Ocupação dos artistas Premiados do PIPA 2022: Vitória Cribb

Bem-vindes à Ocupação dos Artistas Premiados do PIPA 2022! Até o dia 29 de outubro, os premiados desta 13a edição compartilham com o público virtual do Prêmio PIPA vídeos, fotos e textos – alguns exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 03 a 08 de outubro, Vitória Cribb (veja a página da artista aqui no site) exibe alguns trabalhos recentes e fala sobre sua produção digital.

Nesta edição, o Prêmio PIPA reforça o formato adotado desde 2021 de receber indicações de trajetórias recentes. Este ano, o Prêmio foi direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há 15 anos. O foco do PIPA neste momento é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada.

O material abaixo, publicado diariamente, está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas InstagramTwitter e Facebook.

E lembre-se que os Artistas Premiados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro até o dia 29 de outubro. Será um prazer te receber por lá!


Dia 01:

Rio de Janeiro, RJ, 1996
Vive e trabalha em Rio de Janeiro, RJ

Indicada ao Prêmio PIPA 2022

Cribb é formada pela Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, Rio de Janeiro, Brasil. Filha de pai haitiano e mãe brasileira, vem criando nos últimos anos narrativas digitais e visuais que permeiam técnicas como: criação de avatares em 3D, filtros em realidade aumentada e ambientes imersivos, utilizando o ambiente digital como meio para explicar suas investigações e questões atuais percorridas por seu subconsciente.  A artista investiga os comportamentos e desenvolvimentos de novas tecnologias visuais/sociais e transpõe o seu pensamento através da imaterialidade presente no digital.

Em 2021, “@ ilusão”, filme e instalação digital da artista, foi citado e ganhou destaque em resenhas como o XR Panel do The Art Newspaper. Entre as exposições destacam-se: The Silence of Tired Tongues (Framer Framed, Amsterdam, 2022); Oh I Love Brazilian Women (Apexart, New York, 2022); Segue em Anexo (Museu Nacional da República, Brasília, 2022); Futuração (Galeria Aymoré, Rio de Janeiro, 2021); Disembodied Behaviors (galeria bitforms, New York, 2020), The Brazil that I Want (Centre d’Art Contemporain Genève, 2020), Começo do Século (Galeria Jaqueline Martins, São Paulo, 2019).

Para a indicação no PIPA 2022, Vitória conversou com a equipe da Do Rio Filmes sobre alguns de seus trabalhos e sobre a técnica escolhida para abordar temáticas sociais. Ouça a fala da artista no vídeo abaixo:


Dia 02:

No segundo dia de Ocupação, Vitória Cribb compartilha um de seus trabalhos, o vídeo “Prompt de Comando”, de 2019. No vídeo, a artista utiliza a linguagem de programação para nos fazer refletir sobre as relações cibernéticas, o corpo na era digital e também sobre as heranças da escravidão e as questões raciais no Brasil. Veja o vídeo arte completo abaixo, que integra a coleção Artemidiamuseu no Museu Nacional da Republica desde 2021.

Prompt de Comando, 2019, video-arte, 10′ 47″, Render 3D, animação 3D, simulação 3D 1920×1080 FULL HD


Dia 03:

Todo ano, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversa com os Premiados do PIPA. Este ano, Vitória Cribb foi uma das entrevistadas por Camillo Osorio. A artista fala sobre sua formação em Design, que lhe deu ferramentas para trabalhar como desenvolvedora e criadora de experiências XR para indústrias de tecnologia e entretenimento, e comenta como sua geração, os zennials, se veem dentro do ambiente virtual. Leia a conversa completa abaixo.

Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Vitória Cribb

LCO – A sua formação foi em Design, na ESDI da UERJ. Seu trabalho está sempre nesta composição entre o artístico e o funcional. Como isso foi acontecendo e como você acha que isso se desdobrará com sua maior inserção no circuito de arte?

