Bem-vindes à Ocupação dos Artistas Premiados do PIPA 2022! Até o dia 29 de outubro, os premiados desta 13a edição compartilham com o público virtual do Prêmio PIPA vídeos, fotos e textos – alguns exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 17 a 22 de outubro, UÝRA (veja a página da artista aqui no site) exibe alguns trabalhos recentes e fala sobre sua produção digital.
Nesta edição, o Prêmio PIPA reforça o formato adotado desde 2021 de receber indicações de trajetórias recentes. Este ano, o Prêmio foi direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há 15 anos. O foco do PIPA neste momento é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada.
O material abaixo, publicado diariamente, está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas Instagram, Twitter e Facebook.
E lembre-se que os Artistas Premiados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro até o dia 29 de outubro. Será um prazer te receber por lá!
Dia 01:
Santarém, PA, 1991
Vive e trabalha em Manaus, AM
Indicada ao Prêmio PIPA 2022
Emerson, 30 anos, é indígena e dois espíritos (trans). Formada em Biologia, com mestrado em Ecologia, atua como artista visual, arte educadora e pesquisadora. Habita Manaus (AM), território industrial no meio da Floresta, onde se transforma para viver Uýra, uma Árvore que Anda. Tendo o corpo como suporte, narra histórias de diferentes Naturezas via fotoperformances e performance. A partir da paisagem Cidade-Floresta, se interessa pelos sistemas vivos e suas violações, e memória e diásporas indígenas. Integrou o Salão Arte Pará (2019), a exposição pelo Prêmio EDP das Artes, Tomie Ohtake (2020), a da 34a Bienal de São Paulo (2021), e exposições em instituições na Áustria, Itália, São Francisco, Holanda, França e em 2022 participará da Manisfesta! (Bienal nômade da Europa), e apresentará duas individuais, no Museu de Arte do Rio- MAR e no Museu de Arte Moderna – MAM Rio.
Para a indicação no PIPA 2022, a artista conversou com a equipe da Do Rio Filmes sobre alguns de seus trabalhos em performance. Ouça a fala da artista no vídeo abaixo:
Dia 02:
No segundo dia de Ocupação, Uýra seleciona imagens da série “Dossel”, que está em cartaz atualmente na Exposição dos Premiados do PIPA 2022, no Paço Imperial.
O trabalho consiste em um conjunto de fotografias impressas em tecido com imagens do Dossel, a parte da floresta que corresponde à copa das árvores. Nessa parte alta da mata, segundo Uyra, mora a maior parte dos animais da floresta. Por isso, ela decide simular o Dossel na galeria do Paço Imperial, para nos mostrar uma fauna pouco vista/conhecida e com isso “contrapor as narrativas coloniais sobre história natural da fauna amazônica”.
Veja abaixo imagens da série, em que ela pintou sobre as fotografias silhuetas de animais que podem ser imaginados no topo das árvores.
Dia 03:
Todo ano, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversa com os Premiados do PIPA. Este ano, Uýra foi uma das entrevistadas por Camillo Osorio. Ela falou sobre o percurso que mistura saberes de infância, na natureza amazônica, com a formação acadêmica em Biologia e Ecologia, além de nos ajudar a imaginar outros cenários pro mundo que não este antropocêntrico em que vivemos. Uýra também cita alguns de seus trabalhos na entrevista. Leia a conversa completa abaixo.
LCO – Uýra, como foi sua formação de artista e fotógrafa? Ela se dá junto a sua formação como bióloga, ambientalista e arte-educadora? Como foi esse processo?
Uýra – Nada que é vivo neste mundo habita isolado – e isso independe do tempo e do espaço. Mesmo sob radical solidão dentro de um quarto, o vento sopra e nos traz memórias.
Os órgãos de uma célula são para ela o que os seres vivos e fenômenos naturais são para o planeta: indissociáveis, codependentes e se afetam. Gosto de pensar as fases de nossas vidas humanas desta maneira, interligadas por passos/épocas que nos constroem; onde cada caminho, seja decidido ou acidental, no contínuo entre bom e ruim, influencia no que fazemos e na forma que pensamos o mundo.
