Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, visitou a exposição “Tosquelles: como uma máquina de coser em um campo de trigo”, no Museu Reina Sofia, na Espanha, e desenvolveu este texto no qual comenta a trajetória de Francesc Tosquelles, revolucionário psiquiatra catalão que atou muitos anos no Hospital de Saint-Alban, na França. A exposição no Reina Sofia esteve em cartaz de setembro de 2022 até março de 2023. Ela agora segue para o American Folk Art Museum, de Nova York, de 12 de junho até 23 de outubro de 2023. Já esteve nos museus Les Abattoirs, Musée – FRAC Occitanie e Centre de Cultura Contemporània de Barcelona – CCCB.
O texto é uma continuação do podcast gravado com Carles Guerra, curador da mostra, em 2022. Ouça o episódio aqui.
“Tosquelles: como uma máquina de coser em um campo de trigo”, exposição com curadoria conjunta de Carles Guerra e Joana Masó, no Reina Sofia de Madri, traz à tona o trabalho fundamental do psiquiatra catalão, Francesc Tosquelles, entre as décadas de 1940 e 1960. Refugiado na França, depois da derrota na guerra civil espanhola, revolucionou a psiquiatria e as instituições psiquiátricas com seu trabalho no hospital de Saint-Alban a partir de 1940. Em meados do ano passado fizemos um podcast do PIPA com Carles em que discutimos o projeto desta exposição e o tema complexo das relações entre arte, loucura, cuidado e instituições. Agora, depois de visitar a exposição, o fascínio por Tosquelles só aumentou.
Muitos desafios rondam um projeto como este. Como deslocar o trabalho realizado no interior da instituição psiquiátrica para dentro de uma instituição museológica contemporânea? Como atualizar as adversidades daquele contexto da guerra para a atualidade? Como lidar com a criação no ambiente psiquiátrico sem idealizar a loucura? Todas estas questões tangenciaram o trabalho dos curadores no desenvolvimento desta pesquisa e projeto curatorial. O título que remete a uma apropriação de Tosquelles da frase de Lautreamont, adotada pelos surrealistas, coloca a máquina de costura não junto a um guarda-chuva e uma mesa de dissecação, mas junto ao campo de trigo, ao desafio do trabalho e da produção. Este deslocamento diz muito das suas referências artísticas e políticas e sua atuação na reconfiguração da instituição psiquiátrica.
Como escreveram no catálogo da exposição os diretores do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, Judit Carrera e do Reina Sofia, Manuel Borja-Villel, “o programa político de Tosquelles é o de uma utopia pragmática e da defesa de uma escola da liberdade que interpele a todos, inclusive aos museus e centros culturais, uma vez que o ‘apragmatismo é a porta do fascismo’”. Tomar como foco da exposição a formulação de uma psicoterapia institucional – curar a instituição psiquiátrica, mais que a loucura – pode ser de grande valia se queremos transformar de dentro as instituições de arte. As instituições podem ser espaços que valorizem práticas heterogêneas, laboratórios que redefinam os modos de inserção da loucura (e da arte) na vida, nas dinâmicas cotidianas que ficam normalmente apartadas das instituições psiquiátricas e artísticas. Obviamente, o hospital psiquiátrico e o museu são instituições diferentes e carregam desafios distintos, mas há muito a aprender nesta troca efetivamente transdisciplinar.
A formação de Tosquelles como psiquiatra e psicanalista junto aos movimentos anarquistas e obreiros da Catalunha ao longo dos anos 1920 e 1930, deu-lhe um aprendizado singular da convivência conflituosa e democrática dos coletivos e de processos decisórios horizontais. A inclusão na exposição dos cartazes e as atividades do BOC (Bloc Obrer i Camperol) e do POUM (Partit Obrer d’Unificació Marxista (POUM), permitiu observarmos a confluência naqueles movimentos entre a militância política e a partilha cultural. A convivência criativa e as práticas coletivas, com enorme presença feminina, dão a pista do que seria desenvolvido posteriormente no contexto do hospital psiquiátrico, com seus cineclubes, grupos de leitura, workshops musicais, ateliês de pintura, além da viva interação entre internos, médicos, camponeses, freiras. Até mesmo prostitutas eram convocadas para ajudar, desde que não houvesse sexo. Todos que participaram das atividades no hospital de Saint Alban eram pessoas que sabiam lidar com a complexidade humana. Este foi o único hospital psiquiátrico na França ocupada que não teve paciente morrendo de subnutrição, enfrentando a política fascista do “extermínio doce”, que deixava morrer de fome os desajustados.
