No primeiro texto de 2023 para sua coluna, Luiz Camillo Osorio presta uma homenagem ao Rei do Futebol, Pelé, que faleceu no fim do ano passado, em 29 de dezembro. O título “FUTEBOL E ARTE II: Obrigado, Pelé” faz referência ao texto publicado na ocasião da morte de Maradona, chamado “Futebol e Arte”, e começa com uma consideração. O curador do Instituto PIPA compartilha a importância afetiva de Pelé em sua infância; comenta a beleza até dos não-gols do craque e destaca duas imagens entre as tantas protagonizadas pelo ídolo – uma, inclusive, que Camillo tem autografada pelo jogador.
FUTEBOL E ARTE II: OBRIGADO, PELÉ
“Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.”
– Nelson Rodrigues (escrito antes da Copa do Mundo de 1958)
Quando Maradona morreu, escrevi um texto intitulado “Futebol e Arte”. Fruto do meu encanto pelo jogador mais sublime que acompanhei desde o primeiro ato nos gramados (e fora deles). Nele cometi, todavia, um erro bobo a ser corrigido hoje. Dizia que Maradona, independentemente de não ser melhor jogador, era mais apaixonante que Pelé. O que eu deveria ter dito é que Diego Armando era mais apaixonante que Edson Nascimento. Entre Dom Diego e Maradona não havia distância; pessoa e jogador eram uma só coisa, explosiva e trágica. Pelé, entretanto, está acima, além do Edson, é outra coisa diferente da pessoa. O que ele fez em campo é incomparável. O seu futebol é uma combinação dialética de plasticidade e eficiência.
A morte de Pelé, mesmo previsível por conta de sua doença, acabou pegando de jeito os amantes do esporte bretão. O futebol constitui uma parte significativa de minhas memórias e do meu dia a dia. A Copa de 70 é o acontecimento mais vivo de minha infância. Tinha praticamente 7 anos. Lembro do jogo de estreia em que o gol de empate do Rivelino ainda no primeiro tempo, depois do susto inicial, tranquilizou o jantar rápido no intervalo. O 4 a 1 no final, com gols memoráveis de Jairzinho e Pelé, evidenciavam o que viria pela frente. O domingo assombroso em que vencemos a Inglaterra. O nervosismo, ou melhor, o pessimismo do meu pai, contra o traumático Uruguai na semifinal, ainda me angustia. A finalíssima. Tudo isso com sensações vivas no corpo, desde a preparação para os jogos, até a sobrevivência em mim de cada gol daquela copa. Durante anos, segui reproduzindo os principais gols no meu quarto, com o armário aberto funcionando de baliza e uma bola de plástico que estufava as roupas penduradas nos cabides. Muito disso se deve ao Pelé.
Vi-o jogar duas vezes ao vivo no Maracanã, jogos comemorativos: a despedida do Garrincha, em que ele fez um golaço; e um jogo beneficente entre Flamengo e Atlético Mineiro, em um dia de semana com chuvarada no fim da tarde, que levou um tricolor fanático, direto da praia, para o meio da torcida rubro-negra. Quem acabou com o jogo neste dia foi o ponta Júlio Cesar (Uri Geller). A presença do Pelé em campo tinha sempre uma aura própria, ele já era um Deus, o Rei do Futebol, o maior de todos.
Algo que sempre me chamou a atenção nele foi que os seus não-gols são tão memoráveis como os milhares de tentos convertidos: de cabeça, de canhota, de direita, de falta, de bico, de efeito, de dentro da área, do meio da rua, driblando dois na corrida, driblando quase o time todo. Orgulho tricolor ter sido coadjuvante do gol que viria a batizar o gol de placa. Não obstante esta obsessão com o gol, Pelé deixou também não-gols que são verdadeiras obras-primas. Três delas conhecidas por todos os amantes do futebol, todas na Copa de 70: o chute do meio de campo contra a Tchecoslováquia, a cabeçada defendida por Banks contra a Inglaterra e o drible mágico em Mazurkiewicz, já no finalzinho, contra o Uruguai. Nenhum deles virou gol, todos eles, todavia, entraram para os anais do esporte. Tenho por eles uma paixão tão grande como a que tenho, por exemplo, pelo gol contra o País de Gales em sua estréia em Copas na Suécia.