VC: Acredito que a graduação em Desenho Industrial e o interesse pessoal pelas chamadas “novas mídias” se conectaram organicamente durante o período da graduação. A grade curricular do curso de Design na UERJ, na minha época, habilitava o estudante tanto em Design de Produto quanto em Comunicação Visual – e durante o período de graduação decidi unir o que aprendia de forma teórica e técnica na faculdade com os meus interesses e práticas artísticas pessoais. Acredito que seja por isso que um dos pontos centrais das minhas narrativas digitais seja a reflexão sobre a comunicação online, presente no Ciberespaço, que afeta diretamente a forma que interagimos socialmente fora do espaço digital. De certa forma, os meus curtas metragens existem na intenção de comunicar subjetivamente sobre os sentimentos que advêm dessa socialização em massa no ciberespaço para uma audiência majoritariamente imersa no mundo digital e condicionada por algoritmos de redes sociais, que muitas vezes consome desenfreadamente conteúdos repetitivos nesse espaço.

LCO – É muito impressionante a sofisticação tecnológica de suas obras. Você tem alguma formação em programação? Trabalha com parceiros no desenvolvimento da sua linguagem?

VC: Não tenho formação direta em programação, porém nos últimos cinco anos trabalhei diretamente com programadores no meu trabalho formal (é preciso enfatizar que o cenário artístico brasileiro atual não permite que artistas vivam apenas da sua produção artística autoral, precisando assim atuar em outras áreas similares ou opostas para serem remunerados de maneira justa, no meu caso atuo como designer e criadora de experiências XR para indústrias de tecnologia e entretenimento) – e com isso precisei aprender o básico da linguagem para me comunicar dentro dos projetos com os desenvolvedores e também para desenvolver projetos mais simples para diferentes clientes.

Atualmente, além do meu trabalho artístico pessoal, também atuo como criadora de experiências/filtros em Realidade Aumentada para indústrias de tecnologia, moda e entretenimento e faço parte da Snap Lens Network, rede de criadores e desenvolvedores certificados pela empresa Snap Inc. Nos projetos desenvolvidos para clientes eu preciso não só dirigir criativamente como desenvolver interações e implementações específicas.

Eu trabalho 100% sozinha desde a concepção, escrita de roteiro, criação de personagens e animação CGI do filme e renderização. A parceria ocorre ocasionalmente com artistas sonoros que possuem um trabalho que se alinha com a minha perspectiva artística – a colaboração com artistas sonoros ocorre nos curta metragens “@Ilusão” (2020), com trilha sonora assinada por OLHO, e “VIGILANTE_EXTENDED” (2022), com trilha sonora assinada por Anelena Toku e OLHO. Nos meus primeiros vídeos como “Prompt de Comando” (2019) e nas séries de mini-vídeos looping como “_vigilante 00” eu produzo as trilhas através de captação e edição de som de forma mais experimental.

LCO – Há sempre uma resistência do meio de arte em relação ao universo dos games e à circulação proliferante, sem restrição, em plataformas como Instagram e TikTok. Como você vê estas plataformas: como canal de divulgação ou como dispositivo poético?

VC: Particularmente eu enxergo essas plataformas de redes sociais como um meio de divulgação do meu trabalho, assim como artistas de outras mídias, como Pintura, Desenho e Som, também utilizam em muitos casos. O trabalho criado em mídias digitais não precisa existir e acabar no ciberespaço, pelo contrário, ele pode se fundir a outras estruturas e dialogar com trabalhos de outras mídias. Para mim a resistência maior no Brasil é abraçar essas mídias como formas de expressão e incorporar artistas que experimentam com essa técnica no circuito, há muita experimentação e oportunidade em espaços independentes mas ainda pouco aprofundamento e reconhecimento. Há uma questão importante, na minha perspectiva, em relação ao público que não está familiarizado com artes em mídias digitais ou que se utilizam da eletrônica de forma contemporânea, e muitas vezes o público que acompanha o trabalho de maneira superficial confunde o que é divulgação do trabalho com o trabalho em si, um problema que advém não só do circuito de arte contemporânea mas com hábitos contemporâneos de transformar tudo em consumo e identidade nas redes sociais. Por outro lado, enxergo essas plataformas como dispositivos poéticos em certa medida também, uma vez que a observação das relações interpessoais existentes nessas plataformas serve como inspiração para as narrativas e reflexões abordadas nos meus curta metragens.

LCO – Você há pouco tempo criou um avatar/modelo virtual chamada Ôti, uma topmodel 3D negra que foi premiada por uma agência de modelos virtuais em Londres. Como foi esse projeto e como é essa imbricação tão interessante no seu trabalho (e na sua vida mesmo) da questão racial e da tecnológica?

