“Foi um prazer ler o livro Arte, Originalidade e Direitos Autorais, resultado de sua tese de doutorado em Direito. De saída, chama a atenção ter uma banca de Direito composta tanto por teóricos da arte e sociólogos como por pessoas notáveis da área jurídica, como um juiz do STF. Essa combinação faz justiça não só à sua formação como artista e advogado, como ao conteúdo do livro, de fato uma leitura interdisciplinar dos problemas relacionados à autoria na arte moderna e contemporânea e seus desdobramentos jurídicos. Há uma análise bastante abrangente, mas o foco da sua discussão começa com a invenção da fotografia e em seguida com os ready-mades duchampianos e seus efeitos no estatuto tanto do artista como das obras. É a partir daí que gostaria de conduzir esta conversa” – Luiz Camillo Osorio.
LCO – Toda a discussão sobre os direitos autorais no começo da fotografia é interessante e mostra o quanto essa técnica estava indefinida entre um meio artístico, um meio científico e um meio documental. Em que medida uma melhor precisão sobre o que nela seria original garantiria mais clareza sobre os direitos de autor? Ao mesmo tempo, o quanto essa clareza não acabaria por fetichizá-la a ponto de sua condição reprodutível ficar em xeque? Hoje em dia, por exemplo, a obsessão com a tiragem vintage parece-me um desdobramento dessa fetichização/auratização. Pode falar sobre isso?
MC – Primeiro gostaria de agradecer o convite para essa conversa, por ser um tema tão necessário quanto urgente para a arte. E também porque fui seu aluno em um curso de pós-graduação em história da arte, momento em que muitas questões sobre a autoria surgiram e se tornaram um convite para o enfrentamento jurídico na área dos direitos autorais na arte. As questões que vou trazer aqui de modo conciso, no livro são analisadas por meio das contribuições de três mulheres, referências no assunto – Annateresa Fabris, Susan Sontag e Rosalind Krauss –, que se debruçaram sobre os desafios trazidos pela fotografia no momento do seu surgimento, como ponto de partida para chegar às questões atuais que também desafiam a autoria, a originalidade e os direitos autorais. A fotografia, em suas primeiras manifestações no século XIX, encontrou resistências no meio artístico, devido à rivalidade com pintores de ofício que não a consideravam como arte, por receio de que sua profissão, que exigia o domínio das habilidades manuais, fosse posta em risco. Para dimensionar a linha conflituosa que separava os pintores dos fotógrafos, Rosalind Krauss tem uma passagem em que ela diz que o gênero “paisagem” somente poderia ser utilizado por pintores e que o lugar da paisagem era na parede, enquanto as obras fotográficas deveriam ser chamadas de “vistas” e o seu lugar era o arquivo. Mas a fotografia conquistou o seu lugar e fez com que muitos desses pintores, sobretudo os de retratos, tivessem de reinventar seus ofícios. Tornaram-se aquilo que combatiam (ou seja, fotógrafos) e substituíram seus ateliês por estúdios fotográficos. A concorrência acirrada entre os fotógrafos não tardou a chegar aos tribunais, que foram desafiados a proferir as primeiras decisões. Indagavam os juízes: é possível proteger, por direitos autorais, imagens produzidas por um equipamento mecânico? É possível dispensar as habilidades manuais para alguém ser considerado um artista? As primeiras decisões que protegeram os direitos autorais dos fotógrafos são dos tribunais franceses, no início da segunda metade do século XIX. A sua pergunta recai sobre uma provável segurança/clareza advinda de uma maior precisão do conceito de originalidade. O problema é que a originalidade, no dizer de William M. Landes, professor de Direito da Universidade de Chicago, é uma questão de limite. Um limite tênue, que não tem como precisar, ainda mais na tormentosa e contestadora arte contemporânea. Muitos artistas trabalham justamente nessa fronteira, tensionando os limites da autoria. Sherrie Levine, por exemplo. Sendo uma questão de limites, a resposta para sua pergunta poderia ser dada por decisões judiciais, que serviriam de balizas para dizer o que é permitido e o que não é, ou seja, o que estaria ou não dentro dos “limites”. Mas no Brasil ainda não temos jurisprudência formada sobre direitos autorais na arte. E a insuficiência de decisões gera insegurança. É esse o ambiente em que estamos. Hoje, aconselhar sobre direitos autorais é muitas vezes mensurar riscos e perguntar ao artista ou à instituição