Decidi não mais fatiar a minha vida: dizendo que ano comecei a ser artista, qual ano me tornei bióloga e educadora. Se em 2013 conquistei meu diploma de bióloga, a vida eu já estudava desde os 4 anos vendo uma Preguiça atravessar nadando entre árvores (aquilo foi surpreendente). Em 2016 sou titulada Mestre em Ecologia da Amazônia – a minha casa, onde mergulhada, cresci sentindo os pulsos de inundação. Se estas formações ocorrem, é porque elas vêm de algum lugar, e isso é a Vida. O conhecimento acadêmico tem tanto valor quanto o tradicional/vivencial, mas o primeiro ignora o segundo, embora nele tenha sua base. Formam um belo par, mas estes tempos têm botado ambos para brigar. Com minha arte e trajetória, insisto que façam as pazes.
Como indígena sou também cientista e via Arte conto histórias naturais. Já contei muitas delas em artigos científicos, para estrangeiros – muito número e razão. Aprendi que não me bastavam. Hoje reúno estes códigos e conto também histórias para os meus, via a emoção do imaginar possibilitada pela Arte, usando tintas e folhas como flechas. A mira? Os imaginários dos mundos, e do meu – em muito adoecidos. O mundo da razão é limitado e autoritário, mas vive equivocado. Seu primo, o mundo das certezas, esqueceu que as dúvidas lhe fazem bem. Já o mundo da emoção está calado, no vazio do pouco valor. Como contar a vida sem emoção? Como pedir “ei, dê valor às florestas”, sem fazer sentir este valor? E quem me ensinou isso foi a Educação, navegando para criar arte com juventudes das beiras dos rios Japurá, Amanã, Negro, Solimões, Mariepauá, Aripuanã e muitos outros. Lugares onde a Arte possível, com seu ímpar valor, é a que se constrói na brincadeira, com pés no chão, costurando o material (folhas, sementes, terra,…) e o imaterial (histórias, crenças, encantados,…) do próprio quintal de Vida.
Naquele 2016 também me reconhecia o que já era, artista – sendo retroalimentada pelas experiências em Arte Educação. Segui escrevendo sobre as coisas vivas, mas me transformando nelas também. Não era mais pesquisadora versus objeto. Era fusão. Um estudo de cores, comportamentos, cantos e histórias pintados/colados no corpo.
Uýra não é só da Mata, habita e é também a cidade. A partir de 2014 aprendo muito com movimentos de gentes, que como eu, são excluídas na ‘grande’ sociedade. Passo a efetivamente enxergar no meu bairro e na nação Brasil as violências, apagamentos, mentiras e desigualdades – todas chagas do colonialismo europeu. Junto a isso, também me fortaleço com as histórias de ressuscitamentos e resistências por todas as partes indígenas, negras, LGTBQI+, nortistas e nordestinas do Brasil. A partir daí, além de cruzar conhecimentos, buscava nas histórias dos bichos e plantas, inspirações pra gente. O mundo estava e continua antropocêntrico demais, regido por um pequeno e soberbo grupo de humanos: corporações de homens brancos, cisgêneros, heterossexuais, fingidos e caretas. Infelizmente a gente já viu no que deu o planeta. Desse contexto, passam a emergir dos meus trabalhos metáforas que reúnem os mundos de humanos mais diversos e de outras criaturas, ressignificando também as camadas que os homens aí de acima criaram para mim: racial (que vem primeiro), social, territorial, sexual e espiritual – tudo nessa grande e provocadora paisagem cidade-floresta. Uýra, que do tupi antigo significa ‘bicho que voa’, é planta também. É afilhada da Paxiubinha (‘a árvore que Anda’) – por isso também vem andando pelos mundões e costurando todas as fases de minha Vida. Ela é cada parte porque é o todo. É a criança, a bióloga, a artista, a educadora – enfim…é eu.
LCO – Todos sabemos o quão difícil tem sido estes últimos anos viver neste contexto amazônico, uma vez que a voracidade extrativista está descontrolada. Neste aspecto, manter a atuação como ecologista e como arte-educadora parece-me crucial. No entanto, sua obra, especialmente depois de sua presença na Bienal e agora com a premiação no PIPA tem conseguido muita visibilidade. Como você vê este momento e esta resistência aí da Amazônia?
