“Da série: Decantações, fervuras e temperamentos”, 2022, água de feijão preto e açafrão sobre papel, 35 x 44 cm

Ocupação dos Artistas Premiados do PIPA 2022: Josi

Bem-vindes à Ocupação dos Artistas Premiados do PIPA 2022! Até o dia 29 de outubro, os premiados desta 13a edição compartilham com o público virtual do Prêmio PIPA vídeos, fotos e textos – alguns exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 10 a 15 de outubro, Josi (veja a página da artista aqui no site) exibe alguns trabalhos recentes e fala sobre sua produção digital.

Nesta edição, o Prêmio PIPA reforça o formato adotado desde 2021 de receber indicações de trajetórias recentes. Este ano, o Prêmio foi direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há 15 anos. O foco do PIPA neste momento é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada.

O material abaixo, publicado diariamente, está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas InstagramTwitter e Facebook.

E lembre-se que os Artistas Premiados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro até o dia 29 de outubro. Será um prazer te receber por lá!


Dia 01:

Itamarandiba, MG, 1983
Vive e trabalha em Belo Horizonte, MG

Indicada ao Prêmio PIPA 2022

Josi viveu a infância em Carbonita-MG, no Vale do Jequitinhonha. De lá, leva poeira de pequi, mato torcido e breu pingado de rezas. A família saiu de lá para Caeté, região metropolitana de Belo Horizonte e, do ir e vir diário dos trabalhos, guardou os desenhos. Formou-se em Letras pela UFMG, virou professora e falou tantas vezes que “ocupar qualquer palco era direito de todas as pessoas” que acabou ouvindo. Foi para a graduação em Artes Plásticas na Escola Guignard-UEMG e está erguendo fervura de juntar-se inteira, a partir de um trançar de saberes ouvidos, testemunhados ou que vão inscritos na musculatura das suas mãos: as artesanias várias, pintura, lavação de roupa, o fiar, a escrita, desenho, a cozinha, a cerâmica… Com esses treinamentos vários vai desfiando e tecendo as receitas de ocupar tempos e espaços no mover de suas subjetividades.

Para a indicação no PIPA 2022, Josi conversou com a equipe da Do Rio Filmes sobre alguns de seus trabalhos e sobre a técnica original que desenvolve em suas pinturas. Ouça a fala da artista no vídeo abaixo:


Dia 02:

No segundo dia de Ocupação, Josi selecionou a série “Decantações, fervuras e temperamentos”, desenvolvida entre 2021 e 2022. Nessa série, Josi utiliza água de feijão preto para pintar sobre o papel, trazendo uma técnica original para seu trabalho.

Com os recursos dos quais se apropria, Josi nos lembra a realidade em que vivem muitas famílias do Vale do Jequitinhonha, em MG, onde ela nasceu. Em pequenas cidades e em classes sociais mais desfavorecidas, é comum preparar as meninas para o trabalho doméstico, enxergando nele uma das principais possibilidades de sustento e de futuro.

Josi aprendeu a limpar, cozinhar, engomar, costurar e faxinar mas trouxe os ensinamentos da artesania para suas obras. 

Veja a séria completa abaixo:


Dia 03:

Todo ano, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversa com os Premiados do PIPA. Este ano, Josi foi uma das entrevistadas por Camillo Osorio. Ela falou sobre a infância no Vale do Jequitinhonha, a formação acadêmica em Letras e em Artes e sobre as técnicas de artesanias varias que desenvolveu em seu trabalho. Leia a conversa completa abaixo.

1 – Josi, percebo que você enlaça uma formação acadêmica, primeiro em Letras (UFMG) e depois em Artes (Escola Guignard), com suas vivências pessoais e familiares, crescida no Vale do Jequitinhonha, região da qual você diz carregar consigo a poeira de pequi, mato torcido e breu pingado de rezas. Fale um pouco deste processo de formação.