VC: Essa modelo foi criada para a própria agência, não em formato de premiação, mas em formato de agenciamento dessa modelo para futuros projetos relacionados à moda e entretenimento digital que essa Avatar poderia participar. Ôti segue “agenciada” por essa Agência de modelos virtuais e sigo colaborando com a Mutantboard (agência) em outros projetos e criando outros avatares para editoriais diversos. Esse projeto se alinha mais com o comercial do que com minhas criações pessoaisuma vez que além do meu trabalho autoral como artista trabalho também para outros segmentos como as indústrias de Tecnologia e Entretenimento desenvolvendo diversos projetos conceituais e artísticos. Um bom exemplo desses projetos mais comerciais aconteceu em 2021, onde tive a honra e felicidade de criar uma Avatar 3D digital da Cantora britânica/ jamaicana Mahalia para um editorial de moda digital e impresso. O processo de recriar uma personalidade famosa foi bem desafiador uma vez que a criação dessa avatar implica a imagem pública da própria cantora e a responsabilidade de lidar com o corpo de uma outra pessoa que existe realmente. 

LCO – Como não se deixar capturar pelo fascínio do desenvolvimento tecnológico? Qual o momento em que o trabalho deixa de se apropriar pelas novas tecnologias e passa a ficar a serviço delas? Estes impasses te fazem pensar?

VC: Acredito que a ideia fascinante do desenvolvimento tecnológico acaba sendo mais forte para quem está distante do desenvolvimento de aplicações e programas ou está em um estágio inicial de aproximação da linguagem. Quando você lida com a linguagem diariamente você naturalmente observa e questiona os processos, e toda a imagem abrilhantada pela tecnologia, futuro e automatização ficam mais reais, banalizadas e problemáticas. As trocas com outros desenvolvedores e criadores tecnológicos também é essencial para entender cenários, aplicações e ideologias por trás de determinadas ferramentas tecnológicas lançadas a cada mês. Talvez, o não fascínio tecnológico seja parte de um pensamento geracional também, que ao crescer tão inserido em uma sociedade conectada digitalmente já enxerga o desenvolvimento tecnológico como parte do organismo social, não é novidade, para muitos jovens inclusive é desgastante, chato e repetitivo. Definitivamente, a linha entre apropriação das tecnologias para desenvolvimento de uma linguagem e a propagação das mesmas é muito tênue. De certa forma há uma retroalimentação ao questionar essas mídias digitais e ao mesmo tempo contribuir para o melhoramento da implementação dessas mídias online, porém, acredito que a experimentação e questionamento das próprias escolhas técnicas e artísticas digitais podem contribuir para uma reflexão subjetiva sobre comportamentos automatizados por conta de um ecossistema baseado em algoritmos, fama e digitalização do ser-humano. Nos meus trabalhos busco sempre extrapolar o uso dessas técnicas visuais digitais – associadas à automatização, rapidez e superficialidade – e as inserir em contextos mais lentos, ilustrando textos que existem na reflexão e crítica de um mundo cada vez mais interconectado, fake, e pasteurizado.

LCO – O surgimento dos NFTs te parece um caminho interessante para a comercialização dos trabalhos virtuais ou é apenas uma estratégia comercial para dar liquidez aos investidores com criptomoedas?

VC: Acredito que o surgimento dos NFTs lá no início (antes do boom no mundo das artes tradicionais) foi importante, principalmente, para artistas que já experimentavam mídias digitais e de certa forma eram ignorados pelo mercado tradicional de arte a começar a monetizar e encontrar colecionadores interessados em seus trabalhos, formando comunidades e redes de apoio. Por outro lado, nos últimos anos a ferramenta que poderia ajudar artistas e criadores independentes virou uma ferramenta para grandes projetos e marcas, alguns muito interessantes do meu ponto de vista, que existem digitalmente como produtos e possuem algum marketing extensivo ou até artistas que ganham alguma notoriedade em determinada comunidade. Além disso, é importante frisar que assim como o mercado tradicional de arte contemporânea o mercado de NFTs possui as mesmas problemáticas em relação a vendas x gênero x etnia e acesso, por exemplo. 

LCO – A sua geração respira simultaneamente oxigênio e virtualidade, vive em um mundo cujas extensões tecnológicas são cada vez maiores – inteligência artificial, aprendizado das máquinas, algoritmos facilitadores e diabólicos, bolhas semânticas, estridência política, esvaziamento retórico, interdição do diálogo e por aí vai. Como manter-se minimamente crítica diante deste cenário sem cair na tecnofobia?

