Luiz Camillo Osorio conversa com Glicéria Tupinambá

Leia a conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Gliceria Tupinambá, realizada após a escolha da artista como uma das quatro artistas Premiadas do PIPA 2023.

1 – Como se deu sua formação como artista? O que significa para você assumir-se como artista?

Sempre dei aula na comunidade e as disciplinas que eu ministrava sempre estavam ligadas à arte, à cultura e à religiosidade da comunidade. Então a comunidade já me reconhecia como artista, fora não. Esse reconhecimento se dá quando, em 2020, eu começo a confeccionar o manto Tupinambá para o cacique Babau, e a professora Jurema me pede para fazer uma participação em uma aula que ela ministra. Jurema Machado, professora lá do Recôncavo, de Cachoeira, pede para eu fazer uma participação de Instagram com ela, mostrando o que está sendo feito na comunidade, e eu apresento o manto, a confecção do manto, aplicação… Posterior a isso, ela pede para eu mandar um vídeo, e eu faço e mando, explicando sobre essa questão da arte plumária e da trama do manto, e assim eles têm um programa, um projeto, e me informaram posteriormente que eu tinha sido premiada com o prêmio “De um outro céu”, e tinha ganhado um prêmio de dois mil reais. Desse “De um outro céu” veio também essa outra proposta de 2021, do prêmio da Funarte. E aí eu comecei a participar, então daí veio esse reconhecimento como artista, e venho atuando porque eu não conhecia esse meio da linguagem, que a linguagem chegava muito mais rápido e acessava mais pessoas. Então foi um mecanismo de luta, na verdade. Se empoderar dessas ferramentas e desse meio de linguagem. 

E aí, nesse aspecto, eu assumo essa categoria de artista para dar visibilidade à luta do território, esse chegar aos museus, fazer essa trajetória, esse caminhar. Então hoje assino como artista.  

2 – A arte contemporânea indígena tem ganhado cada vez mais relevância na cena brasileira. Como você vê este crescimento e o quanto isso acarreta o reconhecimento de práticas ancestrais que ficaram durante anos esquecidas e desvalorizadas? Há risco desta integração, no contexto da arte contemporânea, descaracterizar esta produção, dela perder sua especificidade? 

A questão desse reconhecimento hoje pelas artes, conhecendo os indígenas, essa categoria de arte contemporânea ligada a essa cosmo-técnica… Vou tratar aqui do que eu faço, que é relacionado ao cosmos que vem ligado ao sonho, que tem uma interação de uma grande escuta, de uma escuta mais sensível, que não entendo como a habilidade trazida para o meu trabalho. Ele está relacionado a esse contexto dessa técnica, da cosmo-técnica ligada ao fazer, e a gente consegue entender que é uma técnica que foi adormecida, que a gente não entendia bem o que nós tínhamos, o que tem dentro do território, dentro da comunidade, junto às mulheres. É diferente, eu acho, do que é proposto pela questão da arte contemporânea colocada nessa missão, porque tem vários artistas, várias pessoas que chegam nesse campo, mas dificilmente os artistas que vivem dentro do território, dentro da comunidade, para chegar nesse espaço contemporâneo é muito mais difícil, não é tão fácil e ainda não tem de fato esse acesso. É muito difícil, geralmente as pessoas que acessam estão nesse circuito São Paulo-Rio.

3 – Há no momento uma discussão sobre a devolução pela Dinamarca de um dos mantos Tupinambás para o Museu Nacional. Independentemente da justiça inerente ao gesto, o que isso significa para uma artista tupinambá, herdeira deste passado e desta tradição e que vem há algum tempo reativando a artesania dos Mantos?   

