Leia a conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Vitória Cribb, realizada após a escolha da artista como um dos quatro artistas Premiados do PIPA 2022.
1 – A sua formação foi em Design, na ESDI da UERJ. Seu trabalho está sempre nesta composição entre o artístico e o funcional. Como isso foi acontecendo e como você acha que isso se desdobrará com sua maior inserção no circuito de arte?
Acredito que a graduação em Desenho Industrial e o interesse pessoal pelas chamadas “novas mídias” se conectaram organicamente durante o período da graduação. A grade curricular do curso de Design na UERJ, na minha época, habilitava o estudante tanto em Design de Produto quanto em Comunicação Visual – e durante o período de graduação decidi unir o que aprendia de forma teórica e técnica na faculdade com os meus interesses e práticas artísticas pessoais. Acredito que seja por isso que um dos pontos centrais das minhas narrativas digitais seja a reflexão sobre a comunicação online, presente no Ciberespaço, que afeta diretamente a forma que interagimos socialmente fora do espaço digital. De certa forma, os meus curtas metragens existem na intenção de comunicar subjetivamente sobre os sentimentos que advém dessa socialização em massa no ciberespaço para uma audiência majoritariamente imersa no mundo digital e condicionada por algoritmos de redes sociais, que muitas vezes consome desenfreadamente conteúdos repetitivos nesse espaço.
2 – É muito impressionante a sofisticação tecnológica de suas obras. Você tem alguma formação em programação? Trabalha com parceiros no desenvolvimento da sua linguagem?
Não tenho formação direta em programação, porém nos últimos cinco anos trabalhei diretamente com programadores no meu trabalho formal (é preciso enfatizar que o cenário artístico brasileiro atual não permite que artistas vivam apenas da sua produção artística autoral, precisando assim atuar em outras áreas similares ou opostas para serem remunerados de maneira justa, no meu caso atuo como designer e criadora de experiências XR para indústrias de tecnologia e entretenimento) – e com isso precisei aprender o básico da linguagem para me comunicar dentro dos projetos com os desenvolvedores e também para desenvolver projetos mais simples para diferentes clientes.
Atualmente, além do meu trabalho artístico pessoal, também atuo como criadora de experiências/filtros em Realidade Aumentada para indústrias de tecnologia, moda e entretenimento e faço parte da Snap Lens Network, rede de criadores e desenvolvedores certificados pela empresa Snap Inc. Nos projetos desenvolvidos para clientes eu preciso não só dirigir criativamente como desenvolver interações e implementações específicas.
Eu trabalho 100% sozinha desde a concepção, escrita de roteiro, criação de personagens e animação CGI do filme e renderização – A parceria ocorre ocasionalmente com artistas sonoros que possuem um trabalho que se alinha com a minha perspectiva artística – a colaboração com artistas sonoros ocorrem nos curta metragens “@Ilusão” (2020), com trilha sonora assinada por OLHO, e “VIGILANTE_EXTENDED” (2022), com trilha sonora assinada por Anelena Toku e OLHO. Nos meus primeiros vídeos como “Prompt de Comando” (2019) e nas séries de mini-vídeos looping como “_vigilante 00” eu produzo as trilhas através de captação e edição de som de forma mais experimental.
3 – Há sempre uma resistência do meio de arte em relação ao universo dos games e à circulação proliferante, sem restrição, em plataformas como Instagram e TikTok. Como você vê estas plataformas: como canal de divulgação ou como dispositivo poético?
Particularmente eu enxergo essas plataformas de redes sociais como um meio de divulgação do meu trabalho, assim como artistas de outras mídias, como Pintura, Desenho e Som, também utilizam em muitos casos. O trabalho criado em mídias digitais não precisa existir e acabar no ciberespaço, pelo contrário, ele pode se fundir a outras estruturas e dialogar com trabalhos de outras mídias. Para mim a resistência maior no Brasil é abraçar essas mídias como formas de expressão e incorporar artistas que experimentam com essa técnica no circuito, há muita experimentação e oportunidade em espaços independentes mas ainda pouco aprofundamento e reconhecimento. Há uma questão importante, na minha perspectiva, em relação ao público que não está familiarizado com artes em mídias digitais ou que se utilizam da eletrônica de forma contemporânea, e muitas vezes o público que acompanha o trabalho de maneira superficial confunde o que é divulgação do trabalho com o trabalho em si, um problema que advém não só do circuito de arte contemporânea mas com hábitos contemporâneos de transformar tudo em consumo e identidade nas redes sociais. Por outro lado, enxergo essas plataformas como dispositivos poéticos em certa medida também, uma vez que a observação das relações interpessoais existentes nessas plataformas serve como inspiração para as narrativas e reflexões abordadas nos meus curta metragens.
4 – Você há pouco tempo criou um avatar/modelo virtual chamada Ôti, uma topmodel 3D negra que foi premiada por uma agência de modelos virtuais em Londres. Como foi este projeto e como é esta imbricação tão interessante no seu trabalho (e na sua vida mesma) da questão racial e da tecnológica?
Essa modelo foi criada para a própria agência, não em formato de premiação, mas em formato de agenciamento dessa modelo para futuros projetos relacionados à moda e entretenimento digital que essa Avatar poderia participar. Ôti segue “agenciada” por essa Agência de modelos virtuais e sigo colaborando com a Mutantboard (agência) em outros projetos e criando outros avatares para editoriais diversos. Esse projeto se alinha mais com o comercial do que com minhas criações pessoais – uma vez que além do meu trabalho autoral como artista trabalho também para outros segmentos como as indústrias de Tecnologia e Entretenimento desenvolvendo diversos projetos conceituais e artísticos. Um bom exemplo desses projetos mais comerciais aconteceu em 2021, onde tive a honra e felicidade de criar uma Avatar 3D digital da Cantora britânica/ jamaicana Mahalia para um editorial de moda digital e impresso. O processo de recriar uma personalidade famosa foi bem desafiador uma vez que a criação dessa avatar implica a imagem pública da própria cantora e a responsabilidade de lidar com o corpo de uma outra pessoa que existe realmente.