Outro aspecto que fica patente vendo filmes e entrevistas de Tosquelles é o fato dele ter sempre vivido entre as línguas – o castelhano, o catalão, o francês – expressando-se frente à urgência das adversidades, apropriando-se dos gestos, das interjeições e cacoetes sonoros para ganhar eloquência e persuasão. Uma liberdade de expressão usada para fazer uma grande colagem, um experimento vivo de tradução, entre teoria e prática, entre psicanálise, psiquiatria, militância política, gestão institucional, experimentação artística, sempre movido pelo embate concreto com a realidade, sem idealizações e com muita atenção empírica às diferenças.
“Contrariamente à antipsiquiatria, que negava a validade do hospital e da instituição psiquiátrica, Tosquelles defende a necessidade de uma instituição aberta, viva, expandida, que se insere na comunidade e se transforma continuamente através do trabalho e do movimento constante”, apontam Carrera e Borja-Villel. É com este espírito de transformar de dentro as instituições, percebendo nelas uma escuta às demandas intrínsecas do contexto em que se inserem que a experiência de Saint Alban reverbera no presente e nos desafios de rearticular arte, vida e sociedade sem idealismo exagerado. Entre parênteses, cabe mencionar que vi esta exposição na mesma semana da ARCO em Madri. Ou seja, sem qualquer moralismo descabido, foi bom perceber que há linhas de fuga para serem reapropriadas e reinventadas além da mera comercialização da arte.
A maneira como Tosquelles veio a integrar, no contexto da guerra e da ocupação nazista na França, a prática artística no interior do hospital, merece ser destacada. Já existindo desde os anos 1920, principalmente com as experiências de Prinzhorn na Alemanha, os workshops de Saint Alban tinham uma perspectiva original: não se tratava apenas de contribuir na leitura do subconsciente de pacientes com alguma patologia psíquica ou na demonstração de uma potência criativa inerente ao humano e que não se deixava capturar pelas convenções culturais. Para Tosquelles as atividades artísticas serviam como instrumento de integração social dos sujeitos na loucura. Os pacientes se sentem partilhando experiências que não estão dominadas pela intenção pragmática da comunicação. Daí a interação tão rica em Saint Alban dos internos com os artistas surrealistas, mais especificamente Paul Eluard e Tristan Tzara, que foram acolhidos no hospital. Merece destaque na exposição o poema do Tzara, Parler Seul, realizado nos meses que lá passou, ilustrado posteriormente por Miró, com 72 litografias.
No imediato pós-guerra, Dubuffet vai a Saint Alban mapear o que se produzira ali, já imbuído de sua tarefa de colecionar um amplo material de Arte Bruta. Como sugere Kayra Cabanas em seu texto no catálogo, Dubuffet, ao menos de início, foi mal-recebido por Tosquelles, que não se interessava de todo pela oposição arte bruta e arte cultural. Seu foco era o de analisar o modo como o trabalho das instituições psiquiátricas – de cuidado, troca e ativação produtiva – poderia fomentar as criações dos internos. Isso, evidentemente, não tira o mérito de Dubuffet, mas são experiências distintas. Para Tosquelles, ser ou não arte, ser ou não criação autêntica, não eram questões. Na verdade, o fato de a arte poder ser outras coisas, poder fomentar um espaço solidário de experiências inventivas e afetivas era o mais importante diante do compromisso de enfrentar a dor da alienação psíquica.