Uýra – Eu poderia me envaidecer por estar acessando Bienais e recebendo premiações, como a do PIPA – mas não posso, nem quero. Não caminho só, minha alegria só faz sentido no plural. O que esses lugares me despertam são debates. “Cadê meus parentes?”, “Onde estão os artistas do Norte?”, “Por que só isso de gente da periferia?”(quando há), “Não convidaram as bichas, as trans e as sapatão?”. São questões que atravessam nesses recentes acessos – que não são os ‘privilégios’ antigos da hegemonia.
Acredito que só com um diálogo sincero, e no respeito, a gente constrói outros mundos. Minhas obras são um convite ao diálogo: apresenta as violências, belezas e lutas do meu território, para que o Brasil e os mundos conheçam de verdade as Amazônias. Há séculos os brancos adentram em nossos territórios e vidas, sem querer diálogo algum: só roubando, matando, escravizando ou apagando. Eu poderia não querer diálogos, como já não quis. Eu poderia apenas querer vingança, como já quis. Insisto no diálogo, não para uma possível pacificação destes mundos. Eles já têm a violência e desesperança profundamente instaladas em suas estruturas. O céu já está tocando as nossas cabeças, enquanto corporações maquiam a crise climática e as nações dormem à noite achando viver numa democracia racial. É de outro mundo que precisamos, e ele não pode ter a gestão do mesmo pessoal de sempre. A Arte nos ajuda a imaginar – e isso é poderosíssimo.
Pensemos: o mundo tem mais orelhas que bocas. Mesmo assim, nele só se fala, fala e fala. Esquecemos dos ouvidos, mesmo eles grudados em nós. E quem fala, digo: tem voz a partir dos locais de poder, é o já mencionado pequeno grupo de bocas (as do patriarcado branco e careta). Então é preciso que outras bocas humanas falem, e estas são as indígenas, pretas, travestis, da Amazônia e as dos mundões de gentes, cujas experiências podem ser base para outro mundo. Mas não é só de gente que é feito o planeta – e vimos que só ouvir (parte d) a espécie, também gerou irreversíveis crises políticas, ambientais, socioculturais e espirituais. É preciso ouvir mais para além de nós. Você já aprendeu algo com outro animal? Já se percebeu diferente ao estar com uma árvore? Pois é, as outras criaturas são maioria no mundo, vivem suas próprias vidas, cada uma ao seu jeito único, e têm muito a nos ensinar: seja por um contato que nos faz lembrar de nós, seja pela experiência que nos permite imaginar que outros mundos podemos ser. Na minha série Elementar, os ensaios contam algumas destas histórias: plantas aquáticas, que nos momentos difíceis da cheia do rio, vão dormir e ficam ali descansando debaixo d’água por 4/5 meses – este ensaio “A Flora D’Água”, mostra plantas que nos ensinam o repouso, o retiro espiritual necessário; Já noutro ensaio, o “Rio Negro”, o mistério desse Rio é reivindicado, o direito do rio de não ser explorado é lembrado com afeto – essa emoção que é força frente ao extrativismo do mundo. Já em “A Mata Te Se Come”, eu e a floresta falamos de alimento, de como árvores da Amazônia crescem exuberantes e ancestrais sobre solos com poucos nutrientes – elas geram tanta matéria orgânica, que tudo isso se decompõe aos seus pés e são reabsorvidos por elas, por toda a comunidade – buscam forças em si próprias para continuar a viver, se retroalimentam. Quantas vezes nós humanos não precisamos fazer isso? Uma aldeia ou quilombo, por exemplo, existe e se mantêm porque se alimenta de si. Definitivamente um outro rumo, um outro mundo, só será possível quando ouvirmos o que tem a nos dizer os que têm outras vozes. Precisamos das Oportunidades.
Esse negócio de “descolonizar” ou “contracolonizar”, não é pra mim não. Demora muito e cansa demais. É muito mais potente, belo e neste tempo possível, o cultivo e reflorestamento dos nossos mundos. As retomadas e o fortalecimento de nossa autoestima, de nossos saberes e valores, entre e para com os nossos, já mora em nosso quintal, por ser ancestral.
Nós indígenas e outras gentes da Amazônia, precisamos de diálogos com os mundões, para garantir a proteção das florestas e ecologias onde habitamos; precisamos de diálogo para nos contar da forma digna, em primeira pessoa, para além dos estereótipos racistas que existem sobre nós; é por meio dos diálogos que também acessamos estes espaços de valor econômico e simbólico, de onde historicamente somos excluídes; São nesses diálogos, que provocamos curas antigas e profundamente presentes no agora, onde redemarcamos nossos saberes, culturas e valores. Carregamos infinitas vozes, muitas que nem são de gente.
