Leia a conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Uýra, realizada após a escolha da artista como um dos quatro artistas Premiados do PIPA 2022.
LCO – Uýra, como foi sua formação de artista e fotógrafa? Ela se dá junto a sua formação como bióloga, ambientalista e arte-educadora? Como foi esse processo?
Uýra – Nada que é vivo neste mundo habita isolado – e isso independe do tempo e do espaço.
Mesmo sob radical solidão dentro de um quarto, o vento sopra e nos traz memórias.
Os órgãos de uma célula são para ela o que os seres vivos e fenômenos naturais são para o planeta: indissociáveis, codependentes e se afetam. Gosto de pensar as fases de nossas vidas humanas desta maneira, interligadas por passos/épocas que nos constroem; onde cada caminho, seja decidido ou acidental, no contínuo entre bom e ruim, influencia no que fazemos e na forma que pensamos o mundo.
Decidi não mais fatiar a minha vida: dizendo que ano comecei a ser artista, qual ano me tornei bióloga e educadora. Se em 2013 conquistei meu diploma de bióloga, a vida eu já estudava desde os 4 anos vendo uma Preguiça atravessar nadando entre árvores (aquilo foi surpreendente). Em 2016 sou titulada Mestre em Ecologia da Amazônia – a minha casa, onde mergulhada, cresci sentindo os pulsos de inundação. Se estas formações ocorrem, é porque elas vêm de algum lugar, e isso é a Vida. O conhecimento acadêmico tem tanto valor quanto o tradicional/vivencial, mas o primeiro ignora o segundo, embora nele tenha sua base. Formam um belo par, mas estes tempos têm botado ambos para brigar. Com minha arte e trajetória, insisto que façam as pazes.
Como indígena sou também cientista e via Arte conto histórias naturais. Já contei muitas delas em artigos científicos, para estrangeiros – muito número e razão. Aprendi que não me bastavam. Hoje reúno estes códigos e conto também histórias para os meus, via a emoção do imaginar possibilitada pela Arte, usando tintas e folhas como flechas. A mira? Os imaginários dos mundos, e do meu – em muito adoecidos. O mundo da razão é limitado e autoritário, mas vive equivocado. Seu primo, o mundo das certezas, esqueceu que as dúvidas lhe fazem bem. Já o mundo da emoção está calado, no vazio do pouco valor. Como contar a vida sem emoção? Como pedir “ei, dê valor às florestas”, sem fazer sentir este valor? E quem me ensinou isso foi a Educação, navegando para criar arte com juventudes das beiras dos rios Japurá, Amanã, Negro, Solimões, Mariepauá, Aripuanã e muitos outros. Lugares onde a Arte possível, com seu ímpar valor, é a que se constrói na brincadeira, com pés no chão, costurando o material (folhas, sementes, terra,…) e o imaterial (histórias, crenças, encantados,…) do próprio quintal de Vida.
Naquele 2016 também me reconhecia o que já era, artista – sendo retroalimentada pelas experiências em Arte Educação. Segui escrevendo sobre as coisas vivas, mas me transformando nelas também. Não era mais pesquisadora versus objeto. Era fusão. Um estudo de cores, comportamentos, cantos e histórias pintados/colados no corpo.
Uýra não é só da Mata, habita e é também a cidade. A partir de 2014 aprendo muito com movimentos de gentes, que como eu, são excluídas na ‘grande’ sociedade. Passo a efetivamente enxergar no meu bairro e na nação Brasil as violências, apagamentos, mentiras e desigualdades – todas chagas do colonialismo europeu. Junto a isso, também me fortaleço com as histórias de ressuscitamentos e resistências por todas as partes indígenas, negras, LGTBQI+, nortistas e nordestinas do Brasil. A partir daí, além de cruzar conhecimentos, buscava nas histórias dos bichos e plantas, inspirações pra gente. O mundo estava e continua antropocêntrico demais, regido por um pequeno e soberbo grupo de humanos: corporações de homens brancos, cisgêneros, heterossexuais, fingidos e caretas. Infelizmente a gente já viu no que deu o planeta. Desse contexto, passam a emergir dos meus trabalhos metáforas que reúnem os mundos de humanos mais diversos e de outras criaturas, ressignificando também as camadas que os homens aí de acima criaram para mim: racial (que vem primeiro), social, territorial, sexual e espiritual – tudo nessa grande e provocadora paisagem cidade-floresta. Uýra, que do tupi antigo significa ‘bicho que voa’, é planta também.
É afilhada da Paxiubinha (‘a árvore que Anda’) – por isso também vem andando pelos mundões e costurando todas as fases de minha Vida. Ela é cada parte porque é o todo.
É a criança, a bióloga, a artista, a educadora – enfim…é eu.
LCO – Todos sabemos o quão difícil tem sido estes últimos anos viver neste contexto amazônico, uma vez que a voracidade extrativista está descontrolada. Neste aspecto, manter a atuação como ecologista e como arte-educadora parece-me crucial. No entanto, sua obra, especialmente depois de sua presença na Bienal e agora com a premiação no PIPA tem conseguido muita visibilidade. Como você vê este momento e esta resistência aí da Amazônia?