Essa caminhada junto aos museus, junto a essa escuta, que foi estabelecida na verdade junto aos parceiros, para que de fato se desse o desejo do próprio manto regressar… A gente trata de uma linguagem envolvendo uma comunicação sensível, no caso atendendo o pedido dos encantados para que o manto regresse, volte para casa, volte para o território. Nesse sentido, tem um significado muito mais profundo, é a presença de um deus na terra, e as pessoas consideram como arte. E é uma técnica simples, mas não é só um fazer, não é artesanato, vai muito mais além do artesanato. Eu acho que essa palavra do artesanato empobrece a grandiosidade, porque não envolve só a técnica de fazer com as mãos, mas o que envolve também é todo esse aspecto que envolve desde a natureza, os pássaros… É você construir toda essa atmosfera, e fazer essa ligação entre todos esses elementos, que estabelecem uma comunicação desse mundo e um mundo do invisível. Então não é só falar de um patrimônio que está voltando, ou dessa relação de parceria junto ao museu da Dinamarca, dessa compreensão de entender. É muito importante quando os parceiros somam junto com essa luta, e tem esse reconhecimento e a linguagem que as pessoas entendem, que seria essa questão de arte. Então eu estou devolvendo para o meu povo essa força que ainda está nesse processo, dessa organização do autogoverno tupinambá. 

E significa, para mim, para o território, e para as futuras gerações do meu povo, que tem uma história com começo, meio e fim, que eles podem dar uma continuidade e entender qual é o processo da sociedade tupinambá e desse autogoverno e do governo dos mantos, do assojaba tupinambá, então para mim significa ser imensurável, não tem como dizer ou medir essa relação, essa cosmo-técnica. 

4 – Nesta prática de “reanimar” os Mantos Tupinambás, reinventar uma artesania ancestral, percebo que há uma relação com o tempo muito diferente daquela que a arte contemporânea mantém. Por exemplo, a obsessão que temos com a originalidade é algo irrelevante. É como se o novo e o atemporal assumissem uma cumplicidade que para nós, ocidentais modernos, seria impensável pela própria contradição dos termos. É como se o seu gesto criativo não fosse só seu, mas de todo um mundo ancestral que se renova e se atualiza através dele.  Como você vê isso? 

Essa prática, eu vejo como esse despertar dos mantos, porque os mantos no autogoverno tupinambá são mantos celestiais, então, eu falo, entendo, que seja um deus na terra. Então esse fazer eu chamo de cosmo-técnica, porque não vem de mim, é diferente de eu ter o controle. Ele ultrapassa o controle humano. E vem no sonho, nessa imensão, na escuta dos pássaros, na participação das mulheres da comunidade, na mão das crianças que vem e entregam uma pena, então esse fazer é um fazer coletivo que envolve toda essa imensão. Não há uma pressão, uma exigência, mas uma escuta sensível e que amplia. E aí eu percebo que nesse fazer, nesse despertar, de entender o comando e o autogoverno através dos mantos tupinambás, que nunca foi estudado, nunca foi visto, nunca foi visto qual era a real função junto aos mantos. E aí hoje que se tem condições de entender tudo isso, e foi através dessa técnica, da cosmo-técnica, para esse entendimento de toda a recuperação da nossa cultura, entender a função social. Hoje, para as pessoas, eles entendem como arte, arte contemporânea, mas eu vejo muito além. Não cabe nessas linguagens, mas é a linguagem que a gente tem para poder expressar um entendimento mais humano, mais aqui, que está ligado nessa arte, classificado como arte contemporânea. Mas o entendimento para os mantos é que existe um autogoverno, que é formado por três camadas, que são os três pajés, os quatro caciques e as 6 mulheres em rituais que detém o uso do manto. Então você tem aqui um comando, um autogoverno, que delibera sobre o povo. Não é arte. Mas dentro desse formato, as pessoas podem visualizar a arte.

O manto, a feitura do manto, ele nasce através das minhas mãos, mas quem assina o manto é toda a comunidade, porque ele tem a participação de tudo. Então o espaço, a feitura do manto, não é individual, ele é coletivo, vai ser sempre coletivo, porque a pessoa não faz o manto sozinho, não consegue fazer sozinho porque você depende das pessoas: desde a coleta das penas, quem vai te entregar as penas, por onde passam essas penas, todo esse envolvimento. Eu vejo um fazer de uma arte coletiva. Como nós povos indígenas somos coletivos, não se passa por um espaço individual, mas um espaço coletivo, construído pela mão de todos.

 



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