Leia a Conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Coletivo Coletores, realizada após a escolha da dupla como um dos quatro artistas Premiados do PIPA 2022.
1 – Gostaria de começar perguntando sobre a formação de vocês e do Coletivo Coletores. Começou como um coletivo de arte ou como militância político-cultural? Essas coisas estão juntas ou separadas no vosso trabalho?
Iniciamos o Coletores em 2008 na periferia da Zona leste de São Paulo, dentro da universidade, estudávamos na mesma turma de licenciatura em Artes Visuais, começamos a trabalhar juntos em um trabalho de grupo em uma disciplina de história da arte e o nome Coletores vêm dos estudos que fizemos juntos sobre povos nômades, que tinham como principais características a coleta, a bricolagem, a coletividade assim como a ausência de uma moradia fixa. Desde o nosso primeiro projeto o foco estava na discussão sobre território, a ocupação da cidade, o direito à cidade assim como a falta de instituições culturais e a falta de investimentos nas pessoas e histórias que vinham das periferias, nesse sentido o trabalho sempre teve um caráter político e sociocultural. Simultaneamente a esse processo iniciamos nosso trabalho ligado à arte educação, atuando como professores na rede pública de ensino do Estado de São Paulo e desenvolvendo projetos artísticos com ateliês abertos e transitórios, realizando projetos via editais, Sesc, museus e colaborações com ONGs, coletivos ou outros artistas.
Terminamos a Universidade em 2010 e em 2011 cursamos juntos uma pós graduação em Design e humanidade pela FAU-USP. Em 2019 Toni Baptiste recebeu o título de mestre em Ciência da Informação pela ECA-USP, desenvolvendo pesquisas ligadas à arte, tecnologia e cidade em diálogo com movimentos culturais insurgentes.
Por não termos um espaço físico de produção, o caráter colaborativo da nossa produção está em constante transformação, buscando sempre conciliar nossos valores, junto com as demandas dos espaços que nos recebiam, gerando uma espécie de escultura social (aproximado com a pesquisa do Beuys) assim como projetos artísticos de caráter relacional (no sentido de Nicolas Bourriaud). Nesse sentido, arte, política, educação e tecnologia passaram a ser característicos ao longo dos nossos 14 anos de produção. Gerando colaborações das mais ímpares possíveis. Desde fazer um atelier itinerante voltado à formação de adolescentes e jovens, ou a ocupação de praças wifi da cidade de São Paulo, ou a desenvolver um trabalho com a secretaria da Saúde discutindo os cuidados sobre a COVID19, chegando até a desenvolver um HUB que projetou a obra de mais de 20 artistas pretos e indígenas de várias partes do Brasil, se tornando uma das maiores ações antirracistas em território nacional.
2 – Como a comunidade da zona leste onde vocês surgiram respondeu aos projetos do coletivo coletores? Li uma comparação que vocês fizeram entre os coletivos periféricos de hoje e as festas que a geração dos pais de vocês frequentava nos anos 1960 e 1970 – festas que não eram só para o lazer, mas também um momento para organizar os mutirões, discutir a implementação de uma linha de ônibus na comunidade etc. Como é esta articulação entre arte, festa, engajamento e comunidade?
Somos de bairros dos extremos da zona leste da cidade de São Paulo. o Toni é de São Mateus que faz divisa com Santo André e o Flávio é de São Miguel Paulista que faz divisa com Guarulhos, nós estudávamos em Itaquera, um bairro que fica no meio do caminho entre os nossos bairros. No início, começamos articulando com outros coletivos e eventos próximos a essas regiões, e aos poucos fomos indo em direção mais ao centro chegando à região da Penha.
No nosso olhar, quem vem de uma criação em uma região periférica já possui em seu DNA um olhar para a coletividade de forma implícita ou explícita, quer seja por muitas famílias serem grandes e dentro de casa você já precisar aprender o que é conviver e compartilhar ou por questões ligadas ao dia a dia periférico, as feiras, as festas, o futebol de várzea, as rodas de samba, as rodas de capoeira, a religiosidade ou as culturas urbanas como: Pixo, Skate, Soundsystem, o movimento Hip Hop, o funk e mais recentemente a comunidade Ballroom. São alguns dos exemplos de manifestações coletivas que historicamente lutam, à sua maneira, para fazer o direito a existir e o direito à cidade acontecerem. Com um processo de pesquisa e escuta das pessoas mais velhas fomos compreendendo que as nossas organizações de hoje na contemporaneidade são continuidades de movimentos ancestrais que vêm de povos originários de antes da invasão, passando pelos quilombos, terreiros até chegar nas movimentações que temos hoje. Foi a partir dessa constatação que percebemos que o nosso trabalho só faria sentido se incorporássemos a discussão sobre memória em nossa produção, sobretudo, memórias que foram apagadas da história, que impedem que façamos essas conexões ancestrais de forma direta.