Tenho pensado que minha semeadura em Carbonita, no Vale do Jequitinhonha, me povoa de modos e jeitos de me fincar e me mover no mundo. Isso passa pela necessidade de pé no chão, pelo toque afetivo dos materiais, pelas insistências das rezas, folias, benzeções tramadas na complexidade da pobreza e da riqueza cultural.  É uma formação que chega pela oralidade, pelo testemunho de gestos e modos, pelas memórias narradas. A Grada Kilomba, em “Memórias da Plantação”, problematiza o ativar da margem como lugar de criatividade e, de uma certa forma, romantizar a opressão; mas aí ela cita bell hooks que fala da margem como essa posição que incorpora mais de um lugar: opressão e resistência. Então, quando digo de uma poeira de pequi, mato torcido e o breu pingado de rezas, falo dessa combinação de tornear o amarelo do pequi na boca, convivendo com o espinho, do tortuoso do cerrado, que acha jeito de se equilibrar, da fé que desce vela num breu em que falta energia elétrica. Minha avó, Maria Thereza de Jesus, não aprendeu a ler e a escrever. Minha mãe, Alice Concessa Pereira, e meu pai, João de Souza Pereira, estudaram até a quarta série. O Josiley Francisco de Souza foi o primeiro a abrir chão e entrar na universidade e isso favoreceu a migração da família motivada pelo desejo de poder estudar. Eu e minhas irmãs, Josilene Aparecida de Souza e Josimeire Lourdes de Souza, também passamos a pensar em possibilidades outras além das que vinham sendo modeladas. Isso porque, por mais que em casa o valor da escola fosse colocado, o que se apresentava no cotidiano para as meninas eram treinos para servir, seja como empregada doméstica ou, na melhor das hipóteses, pelo menos para mim, alguma artesania ou um costurar para fora. A formação acadêmica que vou ter mais tarde na Faculdade de Letras acaba que também é envolta em opressão e resistência, pois ora me gritaram oca de bagagem e cultura, ora vislumbrei força e coragem através das escrevivências em fervura por lá. Antes de ir à Escola Guignard, é também alimento desse meu caminhar como artista as coragens erguidas e aprendidas cotidianamente nas atuações em bibliotecas escolares e como professora na rede pública de Belo Horizonte, até chegar à necessidade de ir à Escola Guignard enlaçar uma ponta que eu não tinha conseguido antes. Nessa segunda travessia acadêmica há essa emersão de visualidades que vinham quarando o que, é importante destacar, ocorre num cenário de grande sucateamento da faculdade por parte do estado. 

2 – Outro aspecto muito importante em sua obra é a combinação de muitas artesanias: pintura, desenho, escrita, cerâmica, lavação de roupa, cozinha, costura. De um modo geral o fazer manual é determinante. Com isso, é um trabalho carregado de temporalidade, de duração, vinculado às tradições populares de Minas e do Brasil. Estas artesanias foram destino ou escolha?

Elas passam por esses dois lugares. Há um samiar, como se diz em casa, ligado a uma ascendência de saberes e treinamentos que vêm numa modelagem de posturas e lugares para serem ocupados. Mas também há respeito, desejo e apreço por sabedorias comumente menosprezadas na hierarquia de valores que são compartilhados, por exemplo, na versão hegemônica da história da arte. Então, tudo isso se inscreve na musculatura ao mesmo tempo com subalternidades das quais quero me desfazer e com um grande respeito que quero cultivar. Inclusive, saberes que fazem parte do campo do desenho, por exemplo, são tomados por mim pela inteligência de uma mão aquecida de fazeções, uma mão artesã que reconhece os meandros dos treinamentos, sejam eles considerados tradicionais, populares ou acadêmicos. Eu entendo que foi muito por isso que eu insisti num formato de resposta quando fui considerada inapta num teste de habilidades específicas para cursar Belas Artes, que era meu desejo inicial na ocasião em que fiz vestibular. Foi essa interdição que me levou a cursar Letras como segunda opção. No entanto, intuindo que aquilo não eram habilidades natas, fiz um autocultivo ao redor desses saberes, o que aconteceu bastante dentro do espaço de ônibus, no período em que morava em Caeté, região metropolitana, e trabalhava e estudava em Belo Horizonte. Nesse tempo mantive cadernos de desenho interessada nessa linha que se faz a partir de saberes da representação e fui ali fazendo registros cotidianos de pessoas, com o tremor do ir e vir da linha 5504 que ligava BH-Caeté-BH. Eu penso que há muitas maneiras para elaborar as nossas questões e o que me interessa é pensar no que eu faço com essas muitas linhas impregnadas, coletadas em diferentes contextos, com seus específicos temperamentos e agenciar no meu dizer esses modos vários que me constituem. 