se quer correr o risco. Nos Estados Unidos, por outro lado, existem muitas decisões sobre direitos autorais na arte contemporânea, envolvendo artistas como Andy Warhol, Jeff Koons, Richard Prince e Robert Rauschenberg. Antes de abordar a segunda parte da pergunta, gostaria de citar um caso recente de obra produzida por uma outra tecnologia, a Inteligência Artificial (IA). Em 2022 surgiu a seguinte polêmica: um designer de jogos inscreveu-se no evento Colorado State Fair, nos Estados Unidos, e sua obra Theatre d’Opera Spatial foi premiada. A obra foi produzida por um gerador de textos com IA e conquistou o prêmio na categoria artes digitais/fotografia manipulada digitalmente. Quando o resultado foi anunciado, o autor da obra, Jason Allen, começou a receber críticas em uma rede social. A acusação é que ele teria induzido a comissão de premiação a erro. Segundo as críticas, uma obra produzida por IA não poderia ter sido premiada, pois a maior parte das pessoas ainda não sabe como um software de IA funciona. Talvez nem a própria comissão de premiação soubesse. Jason Allen defendeu-se dizendo que na descrição da obra constava a informação de que fora criada por meio de Midjourney. As críticas continuaram no sentido de que ele não explicou como esse software funciona. Allen então retrucou afirmando que os artistas que o criticavam estavam com medo de que a IA poderia substituí-los por robôs. Há aqui alguma relação entre essa rivalidade e aquela que aconteceu com a fotografia. É claro que os tempos são outros e as novas tecnologias tendem a se adaptar com mais tranquilidade ao meio artístico. Aliás, vários artistas hoje buscam servir-se dessas novas tecnologias com muito entusiasmo. O que caracteriza a IA é o fato de ser uma ferramenta em que há pouca interferência humana. Estamos diante de novos desafios – agora quem está à frente das decisões no processo de criação pode ser a própria tecnologia. E o que pode ser considerado original nessas situações? Além da IA, temos obras de arte em NFTs, metaverso, realidade aumentada e realidade virtual, dentre outras tecnologias. Essas são novas questões que estão trazendo impactos para a autoria e consequentemente para os direitos autorais, deixando entrever que a tal precisão será sempre um conceito em processo. Voltemos agora ao tema da reprodutibilidade da fotografia e suas tiragens. A tiragem vintage é aquela realizada próxima da data em que a fotografia foi feita. É uma impressão de época ligada a fotógrafos que tiveram uma carreira de longa duração. Citemos alguns exemplos: Cartier-Bresson, Irving Penn, Lewis Carroll, Man Ray e brasileiros como German Lorca, Geraldo de Barros e Gaspar Gasparian. Não existe uma regulamentação para dar clareza ou estabelecer requisitos para que uma tiragem seja considerada como vintage. Então surge a dúvida: a partir de quanto tempo depois de produzido o negativo a tiragem da fotografia é vintage? Meses? Anos? Não há uma precisão na resposta. Tais tiragens são muito desejadas por colecionadores (especialmente internacionais) e museus. Algumas das fotografias vintage são vendidas a cifras superlativas em casas de leilões. Em termos econômicos, o valor de uma tiragem vintage, se comparada com a mesma imagem, mas de impressão recente, é muito alto. E por que há tanto interesse pelas tiragens vintage? Porque são raras, e isso é, sim, uma fetichização/auratização, como você bem colocou na pergunta. A fotografia, que na sua essência não deveria ter “aura”, passa a ter pela condição de raridade/exclusividade. As tiragens vintage também já estiveram no centro de controvérsias jurídicas sobre autenticidade. É o caso do fotógrafo estadunidense Lewis Hine (1874-1940), conhecido pela sua contribuição na conquista de direitos ao denunciar, por meio de suas fotografias, as precárias condições do trabalho infantil. Sua atuação foi decisiva para que crianças tivessem proteção jurídica nos Estados Unidos. No final da década de 1990, foram comercializadas fotografias de Lewis Hine como se fossem de tiragens vintage. Todavia, após serem vendidas, descobriu-se, por meios científicos e perícias, que tais fotografias haviam sido impressas após a morte do fotógrafo – portanto, não eram vintage. Esse caso abalou o mercado de arte e alertou para as precauções necessárias para assegurar a autenticidade das fotografias assim rotuladas. Trouxe esse caso para mostrar a complexidade da autoria, da obra e da originalidade nas reproduções.