5 – Como não se deixar capturar pelo fascínio do desenvolvimento tecnológico? Qual o momento em que o trabalho deixa de se apropriar pelas novas tecnologias e passa a ficar a serviço delas? Estes impasses te fazem pensar?
Acredito que a ideia fascinante do desenvolvimento tecnológico acaba sendo mais forte para quem está distante do desenvolvimento de aplicações e programas ou está em um estágio inicial de aproximação da linguagem. Quando você lida com a linguagem diariamente você naturalmente observa e questiona os processos, e toda a imagem abrilhantada pela tecnologia, futuro e automatização ficam mais reais, banalizadas e problemáticas. As trocas com outros desenvolvedores e criadores tecnológicos também é essencial para entender cenários, aplicações e ideologias por trás de determinadas ferramentas tecnológicas lançadas a cada mês.
Talvez, o não fascínio tecnológico seja parte de um pensamento geracional também, que ao crescer tão inserido em uma sociedade conectada digitalmente já enxerga o desenvolvimento tecnológico como parte do organismo social, não é novidade, para muitos jovens inclusive é desgastante, chato e repetitivo. Definitivamente, a linha entre apropriação das tecnologias para desenvolvimento de uma linguagem e a propagação das mesmas é muito tênue. De certa forma há uma retroalimentação ao questionar essas mídias digitais e ao mesmo tempo contribuir para o melhoramento da implementação dessas mídias online, porém, acredito que a experimentação e questionamento das próprias escolhas técnicas e artísticas digitais podem contribuir para uma reflexão subjetiva sobre comportamentos automatizados por conta de um ecossistema baseado em algoritmos, fama e digitalização do ser-humano. Nos meus trabalhos busco sempre extrapolar o uso dessas técnicas visuais digitais – associadas à automatização, rapidez e superficialidade – e as inserir em contextos mais lentos, ilustrando textos que existem na reflexão e crítica de um mundo cada vez mais interconectado, fake, e pasteurizado.
6 – O surgimento dos NFTs te parece um caminho interessante para a comercialização dos trabalhos virtuais ou é apenas uma estratégia comercial para dar liquidez aos investidores com criptomoedas?
Acredito que o surgimento dos NFTs lá no início (antes do boom no mundo das artes tradicionais) foi importante, principalmente, para artistas que já experimentavam mídias digitais e de certa forma eram ignorados pelo mercado tradicional de arte a começar a monetizar e encontrar colecionadores interessados em seus trabalhos, formando comunidades e redes de apoio. Por outro lado, nos últimos anos a ferramenta que poderia ajudar artistas e criadores independentes virou uma ferramenta para grandes projetos e marcas, alguns muito interessantes do meu ponto de vista, que existem digitalmente como produtos e possuem algum marketing extensivo ou até artistas que ganham alguma notoriedade em determinada comunidade. Além disso, é importante frisar que assim como o mercado tradicional de arte contemporânea o mercado de NFTs possui as mesmas problemáticas em relação a vendas x gênero x etnia e acesso, por exemplo.
7 – A sua geração respira simultaneamente oxigênio e virtualidade, vive em um mundo cujas extensões tecnológicas são cada vez maiores – inteligência artificial, aprendizado das máquinas, algoritmos facilitadores e diabólicos, bolhas semânticas, estridência política, esvaziamento retórico, interdição do diálogo e por aí vai. Como manter-se minimamente crítica diante deste cenário sem cair na tecnofobia?
Na minha perspectiva, a minha geração de um modo geral é bem crítica aos movimentos tecnológicos e sociais que se apresentam mas também não se privam de experimentar e entender a que propósito novas tecnologias de comunicação se propõem. E assim como qualquer mídia, para entender o que é ruim, maléfico e até mesmo o que não é compatível com o seu gosto pessoal é preciso estar aberto para entender minimamente o que existe do outro lado. Dentro da minha prática artística posso citar o filme “@ilusão” (2020) que parte de uma reflexão crítica à existência nas redes sociais, conteúdos repetitivos e algoritmos que reforçam comportamentos racistas, sexistas e classistas – para realizar esse filme em 2020 (no auge do isolamento social no Brasil) foi necessário estar presente nas redes sociais, observar, postar e vivenciar essa saturação digital para então criar o roteiro do filme. A própria residência onde realizei o filme aconteceu online, onde todas as trocas e decisões eram tomadas através da internet. Esse evento me remete diretamente à sua pergunta sobre as redes sociais como dispositivos poéticos. No meu caso, acredito que elas ativam justamente a poética narrativa dos meus trabalhos e não necessariamente funcionam como dispositivos de exibição dos trabalhos, por exemplo. Acredito que para evitarmos a tecnofobia na Arte Contemporânea Brasileira seja importante nos perguntarmos sobre o porquê de uma sociedade tão fiel à internet – que permite namoros e encontros virtuais, que tem sua política atravessada diretamente por opiniões verdadeiras e falsas distribuídas através de likes na internet e que naturaliza o estabelecimentos de relações interpessoais íntimas digitais – ser tão resistente às poéticas e experimentações artísticas, sejam elas divulgadas ou criativamente conectadas à digitalidade regente na contemporaneidade?