3 – É interessante o modo como você prepara suas tintas com processos naturais, especialmente a tinta oriunda do cozimento do feijão. Você fala de diferentes tempos de cozimento, implicando diferentes temperamentos para o fazer do desenho. Vejo que este temperamento também remete ao tipo de suporte do desenho – sobre papel ele é mais delineado, no tecido é mais borrado. Isso muda bastante o temperamento. Você pode falar destes processos?

Sim. Essa pesquisa dos pigmentos naturais entrou em ebulição na companhia da professora Thereza Portes, no modo remoto da Escola Guignard. Nessas andanças, reconheci um azul numa sujeira cotidiana que vazou da panela no limiar do tampar da pressão. Vejo sim muitas camadas de temperamentos no preparo dessas tintas. Há os temperos propriamente ditos, como sal grosso, vinagre, alho, que entram nessa alquimia como fixadores e conservantes, além das simbologias que suas presenças carregam. Nesse caso do feijão, esses temperos, reunidos com os diferentes tempos de cozimento, vão trazer também diferentes nuances e durações de cores, que caminham por verdes, roxos, azuis, marrons… E há, como você menciona, o encontro dessas tintas com diferentes suportes, ora esse caldo está mais delineado mesmo, ora se espalha a partir das diferentes fibras e tramas e nas conversas com diferentes ph’s. Minha paleta também tem se servido de açafrão, urucum e terras, que venho coletando de diferentes chãos pisados e cada uma dessas matérias possui seu preparo específico. O urucum e o açafrão, por exemplo, a Thereza me ensinou a receita de guardá-los num breu de um pote fechado por alguns dias, em companhia de álcool de cereais e, nesse hibernar no escuro, a cor vai se juntando. Também me interessa um temperamento que se dá ligado a diferentes posições em que se dão esses encontros, pois quarar/pintar/desenhar no chão, num quarador, numa mesa ou na parede também vai trazer um escoar e um decantar diversos.  

4 –Outra série que gostaria de ouvi-la a respeito é a “Quara-dores”. O quaramento como um processo tradicional de deixar as roupas ao sol para irem embranquecendo e que você transforma em um processo de ir deixando aparecer as imagens – o quanto neste aparecimento é controlado e o quanto é trabalho do acaso, do desígnio do tempo?