LCO – O conceito de “sobre-apropriação do real” usado por Bernard Edelman é muito trabalhado por você, não só para a discussão da fotografia, que foi a origem deste conceito, como para outros debates posteriores sobre autoria e apropriação na arte contemporânea. Poderia esclarecer este conceito e em que medida ele ajuda na constituição das linhas sempre tênue entre originalidade, apropriação e plágio que tanto atormentam o debate sobre direitos autorais?
MC – Bernard Edelman tratou da “sobre-apropriação do real” no livro O direito captado pela fotografia, publicado no início da década de 1970. O livro analisa a fotografia, o cinema e seus desdobramentos jurídicos. Quando um fotógrafo, por exemplo, fotografa uma paisagem, ele está se apropriando de algo que já havia sido apropriado antes. Aquela paisagem (a terra e o que estiver sobre ela) pertence a alguém, portanto foi apropriada. O fotógrafo então faz uma “sobre-apropriação do real”. Nesse caso, de quem seriam os direitos sobre a imagem da fotografia? Se o real está disponível a todos, como reivindicar direitos autorais? Na quarta capa do livro, Edelman lança algumas provocações que o Direito deve responder: a quem pertence a imagem do seu rosto quando é fotografado? E a imagem do seu corpo, da sua casa, da sua vida? Em um retrato fotográfico, há o direito de imagem da pessoa retratada e também existem os direitos autorais do fotógrafo. São conceitos distintos. A “sobre-apropriação do real” tem hoje outros contornos na arte. Quais os limites para alguém se apropriar do real? Alguém pode ser proprietário de um matiz de cor? Yves Klein patenteou um tom de azul ultramar que ele utilizava em suas pinturas, o International Klein Blue. Mais recentemente, Anish Kapoor adquiriu os direitos de uma tonalidade do preto, o Vantablack, um composto de carbono puro conhecido como a substância mais escura produzida pelo homem. Seu efeito visual é semelhante ao de um buraco negro. A atitude de Anish Kapoor gerou controvérsias no meio artístico, afinal, um artista pode ter a exclusividade de uso de uma tonalidade de cor? Para responder a sua pergunta e dizer que a linha tênue entre originalidade, apropriação e plágio é um campo onde há mais interrogações que certezas, vamos usar como exemplo uma obra de Damien Hirst. “A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo” é uma obra emblemática da arte contemporânea. Trata-se de um tubarão imerso em uma caixa de vidro, preservado em formaldeído. Pensemos na seguinte situação: se uma instituição, por exemplo um oceanário, uma universidade ou um museu de ciências ou de história natural, também decidir colocar um tubarão dentro de um aquário de formol, mas com a finalidade de que o animal seja visto por estudantes ou pelo público em geral, estaria desrespeitando os direitos autorais de Damien Hirst? Seria um plágio? De uma situação hipotética, passemos para outra, real. Jeff Koons é um artista lembrado por suas esculturas Balloon Dog, que representam cães feitos com balões. Há alguns anos, uma empresa canadense produziu porta-livros com a mesma forma de cães feitos de balões, e Koons notificou a referida empresa alegando direitos autorais sobre a forma canina. Após repercussões negativas, o artista recuou de suas pretensões. Em síntese, na área dos direitos autorais muitas vezes existe o interesse de alguns em se tornar titular de direitos exclusivos daquilo que, ironicamente, eles mesmos apropriaram do real.

Damien Hirst, The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo), vidro, aço pintado, silicone, monofilamento, tubarão e solução de formaldeído, 217 x 542 x 180 cm, 1991. Coleção particular.