Um material de suporte que recomendo é esta entrevista no Quarta Parede, concedida ao artista Elilson:
https://4parede.com/16-urgencias-do-agora-despertar-nos-as-florestas-que-dormem-embaixo-das-ruas/
No quarto dia de Ocupação, Uyra compartiha o trailer do documentário que estreou no dia 15 de outubro, “UÝRA – A Retomada da Floresta”, dirigido por Juliana Curi. No filme, a artista fala sobre sua relação com Manaus e também sobre a criação da Uyra, cujo atravessamento pela natureza e por questões políticas a levaram a narrar histórias da floresta via fotoperformances e performance.
Veja o trailer abaixo. Para saber mais sobre o documentário, acesse este link.
Uýra – A Retomada da Floresta
Uýra, uma artista trans indígena, viaja pela floresta amazônica em uma jornada de autodescoberta usando arte performática e mensagens ancestrais para ensinar jovens indígenas e enfrentar o racismo estrutural e a transfobia no Brasil.
Direção: Juliana Curi
Produção: João Henrique Kurtz, Lívia Cheibub, Martina Sönksen, Juliana Curi
Co-Produção: Uýra Sodoma
Roteiro: Martina Sönksen, Juliana Curi, Uýra Sodoma
Direção de Fotografia: Thiago Moraes
Direção de Arte: Francisco Ricardo Lima Caetano
Montagem: Lívia Cheibub, Renan Cipriano, Lucas Camargo de Barros
Trilha Sonora Original: Nascuy Linares
Desenho de Som: C-AFROBRASIL, INPUT | Arte Sonora
Design gráfico e Ilustrações: Ana Paula Mathias
Voz: Zahy Guajajara
Brasil + EUA | 72min
Para o crédito completo, visite o site: https://doc-uyra.com/
A principal técnica de trabalho de Uýra, artista visual, arte educadora e pesquisadora, é a performance. Nas fotografias, Uýra, a Árvore que Anda, usa o corpo como suporte para transmitir histórias e pensamentos da floresta amazônica.
- “Espíritos de Tudo Que Vive”, 2019, foto de Selma Maia
- Série Elementar “A Mata Te Se Come”, 2019, foto de Lisa Hermes
- Série Elementar “Lama”, 2017, foto de Keila Serruya
- “Uýra Sodoma, Comer de Si Mesma e Fogo”, 2018, foto de Matheus Belém
- Série Mil Quase Mortos “Boiúna”, 2019, foto de Matheus Belém
- Série Mil Quase Mortos “Boiúna”, 2019, foto de Matheus Belém
- Série A Última Floresta, “Ensaio Terra Pelada”, 2019, foto de Matheus Belém
- Série A Última Floresta, “Ensaio Terra Pelada”, 2019, foto de Matheus Belém
Dia 06:
Para a Premiação no PIPA 2022, Uýra solicitou um texto crítico de Keila Sankofa para integrar o catálogo desta edição. Leia o texto na integra:
De tudo o que é sagrado, de tudo o que se move e respira, a floresta é o bem maior que não pode se defender, nem falar, nem andar. Mas nela existem pessoas que, conduzidas por sua espiritualidade, por sua ancestralidade, coletivam essas vozes e propagam a urgência que a floresta grita.. É assim que vejo Uyra Sodoma, uma voz insurgente na Amazônia. Quando penso Amazônia não estou citando aquela tradicional imagem do satélite, da floresta verde e dos rios entrelaçados, estou falando também do concreto, da encruzilhada entre o verde vivo e a ponte de madeira nos becos molhados.
Devo confessar que estruturar esse texto me trouxe inquietude, pois pontuar questões analíticas sobre o trabalho de Uyra, ou sobre o que sinto quando resisto com ela, está para além da observação participante. Percebo inúmeras similaridades entre minha existência e a de Emerson Uyra, como prefiro chamar; e elas são enraizadas no reconhecimento da rua, da periferia dessa Amazônia que pouca gente tá acostumada a ver, sem esquecer da grandiosidade das águas, do silêncio dos mais velhos, da esperança das crianças.