Eu reconheci o verbo “quarar” no relacionamento com algumas tintas naturais, principalmente as que vêm de frutos, sementes e raízes, isso porque elas carregam o movimento da coisa viva que ficou evidente para mim logo que comecei a me servir com essas primeiras águas sobre papel. Isso porque há uma necessária espera entre uma camada e outra que não é somente um aguardo por secagem, mas um aguardo pelo desenho de cor que é feito pela luz e o tempo, que levantam e decantam formas nessa confluência de durações. Esse quarar acionado em modo reverso, que não aguarda a alvura da lavação de roupa, também me interessa como exercício atento à reversão de um branqueamento de nossos seres. Então, os quaramentos se fazem desse convívio de um gesto intencionado com o pincel a partir de uma memória que a gente leva de uma certa resposta das aguadas, mas sempre no aguardo pelas surpresas, com as quais se estabelece a conversa. Esse quarar reverso traz procedimentos que também ajudam a pensar no que pode entrar numa paleta de cores: um material que possa trazer nódia, como se fala em casa, passa a ser desejado pelo seu potencial de manchar. Esse quarar trança ofícios a favor dos aparecimentos, com ações de lavação e engomação desviadas para levantar as figurações, como esfregar, coletar esses vincos com pincel, engomar, passar… Os quara-dores que fazem parte dessa série que você menciona geralmente são objetos fincados nos quintais e que servem de suporte para esse quarar das roupas numa lavagem artesanal. Eles se abriram na busca de um lugar específico para quarar os trabalhos em tecido, quando passei a pensar em alguns deles também em co-funcionamento com os panos, trazendo tempos e espaços para esses cultivos. 

5 – Fale um pouco do seu trabalho com cerâmica, mais ligado à tradição do Vale do Jequitinhonha. Como lidar com este passado sem ficar no âmbito da citação. Há um trabalho em processo de 2022, que vi no seu portfólio, que junta a cerâmica, com o crochê e com a escrita. Seria este um processo de atualização desta tradição popular? O quanto na escrita é para ser lido ou para ser visto, ou seja, a escrita é texto ou desenho?

A argila é um material que se faz numa caminhada de desprendimento e sedimentação de anos, não aparece de uma hora para a outra na natureza, tem essa memória inscrita. Muito por isso talvez que o encontro com ela é tão especial, a gente sente um reconhecimento, uma maceração de chão e raízes. Sou fertilizada de desejos de imagens que se fazem pelo barro, mas não tive aprendizado cerâmico no Vale, comecei a lidar com ele a partir das aulas virtuais de cerâmica com a Márcia Seo na Escola Guignard. Referências como Dona Noemisa, Dona Isabel, Lira Marques, Ulysses Mendes e Ulisses Chaves, são águas férteis dessa pesquisa e uma ideia de atualizar uma tradição não me interessa como exercício de agir sobre algo que está desatualizado, porque não está. Gosto de me cultivar no rumo do que diz a professora Leda Martins, sobre a ideia de andar sobre traços vincados por antepassados; ela diz que ali a gente se alimenta e imprime os próprios tons e pegadas, que são próprios de uma ideia espiralar de um tempo não linear e evolutivo, com retorno dinâmico. Falando da escrita, nesse trabalho que você menciona de meu portfólio, ela é uma das linhas que entrou numa conversa fiada que abri no ano passado, um encontro de linhas, tramas e saberes. Na técnica de feitura manual da cerâmica há uma construção que se dá através de rolinhos feitos de barro, a partir dos quais se tecem variadas formas e tamanhos. Então, eu aproximei três modos de linhas e tramas que me habitam: a linha do algodão, a linha do barro e a linha da escrita. A partir delas, vieram três tramas tingidas na coreografia uma da outra e como a escrita carrega esse hálito de decodificação, ela pode ser tocada com esse gesto, mas no ir e vir da conversa com as outras linhas, embaralham-se e abrem-se outras vistas. Essas conversas fiadas também carregam uma dimensão de troca que pode ser ativada com outras pessoas, elas ganharam corpo nas aulas da Letícia Grandinetti, na Escola Guignard, se abriram ao aprendizado e trocas com outras mãos numa roda da residência do Grupo TeAto do Amanhã, em Belo Horizonte, e seguem por aqui, nesse papo em modo fiado.

  6 – Como é para você trabalhar com este fazer manual, tradicional, de temporalidade expandida, em uma época acelerada e de alta dosagem tecnológica? Você se sente extemporânea?  