LCO – Quando Marcel Duchamp desloca um mictório para uma instituição artística, no caso o Salão dos Artistas Independentes de NY, em 1917, ele explode com a noção convencional de obra de arte e de originalidade. Não deixa de ser relevante o fato de o artista usar um pseudônimo para não estabelecer um vínculo de determinação entre “ser feito por um artista já conhecido (e, neste caso, membro da comissão organizadora do Salão)” e “ser arte”. Se, por um lado, escolher e deslocar não é fazer, creio que não podemos ignorar que ao inserir um objeto cotidiano no espaço da arte ele nos faz ver coisas que não podem ser vistas no objeto utilitário. Por exemplo, vê-se a ironia na Fonte de Duchamp e não faz o menor sentido falar de ironia quando se vê um mictório no banheiro. O que fica evidente a partir daí é que “vemos” as coisas diferentemente de acordo com os contextos em que elas se apresentam. Produzir deslocamentos nos modos de ver e falar sobre o que se vê é parte de um processo de produção original que escapa ao modo como os direitos autorais, ainda muito pautados na originalidade da coisa feita, tratam do assunto. Como você avalia o desenvolvimento da lei de direitos autorais diante de tanta mudança no estatuto da criação artística?
MC – Quando se trata de objetos, a discussão sobre direitos autorais costuma ser menos tumultuada do que quando o artista se apropria da imagem da obra de outro artista, ou, então, da imagem de uma pessoa. Mas a apropriação de um objeto, como vimos na pergunta anterior, pode também trazer repercussões jurídicas. A apropriação/deslocamento de objetos alterou o modo como pensamos a arte e a obra. Aqui lembramos, além de Duchamp, de Nelson Leirner na arte brasileira. Essas questões e seus reflexos nos direitos autorais são trabalhados no livro por meio das ideias do crítico de arte e curador francês Nicolas Bourriaud. Quando um artista desloca um objeto que tem uma função, uma utilidade, para a arte, ele retira essa função, e ao fazer isso ressignifica o objeto, tornando-o uma obra de arte. A ênfase não está nas habilidades manuais, mas na intenção do artista de alterar o destino daquele objeto. Isso nos impele a levantar algumas questões sobre a originalidade. Será que ainda há algo
absolutamente novo? Em meio a um mundo de excessos, talvez o que importe é reinterpretar e dar um novo sentido àquilo que já existe. Mas a questão da apropriação/deslocamento de objetos pode também ser observada sob outras perspectivas, fora da arte. Hoje, um determinado objeto ou cor pode sinalizar uma inclinação política, por meio da apropriação. Trago um exemplo: a bandeira do Brasil, infelizmente, pode simbolizar uma determinada opção político-partidária. Esse desvirtuamento, aliás, precisa ser corrigido, pois a bandeira é de todos. Algumas cores também foram apropriadas e deslocadas, não pela arte, mas como estratégia política. Entrei nessa questão para alertar o quando a apropriação/deslocamento pode acarretar complexidades de outras naturezas.
LCO – Há um conceito da legislação estadunidense, a saber, o de fair use, em que a consideração do uso justo da reprodução não implicaria violação dos direitos autorais. Ou seja, se a imagem de uma obra é usada em um livro de caráter educacional, não caberia sobrepor o direito de autor e impedir a circulação. No entanto, como você mostra no livro, esse é um debate contencioso. Isso dificulta muito a circulação das reproduções. Você indica, por outro lado, quanto o direito de propriedade evoluiu ao longo do século XX, incorporando direitos sociais que tensionam o direito absoluto do indivíduo sobre a propriedade. Coisa que não aconteceu com os direitos autorais. Por que tanta resistência? Em que medida a discussão sobre propriedade intelectual pode reverberar na dos direitos autorais? O debate sobre quebra de patentes das vacinas em um período pandêmico, por exemplo, mantém-se urgente.