VC: Na minha perspectiva, a minha geração de um modo geral é bem crítica aos movimentos tecnológicos e sociais que se apresentam mas também não se priva de experimentar e entender a que propósito novas tecnologias de comunicação se propõem. E assim como qualquer mídia, para entender o que é ruim, maléfico e até mesmo o que não é compatível com o seu gosto pessoal é preciso estar aberto para entender minimamente o que existe do outro lado. Dentro da minha prática artística posso citar o filme “@ilusão” (2020) que parte de uma reflexão crítica à existência nas redes sociais, conteúdos repetitivos e algoritmos que reforçam comportamentos racistas, sexistas e classistas – para realizar esse filme em 2020 (no auge do isolamento social no Brasil) foi necessário estar presente nas redes sociais, observar, postar e vivenciar essa saturação digital para então criar o roteiro do filme. A própria residência onde realizei o filme aconteceu online, onde todas as trocas e decisões eram tomadas através da internet. Esse evento me remete diretamente à sua pergunta sobre as redes sociais como dispositivos poéticos. No meu caso, acredito que elas ativam justamente a poética narrativa dos meus trabalhos e não necessariamente funcionam como dispositivos de exibição dos trabalhos, por exemplo. Acredito que para evitarmos a tecnofobia na Arte Contemporânea Brasileira seja importante nos perguntarmos sobre o porquê de uma sociedade tão fiel à internet – que permite namoros e encontros virtuais, que tem sua política atravessada diretamente por opiniões verdadeiras e falsas distribuídas através de likes na internet e que naturaliza o estabelecimento de relações interpessoais íntimas digitais –  ser tão resistente às poéticas e experimentações artísticas, sejam elas divulgadas ou criativamente conectadas à digitalidade regente na contemporaneidade.


Dia 04:

No quarto dia de Ocupação, Vitória Cribb compartilha com o público virtual do PIPA um vídeo exclusivo, gravado especialmente para a ação semanal. No vídeo, a artista fala sobre os trabalhos que está expondo no Paço Imperial, na Exposição dos Premiados do PIPA 2022, e sobre a questão da imagem na era digital. Com humor e ironia, Cribb tensiona os limites entre o corpo real e o avatar virtual.


Dia 05:

Um dos trabalhos que Vitória Cribb selecionou para a Ocupação é o vídeo “@ilusão”, de 2020, que está sendo exibido atualmente na Exposição dos Premiados do PIPA 2022, no Paço Imperial. Nesse trabalho, Cribb reflete sobre a repetição imagética e o estado de ânsia, estresse, cansaço e solidão do contemporâneo. A artista analisa o modo de se relacionar no meio digital, entre humano e máquina, marcado pelos algoritmos e pelo engajamento constante, que nos leva a uma fadiga e a um sentimento melancólico. Além disso, ela acrescenta no vídeo a repetição das violências vividas por pessoas negras no Brasil e no mundo e dedica seu trabalho para “aqueles que não puderam apertar o shuffle” do looping de racismo estrutural. 

Para a exposição, Cribb exibe o vídeo em duas TVs, com a ideia de “incorporar um ambiente contemporâneo digital sob uma arquitetura colonial marcada pela violência e exploração de grupos marginalizados”.

Veja o vídeo completo abaixo:


Dia 06:

Para a Premiação no PIPA 2022, Cribb solicitou um texto critico de Raphael Fonseca para integrar o catalogo desta edição. Leia o texto na integra:

Não devemos buscar respostas em seus olhos
Por Raphael Fonseca

Atualmente, muitos são os lugares por onde um “jovem artista” pode se formar, experimentar e criar redes de afeto no Rio de Janeiro. Se olharmos para o que convencionamos chamar de geração zennial – ou seja, artistas nascidos aproximadamente entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2010 –, veremos que muitas das pessoas que, pouco a pouco, estão em processo de institucionalização no sistema das artes visuais, estudaram no Instituto de Artes da UERJ ou na Escola de Belas-Artes da UFRJ. A Escola de Artes Visuais do Parque Lage também desempenha um papel essencial – especialmente nos últimos dez anos, quando foram iniciados programas gratuitos que possibilitaram uma crescente (e sempre tensa) deselitização intrínseca ao Jardim Botânico e à Zona Sul da cidade.