Não, eu me vejo nesse tempo mesmo, mas venho colocando meu ouvido numa direção contrária a um culto linear e evolutivo, com exagero de futuro; os sinais de ruína de um aceleramento produtivo estão por toda parte, como essa crise pandêmica mundial da qual somos sobreviventes. Então, muitos dos meus procedimentos e pesquisas estão nas ebulições desse tempo, como o cultivo da busca por processos mais sustentáveis de relacionamento com as materialidades, por exemplo, no quarar do pensamento que se formula no convívio e escuta, em retornos e reversos, no respeito às raízes, no ir se fazendo junto, em fogo baixo, deixando secar e firmar… Isso não demanda uma recusa de tecnologias, mas de elaborações e relacionamentos distintos. Essa conversa aqui com você é uma fiação feita de pixels, que poderia entrar na roda da conversa fiada junto com o barro, o algodão, o manuscrito, por exemplo, desde que sem hierarquias. Sigo inspirada naquele aprendizado de tornear devagar o pequi na boca sem mordidas de extermínio que podem dizimar os espinhos, mas também toda existência de sabor.


Dia 04:

No quarto dia de Ocupação, Josi compartilha com o público virtual do PIPA um vídeo exclusivo, gravado especialmente para a ação semanal. Nele, a artista mostra como se dá o processo de criação de suas obras, ao filmar o cozimento de pedaços de madeira que se transformam em tinta para suas pinturas, além de técnicas de trançados e com o barro. Josi também conta um pouco as exposições que participou este ano.


Dia 05:

Além da série de pinturas em tecido apresentadas acima, Josi também se apropria de outros suportes para realizar seus trabalhos. Alguns deles são a peneira, na série chamada “O que não passa”; os quaradores; além do barro e cerâmica, que Josi utiliza para a feitura das esculturas. Com esses elementos, a artista reverencia sabedorias passadas de geração a geração em sua família e também ressignifica a função dos objetos domésticos, em um ato de apoderamento criativo.

Veja abaixo algumas dessas séries:


Dia 06:

Para a Premiação no PIPA 2022, Josi solicitou um texto critico de Clarissa Diniz para integrar o catálogo desta edição. Leia o texto na integra:

UM PEQUENO LÉXICO PARA JOSI
por Clarissa Diniz

ÇÃOZEIRA | Muitos çãos habitam as palavras que Josi semeia no mundo. Não é sequer preciso notá-los: eles se pronunciam por si mesmos numa constelação de sufixos que apontam para uma contínua ação – lavação, fazeção, pisação, engomação, limpação.

Antes de ser um recurso linguístico, a çãozeira de Josi existe desde uma infância prenhe de atividades voltadas a um corpo, um gênero e uma racialidade “treinadas”, como nos conta a artista, para “aprender a servir”.

Tal qual noutras partes do Brasil, para famílias de regiões empobrecidas como o Vale do Jequitinhonha, em cujo município de Carbonita Josi nasceu e cresceu, preparar as meninas para o trabalho doméstico segue como uma das principais possibilidades de sustento e, portanto, de futuro.

Assim foi com Josi, cujas brincadeiras, movimentos e responsabilidades a levaram a aprender a limpar, a cozinhar, a engomar, a costurar e a faxinar numa ação sem fim que, anos depois, já artista, ela nominará com sua sonora e precisa çãozeira.

Sua obra se fará, portanto, como mais uma das camadas dessa çãozeira, honrando o sufixo que também habita a criação.

MUSCULATURA | O treinamento doméstico que marcou a vida de Josi fortaleceu um modo específico de corpo. Hábil em suas mãos, de movimentos curtos, precisos, silenciosos e com os olhos aguçados para perceber mesmo o que beira o invisível, a corporeidade que a artista desenvolveu produziu uma forma de presença capaz de camuflar a si mesma, esgueirando-se por entre os espaços na tentativa de não “perturbá-los”. 

Cunhado na invisibilidade social, racial e de gênero, o corpo da mulher negra cujo projeto de futuro parecia ser o inexorável servir, aprimorou uma “musculatura” que Josi identificou e, por sua vez, politicamente flexionou na direção da prática artística.