O Cassio Loredano, mestre dos melhores desenhos dos nossos heróis futebolísticos, fez dois comentários que para mim definem o estilo único do Rei. O primeiro deles, que resolveu fazer o gol mil de pênalti para ninguém estar comprando picolé na hora do gol. Foi o único gol em que até o distraído parou para ver. O segundo, foi comparando o não-gol do Pelé contra a Tchecoslováquia do meio de campo e o bem parecido do Maradona contra o Uruguai, na Copa América de 1989, que caprichosamente bateu no travessão. O brasileiro, vendo que passou raspando à trave, nem suspirou, foi logo procurar alguém para marcar, pois o goleiro podia dar a saída. O argentino ficou se lamentando e batendo com a mão no chão. Para Pelé a excepcionalidade era do jogo.
Esta excepcionalidade vem à luz em duas fotos magníficas: a primeira delas, um foco nos pés do Rei, feita por Annie Leibovitz. Nada poderia ser mais impactante que esta foto – as marcas das muitas pancadas e a solidez telúrica que garantia ao mesmo tempo agilidade, velocidade, impulsão, precisão, força. Se as mãos do Deus de Michelangelo mal tocam as de Adão, estes Pés estão fincados no chão, são deformados e deslumbrantes. Um pouco antes da Copa de 2002, a Casa França-Brasil fez uma exposição sobre Pelé. Eu, meu filho Manuel e Cassio Loredano fomos no dia da abertura, pois o Rei iria aparecer. Levamos a página inteira da Revista do jornal espanhol El Pais, que havia há alguns anos publicado a foto da Leibovicz. Cassio estava convencido que o Rei deveria assiná-la. Quando Pelé chegou e foi recebido pela governadora Benedita da Silva, uma pequena multidão cercou a dupla. Era impossível chegar perto. De repente, percebemos a mulher do Rei, Dona Assíria, meio escanteada, sozinha. Levamos a foto e pedimos que ela assinasse. Meio assustada com o pedido, não titubeou e mandou a caneta. Quando ia devolver, pedimos-lhe que desse ao marido para ele autografar. Aí foi fácil, ela atravessou a barreira e deu a página da revista. Pelé olhou surpreendido e não fez por menos: assinou os dois pés. No dia seguinte, emolduramos e esta imagem acompanha meu filho, pendurada na parede como uma revelação do que no futebol (e na vida) é trabalho e poesia.
A outra imagem foi postada agora pela federação inglesa de futebol. É conhecida, mas eu tinha esquecido dela. Acabado o jogo de 7 de junho de 1970 entre Brasil e Inglaterra, ainda no campo do estádio Jalisco de Guadalajara, Pelé e Bobby Moore, ambos sem camisa – que haviam trocado – se olham, se tocam, se falam, tomados pelo encantamento de um dos maiores jogos da história. Para Pelé, Moore foi seu maior e melhor marcador. Depois de 90 minutos de um jogo disputado e exaustivo, eles seguem atravessados pelo entusiasmo que só os acontecimentos decisivos deixam emanar. Tudo na imagem é da ordem da mais profunda admiração constituída no embate e na adversidade.
A mão direita de Pelé nos ombros de Moore parece expressar surpresa com o que ele, Pelé, foi obrigado a fazer em campo para derrotar os então campeões do mundo. A jogada do gol é exemplar. A matada do Rei, depois da jogada sensacional de Tostão pela esquerda, a amortecida no chão seguida de um toque suave para o lado direito, na medida, para um demiúrgico Jairzinho enfiar um balaço, à meia altura, no canto da baliza de Gordon Banks. A alegria destes dois monstros sagrados, flagrada pela fotografia, é a expressão viva e natural do encontro de dois gênios que se enfrentaram e sabem que deram o melhor de si, independentemente de quem ganha ou perde. Há aí nestes olhares e na energia que sai deles, a prova cabal de que há duas formas de competir. Uma saudável, eu diria grega, em que se compete com o adversário, reconhecendo sempre nele o antagonista necessário e valoroso. Outra, um tanto doentia, tão prevalecente no espírito do capitalismo atual, em que se compete contra o outro, visto como um inimigo a ser eliminado e desprezado.
Olhar esta imagem nos deixa ainda vislumbrar a emoção excepcional que somos investidos quando testemunhamos algo que consegue ser simples e sobrenatural – sendo apenas uma partida de futebol. Um apenas que muitas vezes é tudo. Obrigado, Pelé, por nos proporcionar tanto e para tanta gente.