É interessante observar esse panorama em relação à biografia e formação de Vitória Cribb. Nascida e criada no bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro – região comumente chamada simplesmente por “subúrbio” por parte da população carioca -, a artista não vivenciou nenhuma dessas instituições por onde passou parte da jovem geração de artistas periféricos cariocas. Em sua trajetória há a presença da universidade pública, mas pelo campo do design; assim como artistas de diferentes gerações como Ana Cláudia Almeida, Sofia Caesar, Fernanda Gomes e Walter Carvalho, Vitória Cribb estudou na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, referência nacional para o campo.

Sua pesquisa como artista visual, portanto, tem início no design e em seu interesse por uma cultura visual semelhante àquela encontrada nos videogames e ambientes virtuais tridimensionais. The Sims, Second life e diversos open world games (“jogos de mundo aberto”) faziam mais parte de sua rotina do que as discussões em torno dos cânones eurocêntricos histórico-artísticos em processo de revisão e desconstrução como encontrado nos espaços acadêmicos dedicados às artes visuais. Este lugar de formação me dá a impressão – especialmente depois de conviver e trabalhar com a artista – de que a sua pesquisa como artista visual é dotada de uma peculiar liberdade de experimentação. Longe de responder a quaisquer agendas que, por vezes, se apresentam como desejos de um grupo coeso de artistas visuais, à Vitória Cribb sempre interessou trabalhar em seu próprio ritmo, de acordo com seus anseios existenciais e com as ferramentas que tem em suas mãos: a escrita, sua voz, a produção de som e a modelagem de figuras virtuais tridimensionais.

“Prompt de comando”, seu primeiro trabalho audiovisual, de 2019, nos atesta o seu interesse pela produção textual. Jogando com um interpretador de linha de comando – vintage para aqueles que acompanharam edição a edição a história do sistema operacional Windows, mas extremamente cotidiano para programadores -, Cribb escreve e deleta perante os nossos olhos. Nas primeiras linhas, ela afirma: “Meu corpo sempre foi virtual, intocável, / não amado e posto de curiosidade”. Nos versos seguintes, as mãos que digitam esse texto titubeiam e mudam rapidamente uma palavra. Elas diziam “O fascínio e o medo pautavam a relação / éramos corpos negros na era do mundo real”, quando, rapidamente, a palavra “negros” é apagada e substituída por “digitais”.

Tratando-se de uma artista negra – inclusive, convém lembrar que a artista é brasileira por parte materna e haitiana por parte paterna -, talvez pudesse se esperar que a produção de Cribb se delimitasse de forma explícita em uma discussão sobre sua negritude, seu lugar de fala e suas relações com a noção de periferia. Longe de ser avessa a essas discussões, esse trocar de palavras que “Prompt de comando” traz é exemplar da forma tênue como a artista opta por lidar com esses tópicos. Basta lermos o texto apresentado na íntegra para podermos associá-lo a uma reflexão sobre o racismo, o exotismo e a noção de exclusão – qual o lugar dos corpos negros não apenas nas hierarquias sociais cotidianas que convencionamos de encarar como o “real”, mas também nas imagens e narrativas geradas por computador? A quais navios a artista se refere quando diz “tudo começou quando entrei no navio e / comecei a navegar. / por ingenuidade deixei minha alma. / não era venda, era escambo.”? As respostas são dolorosas e, ao mesmo tempo, felizmente, nos convidam a múltiplas interpretações.

Jogando com a edição de som das teclas e sons de erro comumente escutados em computadores, a artista intercala o seu texto com imagens de uma figura feminina digital – uma avatar – que tenta sair de uma tela de computador. Com pele preta e cabelos brancos, se trata de um dos primeiros experimentos de Cribb com a presença de avatares em seu trabalho, algo que será desenvolvido e mesmo aperfeiçoado quanto à técnica posteriormente, como em “@Ilusão”. Neste outro trabalho, de 2020, feito no ápice de todas as dúvidas existenciais, científicas, sociais e econômicas que a pandemia do COVID-19 trazia ao mundo, o texto digitado é substituído pela voz da própria artista que, em uma edição de som que cria um efeito semelhante à textura dos áudios tão compartilhados no Brasil via Whatsapp, reflete todo o tempo sobre as incertezas que nos acometiam – e da qual sofreremos as consequências por tempo indeterminado.