Durante anos, a firmeza de suas mãos – disciplinadas para a costura ou para a faca afiada – encarou o solavancado tremor das horas passadas no ônibus para nele desenhar discretamente, como quem adentra vagarosamente uma casa desconhecida para uma diária de faxina.

No exíguo espaço de um assento de ônibus, com um caderno apoiado no colo, a musculatura das mãos da artista encontrava a de seus olhos, testemunhando cenas ordinárias vividas nos bancos das praças, nas paradas de ônibus, nos sinais de trânsito, nos caixas de supermercado, no banco à frente do seu, na porta da escola, nas janelas, nas esquinas. 

Em incontáveis cadernos, sua disciplinada corporeidade produziu um inventário dessas cenas fugidias que, não fosse sua singular musculatura, talvez a tivessem escapado. 

Esse repertório de imagens será, por sua vez, redesenhado na pintura à qual, nos últimos dois anos, Josi tem dedicado sua fazeção.

SUJEIRA | Cuidar e limpar são algumas das maiores atribuições patriarcalmente depositadas sobre as mulheres, tornadas responsáveis – sem que sejam reconhecidas e remuneradas – pela preservação da vida em dimensões tanto públicas quanto privadas.

Nesse contexto, o trabalho invisível da faxina, que guarda a singularidade de não deixar vestígios posto que consiste em apagar as marcas de sua própria realização, resta como ícone da opressão milenar sobre os corpos femininos, treinados para combater a sujeira como se esta fosse passível de plena eliminação.

Como uma mulher negra cuja história combina não só a opressão patriarcal, como também racial, Josi sabe, contudo, que “sujeira é matéria fora do lugar”. 

Em sua obra, a artista produz lugares para a presença, a impregnação e a beleza desta matéria que, na çãozeira de seu treinamento doméstico, ela fora ensinada a aniquilar.

AZUL DE PRETO | No musculoso cotidiano da cozinha, Josi percebeu que há um azul que vem do preto. Tirado do lugar e do tempo protocolar do cozimento, o negro do feijão torna-se anil. 

Há outros azuis, por sua vez, que se tornam cinzas. Verdes que transmutam-se em marrons, vermelhos que seguem o mesmo caminho.

O olho musculoso observa a pequena mancha no pano de prato usado para abrir a tampa da panela de pressão, de cuja válvula emerge a cor que, abdicando-o de erradicá-la, Josi ousará experimentar como tinta.

Noutro momento, é a própria nódoa acumulada há anos na ponta de um vestido que lhe serve como paleta. 

Entre a lavação e a refeição, faz-se um projeto cromático cujo paradigma não é produzir cor, mas esperar que ela aconteça em meio à çãozeira generalizada.

ESPERAR | Da çãozeira de Josi também faz parte a espera. Entre o tempo do cozimento e o da vida, a artista aprendeu a esperar de muitas formas.

Esperou, por exemplo, para autorizar a si própria a “tornar-se artista”, posto que reprovada em seu primeiro vestibular para a graduação de artes por uma suposta inabilidade técnica. 

Enquanto isso, sentada no ônibus, passou anos desenhando e desenvolvendo sua musculatura gráfica.

Foi também enquanto esperava o tempo pandêmico encontrar seu rumo e produzir sentido social que Josi encontrou um tempo para adentrar sua habitual çãozeira por outra porta.

Já estudante do curso de Artes Plásticas da Escola Guignard, em Belo Horizonte, sob o acompanhamento da professora Thereza Portes, transformou sua fazeção em laboratório; sua cozinha em atelier; sua limpação em método. 

QUARAR REVERSO| Não sem implicações raciais, o branco foi socialmente convencionado como o paradigma da limpeza. Alvejar – verbo que guarda a ambivalente memória do embranquecimento que é ao mesmo tempo o branquear da cor e o da violência racial – tem sido, por isso, um velho conhecido da limpação.

