Leia a conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Josi, realizada após a escolha da artista como um dos quatro artistas Premiados do PIPA 2022.
1 – Josi, percebo que você enlaça uma formação acadêmica, primeiro em Letras (UFMG) e depois em Artes (Escola Guignard), com suas vivências pessoais e familiares, crescida no Vale do Jequitinhonha, região da qual você diz carregar consigo a poeira de pequi, mato torcido e breu pingado de rezas. Fale um pouco deste processo de formação.
Tenho pensado que minha semeadura em Carbonita, no Vale do Jequitinhonha, me povoa de modos e jeitos de me fincar e me mover no mundo. Isso passa pela necessidade de pé no chão, pelo toque afetivo dos materiais, pelas insistências das rezas, folias, benzeções tramadas na complexidade da pobreza e da riqueza cultural. É uma formação que chega pela oralidade, pelo testemunho de gestos e modos, pelas memórias narradas. A Grada Kilomba, em “Memórias da Plantação”, problematiza o ativar da margem como lugar de criatividade e, de uma certa forma, romantizar a opressão; mas aí ela cita bell hooks que fala da margem como essa posição que incorpora mais de um lugar: opressão e resistência. Então, quando digo de uma poeira de pequi, mato torcido e o breu pingado de rezas, falo dessa combinação de tornear o amarelo do pequi na boca, convivendo com o espinho, do tortuoso do cerrado, que acha jeito de se equilibrar, da fé que desce vela num breu em que falta energia elétrica. Minha avó, Maria Thereza de Jesus, não aprendeu a ler e a escrever. Minha mãe, Alice Concessa Pereira, e meu pai, João de Souza Pereira, estudaram até a quarta série. O Josiley Francisco de Souza foi o primeiro a abrir chão e entrar na universidade e isso favoreceu a migração da família motivada pelo desejo de poder estudar. Eu e minhas irmãs, Josilene Aparecida de Souza e Josimeire Lourdes de Souza, também passamos a pensar em possibilidades outras além das que vinham sendo modeladas. Isso porque, por mais que em casa o valor da escola fosse colocado, o que se apresentava no cotidiano para as meninas eram treinos para servir, seja como empregada doméstica ou, na melhor das hipóteses, pelo menos para mim, alguma artesania ou um costurar para fora. A formação acadêmica que vou ter mais tarde na Faculdade de Letras acaba que também é envolta em opressão e resistência, pois ora me gritaram oca de bagagem e cultura, ora vislumbrei força e coragem através das escrevivências em fervura por lá. Antes de ir à Escola Guignard, é também alimento desse meu caminhar como artista as coragens erguidas e aprendidas cotidianamente nas atuações em bibliotecas escolares e como professora na rede pública de Belo Horizonte, até chegar à necessidade de ir à Escola Guignard enlaçar uma ponta que eu não tinha conseguido antes. Nessa segunda travessia acadêmica há essa emersão de visualidades que vinham quarando o que, é importante destacar, ocorre num cenário de grande sucateamento da faculdade por parte do estado.
2 – Outro aspecto muito importante em sua obra é a combinação de muitas artesanias: pintura, desenho, escrita, cerâmica, lavação de roupa, cozinha, costura. De um modo geral o fazer manual é determinante. Com isso, é um trabalho carregado de temporalidade, de duração, vinculado às tradições populares de Minas e do Brasil. Estas artesanias foram destino ou escolha?
Elas passam por esses dois lugares. Há um samiar, como se diz em casa, ligado a uma ascendência de saberes e treinamentos que vêm numa modelagem de posturas e lugares para serem ocupados. Mas também há respeito, desejo e apreço por sabedorias comumente menosprezadas na hierarquia de valores que são compartilhados, por exemplo, na versão hegemônica da história da arte. Então, tudo isso se inscreve na musculatura ao mesmo tempo com subalternidades das quais quero me desfazer e com um grande respeito que quero cultivar. Inclusive, saberes que fazem parte do campo do desenho, por exemplo, são tomados por mim pela inteligência de uma mão aquecida de fazeções, uma mão artesã que reconhece os meandros dos treinamentos, sejam eles considerados tradicionais, populares ou acadêmicos. Eu entendo que foi muito por isso que eu insisti num formato de resposta quando fui considerada inapta num teste de habilidades específicas para cursar Belas Artes, que era meu desejo inicial na ocasião em que fiz vestibular. Foi essa interdição que me levou a cursar Letras como segunda opção. No entanto, intuindo que aquilo não eram habilidades natas, fiz um autocultivo ao redor desses saberes, o que aconteceu bastante dentro do espaço de ônibus, no período em que morava em Caeté, região metropolitana, e trabalhava e estudava em Belo Horizonte. Nesse tempo mantive cadernos de desenho interessada nessa linha que se faz a partir de saberes da representação e fui ali fazendo registros cotidianos de pessoas, com o tremor do ir e vir da linha 5504 que ligava BH-Caeté-BH. Eu penso que há muitas maneiras para elaborar as nossas questões e o que me interessa é pensar no que eu faço com essas muitas linhas impregnadas, coletadas em diferentes contextos, com seus específicos temperamentos e agenciar no meu dizer esses modos vários que me constituem.