Assim como em uma aula de anatomia, as avatares negras que aparecem neste vídeo estão a todo tempo emulando emoções e mostrando um inventário de poses que a modelagem digital pode trazer. Em dado momento, um rosto se transforma em outros perante os nossos olhos – a boca se torna mais grossa, as bochechas mudam de forma. Como dito de maneira indireta pelo texto da artista, o vídeo dialoga com o perverso mundo do engajamento, do loop e das formas como nossos corpos vão se adaptando e desejando o flerte ininterrupto com o algoritmo.

Não é coincidência que no mesmo ano a artista tenha finalizado o texto “Espontaneidade programada” – publicado em 2022 – acerca justamente dessa relação dúbia entre a sedução e o aprisionamento articulados pelas ficções da internet, das redes sociais e dos nossos muitos eus. Nesta publicação, logo após citar a coincidência do algoritmo ter sugerido a música “Technologic”, do Daft Punk, a autora listará verbos que, inevitavelmente, nos remeterão aos versos da própria música. São esses verbos no infinitivo que são espiralados como a dupla hélice do DNA, depois transformados em oceano e, por fim, em telas de projeção dentro de “@Ilusão”. Novamente, a relação da artista com uma escrita que todo o tempo joga com a linguagem de prompt – com seus underlines, barras, parênteses, chaves e símbolos linguísticos – se faz presente.

Recentemente, neste ano de 2022, a artista estreou um trabalho que aprofunda seu interesse pela noção de narração, ficção e animação digital. “VIGILANTE_EXTENDED” dá prosseguimento ao seu interesse por avatares chamadas de “Vigilantes” – figuras femininas permeadas por muitos olhos e orelhas. Se durante a pandemia ela desenvolveu NFTs onde essas figuras eram vistas por diversos ângulos em movimento, para este trabalho essa série de avatares cresce e se complexifica anatomicamente e no que diz respeito ao uso da luz.

A ficção criada por Vitória Cribb roça a noção do “olho que tudo vê” – passível de ser relacionada com desde os olhos turcos (Nazar) e a figura de Hórus ao célebre livro “Vigiar e punir” de Michel Foucault e o fenômeno do Big Brother Brasil. As Vigilantes são figuras que estão continuamente observando as nossas ações no ciberespaço. Assim como sereias, elas nos deixam ser seduzidos pelos reflexos nos espelhos pretos que são a matéria de nossos computadores; assim como Narciso, nos apaixonamos pelas nossas próprias imagens e nos afogamos. De forma semelhante, as luzes que piscam constantemente ao final do vídeo também nos convidam à vertigem, endossada por uma trilha sonora feita de Anelena Toku e OLHO, além da edição de som de Ramon Silva, tornando esse vídeo da artista aquele que mais convida à imersão.

Chama a minha atenção a maneira como Cribb tem experimentado formas de sair das fronteiras dos monitores e das projeções. Tanto para sua exposição no Denver Art Museum, quanto para a sua exposição relativa ao Prêmio PIPA, ela selecionou alguns frames de seus vídeos – ou seja, imagens modeladas digitalmente e com altíssima definição – e os ampliou em diálogo com a arquitetura. Mais do que isso, no Paço Imperial, ela também incluiu cópias de seu texto “Espontaneidade programada” para serem levadas. É interessante notar como, de pouco a pouco, somos tomados não apenas por suas imagens em movimento, mas pela escala agigantada de suas personagens – transformando o nosso corpo, enquanto espectadores, em algo minúsculo. Além disso, somos convidados a ler em voz alta e solitariamente as suas palavras. Suas melancólicas reflexões sobre a “insanidade virtual”, o excesso, o mise-en-âbime e a solidão de suas personagens pode, por fim, habitar as nossas bocas, corpos e existencialismos.

Há uma frase presente em “VIGILANTE_EXTENDED” que parece resumir a recente, mas já experimental e ressonante trajetória da artista: “Não devemos buscar respostas em seus olhos”. Não aconselho ao público mergulhar em seu oceano de verbos no infinitivo buscando respostas imediatas e panfletárias sobre tantas questões que afligem não apenas o mundo das e-girls e e-boys. A artista parece mais interessada em fazer perguntas, provocar pequenas confusões e nos mostrar que talvez seja impossível tentarmos escapar da “Máquina”.

Enquanto constatamos a impossibilidade de nos despedir de suas artimanhas e desejar encontros não programados, talvez valha a pequena seguir um dos conselhos de Vitória Cribb: acertemos a nossa postura.

 

 


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