Dos vários métodos da lavação branqueadora, o quarar destaca-se como uma ancestral sabedoria que, combinando tempo e luz, é capaz de fazer clarear aquilo que, porque não branco o suficiente, parece insatisfatoriamente limpo.

Metodologicamente atenta a toda a çãozeira, Josi política e racialmente reverte a tecnologia de branqueamento do quarar, experimentando seu dispositivo físico – o quarador – e temporal não para produzir alvejamento, senão como modo de fabricar um espaço-tempo para a sujeira, para a mancha, para a nódoa que se faz cor e desenho. 

Em meio à çãozeira, o quarador torna-se um cavalete capaz de interseccionar estética, racialidade e gênero.

DECANTAR | No quarador ou noutras superfícies, esperar a cor exige decantação. Pode também pedir o escoamento, a secagem, a condensação, e evaporação.

Enquanto esperava a cor fazer-se em duração, Josi percebeu que também ela, a cor que é matéria – que é água, pigmento, mancha –, desenha. Com o tempo, passou a aguardar não só o surgimento da cor, mas das linhas e formas que vêm com a fazeção que lhe é própria.

Com uma musculatura resilientemente preparada para a duração, Josi passou a esperar o tempo da cor e do desenho retro-produzirem a si mesmos. 

Nesse ínterim, conheceu a capacidade criadora da luz (tal qual o calor da engomação) e seu duplo, o breu, convocados em momentos distintos para fazer as moléculas reagirem de modo tal a fazerem-se tinta.

ÁGUA | Da lavação da casa, da roupa ou do corpo faz-se uma poética da água que é a própria calunga grande, o mar: a ancestral e contínua aguação que traz e leva as pessoas, as memórias, os segredos.

Assim é que, na água de cor da cozinhação e da lavação que faz desenho e forma, surge o imaginário da pintura recente de Josi, habitado por mulheres negras que estão sempre em alguma fazeção, como quem ensina e aprende entre as mais velhas e as que começam a partir de agora.

Redesenhados pela ação do tempo e outras çãozeiras, os desenhos recolhidos pela artista através das janelas e tremores dos ônibus se refazem na própria materialidade e corporeidade daquilo que figuram. A obra de Josi guarda, desse modo, a singularidade de representar a çãozeira da vida das mulheres negras por meio dela mesma. 

Longe da tradição eurocêntrica da reiteração conceitual, trata-se, ao contrário, da própria intencionalidade e subjetividade da matéria, cuja água azul do feijão preto faz a tinta e o desenho da mulher que cozinha junto à sua mais nova. 

Tornados um, imagem, gesto, matéria, dispositivo e sujeito se tornam inseparáveis como a água que tudo impregna porque tudo aviva.

MISTÉRIO | Josi sabe da importância de “confiar no mistério”. 

Sua obra recente é uma aposta radical nas misteriosas sabedorias ancestrais, essas que por vezes se protegem por entre vassouras, sabões e ferros de passar. 

Seu pintar e seu modelar confiam na agência de toda a materialidade por ela convocada e no saber dos gestos que lhe foram ensinados. Josi tem consciência de que, ao ter sido treinada para servir, por meio da çãozeira doméstica à qual foi destinada, aprendeu formas respeitosas de tocar o corpo da matéria, de perceber o tempo, de respeitar a espera. 

No xamanismo que é próprio a quem confia no mistério das materialidades, Josi aprendeu a intencionar junto com elas. De tanto juntar o pó, compreendeu sua forma de presença e passou a enxergar as imagens que ele guarda e entrega a quem se deixa tocar por ele. Empoeirada, soube que a intenção da terra é tornar-se pó para seguir habitando e transformando os lugares.

Fortalecida pela musculatura de sua çãozeira, Josi agora se permite vulnerabilizar por ela. Um passo aquém do comando das panelas, colheres, pás e espanadores, agora é a própria poeira, a sujeira, a mancha ou nódoa que a conduzem. Misteriosamente.


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