Uýra – Eu poderia me envaidecer por estar acessando Bienais e recebendo premiações, como a do PIPA – mas não posso, nem quero. Não caminho só, minha alegria só faz sentido no plural. O que esses lugares me despertam são debates. “Cadê meus parentes?”, “Onde estão os artistas do Norte?”, “Por que só isso de gente da periferia?”(quando há), “Não convidaram as bichas, as trans e as sapatão?”. São questões que atravessam nesses recentes acessos – que não são os ‘privilégios’ antigos da hegemonia.
Acredito que só com um diálogo sincero, e no respeito, a gente constrói outros mundos. Minhas obras são um convite ao diálogo: apresenta as violências, belezas e lutas do meu território, para que o Brasil e os mundos conheçam de verdade as Amazônias. Há séculos os brancos adentram em nossos territórios e vidas, sem querer diálogo algum: só roubando, matando, escravizando ou apagando. Eu poderia não querer diálogos, como já não quis. Eu poderia apenas querer vingança, como já quis. Insisto no diálogo, não para uma possível pacificação destes mundos. Eles já têm a violência e desesperança profundamente instaladas em suas estruturas. O céu já está tocando as nossas cabeças, enquanto corporações maquiam a crise climática e as nações dormem à noite achando viver numa democracia racial. É de outro mundo que precisamos, e ele não pode ter a gestão do mesmo pessoal de sempre. A Arte nos ajuda a imaginar – e isso é poderosíssimo.
Pensemos: o mundo tem mais orelhas que bocas. Mesmo assim, nele só se fala, fala e fala. Esquecemos dos ouvidos, mesmo eles grudados em nós. E quem fala, digo: tem voz a partir dos locais de poder, é o já mencionado pequeno grupo de bocas (as do patriarcado branco e careta). Então é preciso que outras bocas humanas falem, e estas são as indígenas, pretas, travestis, da Amazônia e as dos mundões de gentes, cujas experiências podem ser base para outro mundo. Mas não é só de gente que é feito o planeta – e vimos que só ouvir (parte d) a espécie, também gerou irreversíveis crises políticas, ambientais, socioculturais e espirituais. É preciso ouvir mais para além de nós. Você já aprendeu algo com outro animal? Já se percebeu diferente ao estar com uma árvore? Pois é, as outras criaturas são maioria no mundo, vivem suas próprias vidas, cada uma ao seu jeito único, e têm muito a nos ensinar: seja por um contato que nos faz lembrar de nós, seja pela experiência que nos permite imaginar que outros mundos podemos ser. Na minha série Elementar, os ensaios contam algumas destas histórias: plantas aquáticas, que nos momentos difíceis da cheia do rio, vão dormir e ficam ali descansando debaixo d’água por 4/5 meses – este ensaio “A Flora D’Água”, mostra plantas que nos ensinam o repouso, o retiro espiritual necessário; Já noutro ensaio, o “Rio Negro”, o mistério desse Rio é reivindicado, o direito do rio de não ser explorado é lembrado com afeto – essa emoção que é força frente ao extrativismo do mundo. Já em “A Mata Te Se Come”, eu e a floresta falamos de alimento, de como árvores da Amazônia crescem exuberantes e ancestrais sobre solos com poucos nutrientes – elas geram tanta matéria orgânica, que tudo isso se decompõe aos seus pés e são reabsorvidos por elas, por toda a comunidade – buscam forças em si próprias para continuar a viver, se retroalimentam. Quantas vezes nós humanos não precisamos fazer isso? Uma aldeia ou quilombo, por exemplo, existe e se mantêm porque se alimenta de si. Definitivamente um outro rumo, um outro mundo, só será possível quando ouvirmos o que tem a nos dizer os que têm outras vozes. Precisamos das Oportunidades.
Esse negócio de “descolonizar” ou “contracolonizar”, não é pra mim não. Demora muito e cansa demais. É muito mais potente, belo e neste tempo possível, o cultivo e reflorestamento dos nossos mundos. As retomadas e o fortalecimento de nossa autoestima, de nossos saberes e valores, entre e para com os nossos, já mora em nosso quintal, por ser ancestral.
Nós indígenas e outras gentes da Amazônia, precisamos de diálogos com os mundões, para garantir a proteção das florestas e ecologias onde habitamos; precisamos de diálogo para nos contar da forma digna, em primeira pessoa, para além dos estereótipos racistas que existem sobre nós; é por meio dos diálogos que também acessamos estes espaços de valor econômico e simbólico, de onde historicamente somos excluídes; São nesses diálogos que provocamos curas antigas e profundamente presentes no agora, onde redemarcamos nossos saberes, culturas e valores. Carregamos infinitas vozes, muitas que nem são de gente.
Um material de suporte que recomendo é esta entrevista no Quarta Parede, concedida ao artista Elilson:
https://4parede.com/16-urgencias-do-agora-despertar-nos-as-florestas-que-dormem-embaixo-das-ruas/