Compreender nossa territorialidade a partir da produção de arte é o âmago da resistência, é uma questão muito cara para nós que sempre estivemos na escassez. Todo ser preto e indígena, reconhecendo-se como mantenedor da tecnologia ancestral, que sustenta nossas vidas, que não deixa o céu cair, como nos escureceu Kopenawa, é um agente ativo nesse tecido que é a existência diária.
Manaus é uma cidade das águas, com uma população de mais de dois milhões de pessoas, onde sua grande maioria descende de povos originários que raramente estão em retomada, por não conhecerem sua história, ou por vergonha. Por aqui há muitos becos, vielas, melanina, comida boa, sol quente, mas também existe muita perversidade colonial, o silenciamento é um deles, que apaga não só as pessoas e suas culturas, mas entorpece a realidade sobre seu passado recente.
Essa descontinuidade que perdura há séculos, bate de frente com a produção de artistas como Uyra, que atravessados pela necessidade de firmar resistência, vem nos mostrar que o olhar íntimo sobre a realidade é a semente da cura, plantada hoje com o intuito de germinar amanhã. Sob essa perspectiva, para além da performance, a propagação e fortalecimento da estima da juventude ribeirinha e indígena, através do trabalho de Arte-Educação, mostra que além da árvore que anda é também uma sábia anciã, que às margens do rio se coloca a narrar a origem do mundo, dos sonhos, do fogo.
“As periferias da Amazônia são como aldeias”, já escutei essa frase de Emerson, e ao escutá-la, ouço sua voz, sinto seus olhos e uma legião de força que atravessam Uyra. Reconheço uma reincorporação de entidades, bichos e plantas, materializados como existência, não como representação. Esse ser que surgiu na cidade e na floresta, é bicho e planta, é gente. Emerson empresta seu corpo para coabitar dezenas de existências. Desse modo, facilmente se percebe que Uyra é uma encantada que dança entre os muitos mundos.
Para além da sua trajetória na arte, Emerson Uyra, sendo híbrido em si mesmo, estudou lagartos e sapos. Para muitos são animais de sangue frio, mas na verdade têm a capacidade de adaptar-se à temperatura do ambiente. Adaptar-se para existir, utilizando a memória daquela energia já vivenciada. Vejo isso nos recortes de Uyra, seja em foto, movimento ou na expressividade para com o público, sempre baseando-se na verdade sentida, percebida, naquela que lhe foi repassada.
Há pequenas fissuras nas paredes de concreto da nossa Manaus, e ela reconhece essas brechas como possibilidades de fertilizar as experiências. Seu desejo de existir faz essa árvore frondosa se movimentar pelo mundo, levando consigo o sangue que corre no asfalto. Nascer e renascer em muitas formas é algo que Uyra sabe fazer perfeitamente, assim como nenhum ser humano é idêntico ao outro, nenhuma planta e animal será, e ela, toma a forma que precisar para questionar as leituras sobre o que é a natureza e o que estamos fazendo com o futuro.
Uyra carrega consigo a sensibilidade de narrar a ampla existência da fauna, flora e as formas que esses seres carregam em si. O corpo que é acompanhado por ancestrais, encantados, inkisses, orixás e diversos espíritos, reconhece em Uyra uma voz, que se permite para que essa passagem possa existir modificando onde pisa.
A reflexão é ponto de partida, mas para que isso aconteça com exatidão se torna necessário o diálogo, a escuta sensível de todas as criaturas. Minha memória afetiva transborda de alegria quando aprecio os questionamentos de Uyra diante da ciência oficial e seu tratar com esses seres. Para se transformar é determinante reconhecer os espaços que se deve e precisa pisar, seja devagar, em silêncio, ou com força, forçando para arrombar. Uyra sabe disso e muitas vezes se molda em erva daninha para ocupar e retomar, e para além disso, fortalece as suas, para que tenham a mesma consciência de retomada.
É dessa forma que teço palavras pra expressar o impacto que o trabalho de Emerson causa não somente em mim, mas em toda uma geração, pois nunca estamos sós, sempre estamos de bonde, seja no beco, na balada, no quilombo ou na aldeia. Acredito que Uyra além de uma imagem, é um som, uma voz que nos envolve, que propaga mensagens, e que anda por onde precisar.