3 – É interessante o modo como você prepara suas tintas com processos naturais, especialmente a tinta oriunda do cozimento do feijão. Você fala de diferentes tempos de cozimento, implicando diferentes temperamentos para o fazer do desenho. Vejo que este temperamento também remete ao tipo de suporte do desenho – sobre papel ele é mais delineado, no tecido é mais borrado. Isso muda bastante o temperamento. Você pode falar destes processos?
Sim. Essa pesquisa dos pigmentos naturais entrou em ebulição na companhia da professora Thereza Portes, no modo remoto da Escola Guignard. Nessas andanças, reconheci um azul numa sujeira cotidiana que vazou da panela no limiar do tampar da pressão. Vejo sim muitas camadas de temperamentos no preparo dessas tintas. Há os temperos propriamente ditos, como sal grosso, vinagre, alho, que entram nessa alquimia como fixadores e conservantes, além das simbologias que suas presenças carregam. Nesse caso do feijão, esses temperos, reunidos com os diferentes tempos de cozimento, vão trazer também diferentes nuances e durações de cores, que caminham por verdes, roxos, azuis, marrons… E há, como você menciona, o encontro dessas tintas com diferentes suportes, ora esse caldo está mais delineado mesmo, ora se espalha a partir das diferentes fibras e tramas e nas conversas com diferentes ph’s. Minha paleta também tem se servido de açafrão, urucum e terras, que venho coletando de diferentes chãos pisados e cada uma dessas matérias possui seu preparo específico. O urucum e o açafrão, por exemplo, a Thereza me ensinou a receita de guardá-los num breu de um pote fechado por alguns dias, em companhia de álcool de cereais e, nesse hibernar no escuro, a cor vai se juntando. Também me interessa um temperamento que se dá ligado a diferentes posições em que se dão esses encontros, pois quarar/pintar/desenhar no chão, num quarador, numa mesa ou na parede também vai trazer um escoar e um decantar diversos.
4 –Outra série que gostaria de ouvi-la a respeito é a “Quara-dores”. O quaramento como um processo tradicional de deixar as roupas ao sol para irem embranquecendo e que você transforma em um processo de ir deixando aparecer as imagens – o quanto neste aparecimento é controlado e o quanto é trabalho do acaso, do desígnio do tempo?
Eu reconheci o verbo “quarar” no relacionamento com algumas tintas naturais, principalmente as que vêm de frutos, sementes e raízes, isso porque elas carregam o movimento da coisa viva que ficou evidente para mim logo que comecei a me servir com essas primeiras águas sobre papel. Isso porque há uma necessária espera entre uma camada e outra que não é somente um aguardo por secagem, mas um aguardo pelo desenho de cor que é feito pela luz e o tempo, que levantam e decantam formas nessa confluência de durações. Esse quarar acionado em modo reverso, que não aguarda a alvura da lavação de roupa, também me interessa como exercício atento à reversão de um branqueamento de nossos seres. Então, os quaramentos se fazem desse convívio de um gesto intencionado com o pincel a partir de uma memória que a gente leva de uma certa resposta das aguadas, mas sempre no aguardo pelas surpresas, com as quais se estabelece a conversa. Esse quarar reverso traz procedimentos que também ajudam a pensar no que pode entrar numa paleta de cores: um material que possa trazer nódia, como se fala em casa, passa a ser desejado pelo seu potencial de manchar. Esse quarar trança ofícios a favor dos aparecimentos, com ações de lavação e engomação desviadas para levantar as figurações, como esfregar, coletar esses vincos com pincel, engomar, passar… Os quara-dores que fazem parte dessa série que você menciona geralmente são objetos fincados nos quintais e que servem de suporte para esse quarar das roupas numa lavagem artesanal. Eles se abriram na busca de um lugar específico para quarar os trabalhos em tecido, quando passei a pensar em alguns deles também em co-funcionamento com os panos, trazendo tempos e espaços para esses cultivos.