MC – As questões sobre propriedade intelectual na saúde sensibilizam muito mais do que os direitos autorais na arte. A saúde é importantíssima, reconhecemos, até porque não existe arte sem a vida. Mas a arte e a cultura também são importantes. Gosto de uma frase do Cildo Meireles em que ele diz: “A arte é uma inutilidade indispensável”. O fato é que os direitos autorais ainda ocupam pouco espaço nas universidades. Raramente a disciplina de direitos autorais está na grade curricular dos cursos tanto de Direito como de Artes Visuais. Quando o tema é abordado, ele ocupa um pequeno espaço dentro de outras disciplinas. Isso quer dizer que até nós, os interessados no tema, não conseguimos dar a devida importância aos direitos autorais. No Congresso Nacional, as discussões sobre direito à saúde e patentes e função social da propriedade dão-se em maior número se comparadas com as dos direitos autorais. As decisões dos tribunais também se concentram muito mais nas patentes do que nos direitos autorais. Poderíamos mencionar muitos outros fatores para justificar por que, nos direitos autorais, ainda não avançamos como gostaríamos. Mas sou otimista. Nos últimos anos, a aproximação entre arte e direito tem ganhado força. Temas como liberdade de expressão artística, censura, autenticidade e falsificação de obras de arte, revisionismo histórico, derrubada de monumentos públicos, direitos autorais e mercado de arte são alguns dos assuntos que estão na pauta dos artistas e dos juristas. Vejo um intercâmbio de ideias muito profícuo entre essas áreas. No caso das reproduções de imagens de obras de arte que deveriam estar em livros, catálogos e outras publicações, é preciso reconhecer que há muita resistência, principalmente por parte dos herdeiros de artistas, o que precisa ser superado. Por outro lado, é necessário citar bons exemplos. Menciono a colaboração dos herdeiros de Judith Lauand, recentemente falecida e que tem uma exposição aberta no MASP. Há um projeto de lei recente do senador Chico Rodrigues (PL nº 4.007/2020) que pretende alterar a Lei de Direitos Autorais para dispensar os museus do pagamento de direitos autorais para o uso de imagens de obras de seus acervos. O senador justifica o projeto para que os museus tenham maior segurança jurídica e possam difundir a arte, permitindo o uso das imagens em todas as mídias. O projeto ainda não tem data prevista para ser votado. Existe ainda o domínio público. Depois de um período, que no Brasil é de 70 anos contados da morte do autor, a imagem de uma obra de arte pode ser utilizada livremente, desde que citada a autoria. No entanto, considerando que esse prazo é longo, toda a arte contemporânea está protegida por direitos autorais, o que significa que fica refém da autorização. Mas até o domínio público, em alguns casos, é subvertido e sua lógica, desvirtuada. As obras de Botticelli (1445-1510) deveriam estar em domínio público. Mas na Itália existe um Código de Patrimônio Cultural que prevê que o uso de imagens de obras públicas italianas necessita de autorização e pagamento de direitos autorais. É por esse motivo que, em 2022, a Galeria Uffizi propôs uma ação judicial contra um estilista francês que fez uso de imagens de “O Nascimento de
Vênus” e “A Primavera” sem pedir autorização e efetuar o pagamento dos valores devidos para o uso das imagens. De modo geral, o uso de imagens de obras de arte é cada vez mais controlado, o que dificulta publicações como livros e catálogos. E essa necessidade de autorização traz outros desdobramentos. Os titulares de direitos, em muitos casos, solicitam o contexto em que se pretende utilizar a imagem. Isso compromete publicações de cunho crítico e fere a liberdade de expressão, tema tão caro à arte e à pesquisa. Além disso, há um descompasso entre o tempo de tramitação de um pedido de autorização e os prazos das editoras e instituições para que a publicação seja finalizada.
LCO – Você trata dos casos de artistas que trabalham com apropriação de imagens – Sherrie Levine, Jeff Koons, Richard Prince, entre outros. O caso deste último me parece interessante, especialmente a série dele apropriando-se de imagens do Instagram que ele capturou, ampliou, expôs e vendeu. Algumas das pessoas que haviam postado as imagens entraram na justiça. Todavia, achei mais interessante a resposta-performance do coletivo Suicide Girls, que também teve uma imagem apropriada. Em vez de entrarem na justiça, repetiram o procedimento do artista, ampliaram sua imagem apropriada e venderam a um preço infinitamente menor que o do artista. Lembro também o caso da ampliação dele de uma imagem postada por Ivanka Trump, neste caso uma encomenda, em que, no meio da presidência do pai, ele resolveu “desautorizar” a obra, dizendo ser um trabalho falso, fake. Como esses casos estão mexendo com os direitos autorais, cuja legislação, totalmente anacrônica, remete à Convenção de Berna de 1886?