Neste aspecto, a passagem por Saint Alban naqueles anos 1940 e 1950 de figuras como Georges Canguilhem e Franz Fanon, mostra que o debate transdisciplinar era o cerne do projeto. Jamais as especificidades de cada campo do conhecimento. O importante, como faria Canguilhem, era usar esta convivência no hospital, as trocas intelectuais, as observações empíricas e o contexto em que tudo isso se passava, para redefinir os parâmetros do que seria o Normal e o Patológico, atravessando a história da loucura com a loucura da história. No caso de Fanon, que fez ali estágio durante a formação em psiquiatria nos anos de 1952 e 1953, o convívio em Saint Alban contribuiu enormemente para deslocar teoricamente sua reflexão sobre a questão colonial e os termos para se pensar a luta decolonial. No texto de Jean Kalfa para o catálogo, Descolonizar a Loucura, há uma análise detida desta convivência, com suas intersecções e diferenças posteriores, ficando sublinhado o fato de que a “experiência socio-terapêutica de Saint-Alban permitiu a Fanon pensar na opressão colonial enquanto um patógeno e a luta nacional como desalienação”. Todas estas interações intelectuais, assim como a passagem posterior de Félix Guattari pelo hospital, mereceriam uma análise mais detida, que infelizmente não cabe neste espaço.
O importante é destacarmos o quanto as trocas de conhecimento, realizadas no interior de um hospital psiquiátrico, foram capazes de abrir horizontes teóricos e práticos tão frutíferos. Ao mesmo tempo, explicitar o quanto o espaço museológico pode ainda hoje abrigar discussões que não se restringem ao campo da arte, mas contando com o dispositivo experimental por ela aberto. O fato da arte desde o começo do século XX ter constantemente se colocado em questão, recusando os modos pelos quais ela tradicionalmente se fez arte, culminando na frase síntese de Duchamp, “como fazer uma obra que não seja uma obra de arte”, contribuiu e segue contribuindo muito para esta inserção de formas heterodoxas de conhecimento no interior dos espaços expositivos.
Não se trata de transformar tudo em arte, mas de usar a indeterminação ontológica da arte como plataforma de deslocamentos conceituais. Em longa entrevista presente na exposição, Tosquelles afirma que o psiquiatra “tem que fazer de conta que é estrangeiro”, ou seja, que não está em casa em lugar nenhum, nem na língua, nem na sociedade, nem na cultura. O expressionismo e o surrealismo apelavam para esta estrangeiridade, daí que aproximar suas obras de manifestações artísticas produzidas no interior do hospital, faz todo sentido. Estas relações são produzidas com muito cuidado pelos curadores, estabelecendo diálogos entre as obras de Karel Appel, Dubuffet, Leon Schwarz-Abris e Peter Weiss, assim como entre os desenhos de Michaud, as fotografias de Brassai, as linhas delirantes e pungentes da coleção de Arte Bruta de Dubuffet (uma parede monumental de reproduções) e as experiências gráficas de Fernand Deligny. As esculturas de Forestier, interno de Saint-Alban, fazem convergir todos estes elementos expressivos e delirantes. Trata-se de um artista notável.

Vista da exposição Francesc Tosquelles. Como una máquina de coser en un campo de trigo, 2022, Reina Sofia, Madri, Espanha
A exposição é um grande passeio-labirinto entre documentos, cartazes, fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes etc. Uma reunião volumosa de material psiquiátrico, artístico e político, em que estes campos se misturam e se alimentam. As mesas-redondas e o programa educativo são fundamentais para não deixar a exposição isolar-se no mundo da arte. Ao fim, percebemos que a psicoterapia institucional proposta por Tosquelles foi – e segue sendo – um grande exercício experimental que procura conspirar de dentro, transtornando as convenções estabelecidas, redefinindo a relação entre o patológico e o normal, a arte e a vida, a política e os afetos, a cumplicidade e os conflitos. Ou seja, uma constante metabolização das adversidades em processos de invenção coletiva.