da matéria, pelo menos não nesse desaparecimento que é ligado a uma ideia de inexistência, não presença ou algo que remeta a isso. No geral, acredito na presença e existência de tudo aquilo que parece não habitar lugar algum. E nesse habitar, a contradição tem sido cada vez mais presente, e o título “When the matter is gone” é um pouco deságue dessa perspectiva que trago, isto porque, o que por vezes chamamos de “desmaterialização”, muitas vezes está vinculado ou pautado em uma experiência de ausência de fatores ligados à visualidade, e a outros sentidos como tato, auditivo e olfativo, ou seja, nesse caminho de não encontrar os fatores comuns ao que dá a base para uma ideia de algo “ser ou estar” material. Quando, ao contrário, aquilo que atinge um estado de matéria que supera a deflagração por qualquer uma dessas vias permanece sendo tão material e presente quanto um bloco de concreto, uma ideia ou um fragmento de um átomo. E aí habita um pouco minha curiosidade… Nessa possibilidade elástica e metamórfica infinita que a matéria nos apresenta, e nesse movimento venho me aproximando dessas outras corporalidades e movimentos cada vez menos presentes aos olhos e, ao mesmo tempo, sigo conformando aquilo que você colocou como uma “estruturação de corpos densos”, uma vez que, por mais que aparentemente polarizados, na verdade são movimentos complementares de uma mesma discussão.

 


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