3 – Pelo que vi, o coletivo surgiu da ideia de pensar a cidade como uma plataforma para ações artísticas. Pensando de forma coletiva e agindo de forma colaborativa. Como se dá este processo? Como eleger um espaço ou um território novo de intervenção? Imagino que em cada caso com parceiros e colaboradores novos.
Temos algumas manias e formas de produzir que são muito particulares, gostamos de andar pela cidade, perguntar as histórias dos lugares, quando produzimos com algum artista ou instituição sempre gostamos de entender o contexto do território. Na sequência montamos cartografias/diagramas mentais ou em desenho, dos quais, sempre conversamos e vamos procurando pontos em comum. Uma característica que gostamos de abordar sobre os lugares que intervimos é a discussão sobre apagamento, isso é uma prioridade no que fazemos, pois, um dos elementos da nossa ação é ativação ou ressignificação desses lugares. E para cada local ou ação, elaboramos contextos diferentes, mas que podem dialogar entre si. Por exemplo, fizemos recentemente um projeto para comemorar os 400 anos da reconstrução da capela de São Miguel Paulista, uma capela que possui pinturas parietais realizadas por indígenas, recentemente fizemos também uma intervenção para falar sobre a igreja dos homens pretos do Paissandu, em comum, ambas igrejas passaram por processos de apagamentos históricos e processos de reconstrução e ambas estão ligadas a povos historicamente perseguidos e marginalizados.
4 – Vocês também falam que a produção acontece em trânsito, sobretudo na periferia. Vocês atuam mais na elaboração de processos, pensando a cidade como um fluxo atravessado por conflitos a serem encaminhados e transformados. Ou seja, é uma ideia de arte pública que não reproduz a lógica monumental, inventando uma espécie de performatividade pública. Faz sentido isso?
É justamente isso o que fazemos, chamamos isso de vídeo performance projetiva, procuramos atuar em espaços com diferentes públicos e contextos, entendemos que a arte é para qualquer pessoa, então procuramos sempre uma forma de estar em público ou ressignificar espaços para que a relação arte e público aconteça, não importa se é um ciclo de performances de uma galeria, um museu, uma festa, uma oficina, uma escola, um centro cultural ou até mesmo um monumento. A vídeo performance projetiva ocorre quando temos autorização para estar nesse local e podemos pensar de forma muito mais profunda as relações que o trabalho pode promover. Desenvolvemos um projeto de vídeo e algumas vezes de som sincronizado, pensando cada elemento do espaço, elaborando uma equação com: espaço + público x tempo / pelo conteúdo. É a partir deste conjunto que conseguimos elaborar nossas ações e procuramos estender isso para outros projetos que somos convidados quer seja como artista, colaborador ou consultor.
5 – A utilização de recursos tecnológicos é parte essencial das ações do Coletivo. É assim desde o começo? Podem falar um pouco do projeto pixo digital – como ele funciona?
A utilização dos recursos tecnológicos permeiam a nossa produção em diferentes momentos, mas podemos afirmar que não é o essencial das nossas ações, visto que a maioria delas também pode ocorrer de outras maneiras, o que ocorre é que dentro da nossa pesquisa, existe a reflexão sobre os usos das tecnologias nas cidades, portanto, utilizar os recursos tecnológicos nos permite acessar lugares e refletir sobre o nosso mundo a partir de uma práxis que só se faz possível, por quem utiliza esses recursos. Temos uma origem na periferia de São Paulo e mesmo com os delays e os apartheids tecnológicos, existe uma forma muito particular sobre os usos das tecnologias por quem vêm dessa realidade e isso nos interessa. Quando começamos a utilizar os recursos tecnológicos, por exemplo, foi em um contexto do qual a tecnologia permitiu que elaborássemos uma espécie de hacking dos circuitos artísticos e culturais, abrindo caminhos para que utilizássemos outros elementos e linguagens artísticas da nossa produção. Se colocarmos em uma balança veremos que em nossa produção, a carga de história, filosofia, desenho ou arquitetura é muito mais pesada do que o uso dos meios tecnológicos em si, viemos de uma escola do design da qual quem cria precisa acompanhar todo o processo de um projeto, incorporamos isso em nossa forma de fazer arte e desse modo, procuramos entender se a tecnologia cabe ou não em determinado processo.