MC – Esses dois casos, das Suicide Girls e da Ivanka Trump, são interessantíssimos, pois a resposta não veio do judiciário, e sim da própria arte. Isso mostra que a judicialização não é o único caminho possível. Em geral, casos de direitos autorais na arte ganham repercussão em dois cenários: na imprensa e no judiciário. E o que os dois casos que você trouxe na pergunta têm em comum? Eles fazem uso de uma espécie de boicote. Faz-se a crítica, alerta-se sobre uma situação conflituosa sobre direitos autorais, mas sem necessitar de um processo judicial. Essa estratégia demonstra perspicácia em fazer o recado chegar ao destinatário. A crítica também pode ser pensada para outras situações. Cito um caso que aconteceu aqui em Curitiba. Alguns anos atrás, a professora de história da arte Maria José Justino (que, aliás, é quem redigiu o prefácio do livro que publicamos sobre direitos autorais) realizou a curadoria de uma exposição no Museu Oscar Niemeyer. Para a exposição, ela solicitou o empréstimo de uma obra que pertence ao acervo de outro museu paranaense, todavia, teve a recusa como resposta. Diante disso, a curadora colocou uma reprodução da pintura na exposição com a observação de que a obra não estava presente na exposição, mas poderia ser vista no outro museu. Se a curadora não fizesse isso, o público não perceberia a ausência daquela obra e deixaria de compreender a sua relevância para a exposição. Em publicações de artigos e livros, por exemplo, quando houver a recusa imotivada para o uso da imagem, o autor pode fazer constar essa informação, mesmo que em uma nota de rodapé. Isso faz com que o leitor perceba a importância das reproduções de imagens e a dificuldade que existe em lograr êxito nos pedidos de autorização. Quanto à parte da sua pergunta sobre a legislação de direitos autorais, no Brasil ela está bastante distante da realidade e das necessidades da arte contemporânea. É por isso que o tema requer reflexões, para que mudanças na legislação sejam propostas ou que outras interpretações dos textos legais sejam possíveis.
LCO – Indo um pouco além na questão do uso justo de uma reprodução, penso se seria viável adaptar essa legislação para casos de “cópias de exposição” de obras que apostam na manipulação e participação do público. Penso, por exemplo, nos bichos de Lygia Clark ou nos parangolés de Oiticica. Não seria razoável que a aquisição dessas obras devesse implicar sempre a possibilidade de cópias expositivas controladas e catalogadas para que essas obras não tivessem sua natureza manipulável impedida? Creio que algo deve ser feito, pois me parece que impedir a manipulação de um bicho, transformá-lo em mera escultura, é uma maneira de destruí-lo preservando-o. O que você acha disso?
MC – Muito bem lembrado o exemplo das obras feitas para o toque, como os bichos da Lygia Clark e os parangolés do Hélio Oiticica, ambos falecidos. Se a intenção dos artistas era o manuseio da obra pelo público, não há dúvida de que essa vontade deve ser respeitada. Concordo inteiramente com você que, no caso do bicho, quando se impede o toque também se está destruindo a obra ao preservá- la. Tanto em Clark como em Oiticica, as obras não têm a “aura” a que Walter Benjamin se refere. Não são únicas, portanto, deveria ser possível a confecção “cópias de exposição” para manuseio pelo público. Se perguntarmos quantas pessoas já tiveram a oportunidade de tocar nas obras desses dois artistas, veremos que é um público muito reduzido. Deveria, sim, ser permitida a reprodução de cópias para museus, destinadas não apenas para as exposições, mas também para as equipes dos núcleos de ação educativa dos museus. Isso possibilitaria o toque da obra para além das salas expositivas. Ao atender a vontade do artista, a interação também torna as obras acessíveis para um outro público, o das pessoas com deficiência visual. No entanto, tais questões são sensíveis, pois, no caso da Lygia Clark, embora algumas obras sejam para o toque, o trato com os seus herdeiros costuma ser difícil, e a produção de réplicas necessita de autorização. Fazendo uma projeção para o futuro, quando obras que, mais que permitem, se completam no toque ingressem em acervos, a instituição deve, por meio de contratos, prever a possibilidade de confecção das réplicas. Por fim, em obras que convidam ao manuseio, a situação é bem diferente quando o artista está vivo e pode participar das decisões junto com a instituição, a exemplo das obras de Ernesto Neto e Ascânio
MMM.

Lygia Clark, Bicho, Década de 1960, Alumínio, 55 x 82 x 90 cm AQUISIÇÃO:Comodato MASP B3 – BRASIL, BOLSA, BALCÃO, em homenagem aos ex-conselheiros da BM&F e BOVESPA CRÉDITOS DA FOTOGRAFIA:MASP
LCO – Aproveito essa questão acima para introduzir um conceito importante de seu livro, que é o de “mínimo existencial cultural”, em que você pretende pensar os direitos autorais além de sua acepção individual, complementando-a com a dimensão coletiva de bem cultural. Como viabilizar esse debate sem desconsiderar os direitos individuais? Qual o papel do desenvolvimento tecnológico nesse debate, ampliando o alcance dos “museus imaginários”?
