O Museu da Inconfidência (MdInc) inaugurou, no dia 5 de novembro, uma intervenção do artista paulistano Rodrigo Sassi com curadoria de Ana Avelar, que integrou o conselho do Prêmio PIPA 2022. Intitulada “Corpo do pecado, da redenção, da salvação”, a obra consiste em uma escultura de madeira e concreto com cerca de dois metros de altura, criada especialmente para ocupar uma antiga cela solitária da histórica Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica – local que abriga, desde 1944, o MdInc, em Ouro Preto.
Realizado em parceria com a Central Galeria, de São Paulo, o projeto é parte do programa de intervenções de arte contemporânea do MdInc, sob a direção de Alex Calheiros, visando estabelecer um intercâmbio entre a arte produzida na atualidade e o acervo da instituição, que inclui documentos históricos e peças artísticas do período colonial. A ideia é problematizar a narrativa estabelecida historicamente por esse importante museu por meio da arte contemporânea, selecionando artistas que apontarão as fissuras da narrativa da instituição dedicada ao Brasil colonial.
No texto crítico, Ana Avelar, curadora convidada para o projeto, destaca que: “Em 2022, ‘Corpo do pecado, da redenção, da salvação’ nos provoca a refletir sobre como a vida colonial e suas expressões artísticas ainda são constitutivos de nossas múltiplas e diversas identidades. São elementos que nos identificam – inclusive salientando as perversidades que nos constituem socialmente”.
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Corpo do pecado: Rodrigo Sassi no Museu da Inconfidência
Na primeira metade dos anos 1940, enquanto o globo testemunhava a Segunda Guerra Mundial, as nações lutavam por assegurar a união nacional. Nesse período, o Museu da Inconfidência – MDINC foi oficialmente inaugurado, representando um evidente interesse em fortalecer a identidade do país por meio do estabelecimento de ícones culturais que representassem essa união. Assim, o Museu integraria os esforços para conceber uma narrativa unificadora pautada numa identidade brasileira única.
Não menos significativo é o caráter identitário atribuído à Inconfidência Mineira, simbolizando a distinção entre portugueses e brasileiros. A antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, onde hoje situa-se o MDINC, foi edificada por Luís da Cunha Menezes, governador da capitania à época do levante e personagem satirizado por Tomás Antônio Gonzaga nas Cartas Chilenas.
A associação entre a arte colonial produzida no Brasil, lida pelas lentes do Barroco, e a identidade cultural nacional foi apontada pelos modernistas no início do século XX. Tal estratégia interpretativa convocava para si esse passado, mas seu sentido era positivo, pois visava-se defender a cultura brasileira em seu aspecto de apaziguamento. Para Mario de Andrade, o caráter “sincero” da arquitetura mineira do século XVIII surgia da integração entre elementos decorativos e projeto arquitetônico. Superior a outros barrocos, esse deveria constituir modelo de atitude a ser seguido pela arte brasileira.
Entretanto, na atualidade, a ideia de uma “identidade mestra”, singular e abrangente, como entende o sociólogo Stuart Hall, é substituída por uma noção identitária heterogênea e híbrida, composta de diferentes. Tendo o presente dessa realidade em vista, o MDINC se reposiciona, atualizando sua concepção de museu como um espaço com o qual nossas identidades múltiplas e complexas se identificam.
Recentemente, a definição do conceito de Museu, fruto de pesquisa empreendida pelo Conselho Internacional de Museus – ICOM, ganhou novas acepções, enfatizando seu caráter acessível e salientando a participação das comunidades na concepção e oferecimento das experiências partilhadas. É nesse contexto de renovação museal que se inaugura o Programa de Arte Contemporânea do MDINC com a exposição de uma obra produzida por Rodrigo Sassi para o Museu.
Artista que investiga a história das construções brasileiras a partir de uma perspectiva da forma simbólica, Sassi nos revela formas que estão entre nós e que nem sempre conseguimos ver. Numa proximidade com o pensamento do filósofo Ernst Cassirer, notamos que as formas são coletadas em nossa realidade e as reconhecemos no encontro com os tridimensionais do artista.
Neste sítio-específico, linhas serpenteadas, tanto sensuais como angulosas, delineiam a fôrma artesanal de madeira, como aquela utilizada por operários para moldar o concreto da construção civil brasileira ainda em nossos dias. Assim, mestres-pedreiros de ontem, tão comuns nas Minas Gerais coloniais, e mestres-de-obras de hoje encontram-se nas técnicas construtivas tradicionais, que perduram dada a possibilidade de exploração dessa mão-de-obra especializada de baixo valor econômico. A história dessas relações de trabalho vaza por entre os vãos do tridimensional de Sassi, que, em sua sinuosidade, evoca ainda os ornamentos característicos de imagens de madeira policromada que visitamos no MDINC e nas igrejas do entorno. Em 2022, “Corpo do pecado, da redenção, da salvação” nos provoca a refletir sobre como a vida colonial e suas expressões artísticas ainda são constitutivos de nossas múltiplas e diversas identidades. São elementos que nos identificam – inclusive salientando as perversidades que nos constituem socialmente.
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