5 – Fale um pouco do seu trabalho com cerâmica, mais ligado à tradição do Vale do Jequitinhonha. Como lidar com este passado sem ficar no âmbito da citação. Há um trabalho em processo de 2022, que vi no seu portfólio, que junta a cerâmica, com o crochê e com a escrita. Seria este um processo de atualização desta tradição popular? O quanto na escrita é para ser lido ou para ser visto, ou seja, a escrita é texto ou desenho?
A argila é um material que se faz numa caminhada de desprendimento e sedimentação de anos, não aparece de uma hora para a outra na natureza, tem essa memória inscrita. Muito por isso talvez que o encontro com ela é tão especial, a gente sente um reconhecimento, uma maceração de chão e raízes. Sou fertilizada de desejos de imagens que se fazem pelo barro, mas não tive aprendizado cerâmico no Vale, comecei a lidar com ele a partir das aulas virtuais de cerâmica com a Márcia Seo na Escola Guignard. Referências como Dona Noemisa, Dona Isabel, Lira Marques, Ulysses Mendes e Ulisses Chaves, são águas férteis dessa pesquisa e uma ideia de atualizar uma tradição não me interessa como exercício de agir sobre algo que está desatualizado, porque não está. Gosto de me cultivar no rumo do que diz a professora Leda Martins, sobre a ideia de andar sobre traços vincados por antepassados; ela diz que ali a gente se alimenta e imprime os próprios tons e pegadas, que são próprios de uma ideia espiralar de um tempo não linear e evolutivo, com retorno dinâmico. Falando da escrita, nesse trabalho que você menciona de meu portfólio, ela é uma das linhas que entrou numa conversa fiada que abri no ano passado, um encontro de linhas, tramas e saberes. Na técnica de feitura manual da cerâmica há uma construção que se dá através de rolinhos feitos de barro, a partir dos quais se tecem variadas formas e tamanhos. Então, eu aproximei três modos de linhas e tramas que me habitam: a linha do algodão, a linha do barro e a linha da escrita. A partir delas, vieram três tramas tingidas na coreografia uma da outra e como a escrita carrega esse hálito de decodificação, ela pode ser tocada com esse gesto, mas no ir e vir da conversa com as outras linhas, embaralham-se e abrem-se outras vistas. Essas conversas fiadas também carregam uma dimensão de troca que pode ser ativada com outras pessoas, elas ganharam corpo nas aulas da Letícia Grandinetti, na Escola Guignard, se abriram ao aprendizado e trocas com outras mãos numa roda da residência do Grupo TeAto do Amanhã, em Belo Horizonte, e seguem por aqui, nesse papo em modo fiado.
6 – Como é para você trabalhar com este fazer manual, tradicional, de temporalidade expandida, em uma época acelerada e de alta dosagem tecnológica? Você se sente extemporânea?
Não, eu me vejo nesse tempo mesmo, mas venho colocando meu ouvido numa direção contrária a um culto linear e evolutivo, com exagero de futuro; os sinais de ruína de um aceleramento produtivo estão por toda parte, como essa crise pandêmica mundial da qual somos sobreviventes. Então, muitos dos meus procedimentos e pesquisas estão nas ebulições desse tempo, como o cultivo da busca por processos mais sustentáveis de relacionamento com as materialidades, por exemplo, no quarar do pensamento que se formula no convívio e escuta, em retornos e reversos, no respeito às raízes, no ir se fazendo junto, em fogo baixo, deixando secar e firmar… Isso não demanda uma recusa de tecnologias, mas de elaborações e relacionamentos distintos. Essa conversa aqui com você é uma fiação feita de pixels, que poderia entrar na roda da conversa fiada junto com o barro, o algodão, o manuscrito, por exemplo, desde que sem hierarquias. Sigo inspirada naquele aprendizado de tornear devagar o pequi na boca sem mordidas de extermínio que podem dizimar os espinhos, mas também toda existência de sabor.