MC – O conceito do mínimo existencial é trazido pelo Ministro Edson Fachin quando ele se refere ao estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Tive contato com essa teoria quando fui aluno dele na UFPR. Em síntese, o direito deve resguardar um mínimo de patrimônio para que uma pessoa possa ter uma vida digna. No livro sobre direitos autorais, essa teoria é ampliada para a arte e a cultura. É preciso ter um mínimo de acesso à cultura para que uma pessoa tenha uma vida digna. É direito de todos o acesso a obras de arte, mesmo no caso da recusa imotivada de herdeiros dos artistas. Por exemplo, as obras de Lygia Clark, artista mencionada na pergunta anterior, deveriam estar em exposições e suas imagens em livros, catálogos e demais publicações. O direito individual dos herdeiros, por exemplo, não deve prevalecer sobre o interesse público de acesso aos bens culturais. Com isso não se estaria retirando direitos dos herdeiros, mas equilibrando esses direitos com os direitos coletivos. As questões jurídicas que envolvem herdeiros às vezes podem ser conflituosas. E a situação é sensível, pois não existem substitutos na arte. Lygia Clark é única, entre outros exemplos que podemos mencionar. Como publicar um livro, um catálogo ou realizar uma exposição sobre o neoconcretismo no Brasil sem a presença das obras dela? É diferente, por exemplo, das patentes, em que pode ser feito um produto similar, como no caso de medicamentos. Um dos casos mais recentes noticiados sobre litígio entre herdeiros de artistas é o da Tarsila do Amaral. A disputa que está no Poder Judiciário envolve muitos herdeiros (sobrinhos e sobrinhos netos) e valores altíssimos na gestão de direitos autorais. As controvérsias que envolvem herdeiros não acontecem apenas nas artes visuais. O Estadão, alguns meses atrás, trouxe o caso de uma escritora falecida e também uma das mais lidas da literatura brasileira. O título da matéria é: “Carolina Maria de Jesus e a briga dos herdeiros pelos bens e direitos autorais”. Os efeitos dos litígios, em alguns casos, ficam restritos aos herdeiros, já em outros prejudicam o público ao restringir ou impossibilitar o contato com as obras por eles deixadas.
As instituições de arte e editoras precisam ser habilidosas para tratar dessas questões que envolvem brigas entre herdeiros, que em muitos casos são praticamente insolúveis. Mas é preciso também aprender com tudo isso. Artistas devem planejar, em vida, o que deverá ser feito com o seu legado, tanto das obras como dos documentos da trajetória artística. É necessário documentar as intenções e até mesmo pensar em testamentos. Um planejamento sucessório pode prevenir litígios futuros. Em prol do acesso à cultura, em 2009 foi redigido o Manifesto em Defesa da Exibição Pública de Obras de Arte Brasileiras, que conta inclusive com a sua assinatura de apoio. Esse documento, mesmo com o passar o tempo, é atual e sua importância deve ser lembrada. Quanto aos museus imaginários, o período pandêmico antecipou a virtualização como alternativa para as visitas do público. Isso democratiza o acesso à cultura, mas traz questionamentos sobre direitos autorais. Muitos museus já disponibilizavam visitas virtuais em 360 graus antes do início da pandemia e aprimoraram esse recurso com a necessidade de isolamento social, como é o caso do Louvre. Temos também o Google Arts & Culture, todavia, a pergunta que se faz é sobre o futuro desse acervo concentrado nas mãos de grandes e poucas empresas e como essas informações serão utilizadas. O patrimônio digital cultural é algo que necessita de muita atenção. Os museus brasileiros têm um grande desafio pela frente quando se trata de digitalizar e disponibilizar imagens de obras de seu acervo no ambiente virtual. Isso porque as preocupações com contratos, autorizações e demais trâmites formais sobre direitos autorais são relativamente recentes na gestão dessas instituições. O que fazer com obras que ingressaram no acervo décadas atrás quando esses cuidados ainda não eram uma prática de gestão? Muitas das obras não possuem documentos firmados com artistas ou doadores. Alguns deles já faleceram e o contato com os herdeiros pode se transformar em um trabalho quase investigativo.