No caso do “pixo digital” é isso que ocorre, nós viemos de uma formação das ruas antes da formação na academia, aprendemos com o pixo (que é uma atividade considerada ilegal) formas de olhar, hackear e ocupar a cidade, ao mesmo tempo desenvolvemos modos para visibilizar nossas ações no espaço urbano, o pixo tradicional é basicamente tinta, um suporte e a vontade de ocupar um espaço, é uma forma de arte efêmera. O que fazemos com o digital é tensionar essas possibilidades, transformar algo que já é efêmero em algo mais efêmero ainda, aproximando o pixo com a performance ou até mesmo site specific. Se o pixo é estático temos com o digital a possibilidade de incluir movimento, e como fazemos sem autorização, mas estamos trabalhando com luz, isso não configura crime ambiental como é considerado com o pixo tradicional. Permitindo dessa maneira, uma atuação com maior fluidez por diferentes territórios.
6 – Como foi para vocês que atuam na rua este longo período da pandemia? Foi possível migrar e atuar no mundo online?
Para nós foi algo muito difícil, primeiramente pela perda de pessoas muito próximas vítimas da COVID-19 e ao mesmo tempo foi complicado pela falta de recursos, visto que as principais instituições culturais do Brasil, não deram conta de incluir em seus editais emergenciais um olhar para as periferias ou lugares fora das grandes circuitos. Foi um processo de retornar às raízes e fazer ações de guerrilha sem nenhuma remuneração focando em projetar ou produzir conteúdo online para informar as pessoas sobre os cuidados ligados à prevenção da COVID-19. Nesse período a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo viu o nosso trabalho e abriu caminho para que pudéssemos propor ações ligadas à saúde em outras periferias para além da zona leste (que é onde moramos), fizemos ações pelas 5 macro regiões de São Paulo, intercalando bairros dormitórios, hospitais e centros culturais. Esse projeto teve uma grande repercussão o que acabou nos levando a outro projeto muito importante chamado “Vozes contra o racismo”, que contou com a curadoria do Hélio Menezes. Nesse projeto elaboramos um percurso que realizou intervenções artísticas na cidade de São Paulo, projetando obras de artistas pretos e indígenas. Foi uma ação bem bacana, e podemos destacar o projeto que fizemos com o Denilson Baniwa chamado “Brasil terra indígena” que foi realizado no monumento às bandeiras. Em resumo, foi que no início da pandemia foi muito difícil e aos poucos a característica da nossa produção permitiu que não só mantivéssemos a nossa produção, mas também expandiu as formas de nos conectar e produzir junto com outros artistas ou instituições.
7 – Como tem sido a circulação nas instituições de arte? Como foi ter recebido o prêmio PIPA? Quais os planos e novos projetos do Coletivo Coletores?
Os últimos 4 anos têm sido bem interessantes para nós, expandimos o desenvolvimento de projetos e colaborações com artistas, coletivos, espaços culturais independentes e instituições de arte mais tradicionais, sentimos que os espaços estão mais abertos para outras formas de se pensar e se fazer arte. Tivemos a honra de participar da Bienal internacional de arte contemporânea de Dakar em 2018, acabamos de participar da Bienal internacional de arquitetura de São Paulo, desenvolvemos projetos colaborativos com o Instituto Moreira Salles em São Paulo, com o Museu da Língua portuguesa e agora também como o Museu das Favelas, ao mesmo tempo que grandes meios de comunicação especializados em arte e arquitetura tem nos entrevistado, o canal Arte1, a revista Contemporary &, Revista Bravo!, Arte Brasileiros são alguns dos canais que conversamos nos últimos 2 anos. Então quando ganhamos o prêmio PIPA, sentimos como a finalização de um primeiro ciclo de quase 15 anos de trabalho e simultaneamente uma abertura de caminhos para que outros circuitos, espaços, artistas ou instituições conheçam o nosso trabalho. Atualmente estamos desenvolvendo um curta metragem de animação, um álbum musical com as trilhas sonoras de todas as nossas performances e também o livro de 15 anos de trajetória. E ao mesmo tempo estamos aprofundando nossa pesquisa em alguns temas ligados aos apagamentos de memória.