“O que pode uma mesa?”: leia o texto crítico de Lucia Barros sobre o Atelier Sanitário

No texto crítico “O que pode uma mesa?”, Lucia Barros, mestranda de Filosofia da PUC-Rio, discute o estatuto da arte a partir do espaço conhecido como Atelier Sanitário, e especialmente a partir de uma mesa criada na residência artística “Brewing Arts and Crafts International Residency Program” – título carregado da ironia que perpassa diversas ações do Atelier. Como escreve Lucia, “Algo passa a ser arte em função de uma rede de mobilização que positiva um gesto. Talvez basta algo estar inserido em um museu ou galeria para ser legitimado como arte, mas que arte? Da anestesia ou do ruído? O Atelier Sanitário me parece por si só o ruído, ali tudo é deslocado de seu sentido normativo, toda a rede de mobilização que define o que é arte é reposicionada”.

Leia o texto completo abaixo.


“O que pode uma mesa?”

“O que é uma residência?” Essa pergunta me foi feita algumas vezes enquanto acompanhava a residência “Brewing Arts and Crafts International Residency Program” do Atelier Sanitário. Em todas as vezes fui pega pelo espanto. Não por colher pressupostos que todas as pessoas deveriam saber do que se trata uma residência artística, mas pelo confronto com a minha dificuldade de responder a pergunta. E pela constatação de que, mesmo com a frequente repetição da pergunta, eu não conseguia adicionar mais informações à resposta dada pela primeira vez. Se tanto, aprimorei a técnica de compor com mais precisão as lacunas. Lacunas paradoxalmente recheadas de possibilidades infinitas, abertas a múltiplas composições que me impediam de traçar fronteiras precisas que determinassem com alguma garantia a diferença daquilo que é daquilo que não é.

A dificuldade em que me encontrei de fixar limites que se constituem como escorregadios, me remeteu a uma discussão que alarga todo e qualquer dilema pessoal: O que é arte? Não dar conta de responder em que se constitui exatamente uma residência artística me parece conectado de modo quase ontológico à impossibilidade de responder de modo preciso à pergunta “o que é arte?”. Ao mesmo tempo em que levando a questão para seu extremo oposto poderia afirmar seguramente que nem tudo se constitui como arte. Todas essas questões soam abstratas e teóricas, mas ganham contornos concretos quando pensamos na forma de atuação do Atelier Sanitário.

Na Gamboa, Zona Portuária do Rio de Janeiro, lugar que mistura ruínas e revitalizações, que abriga temporalidades múltiplas de histórias de apagamento e resistências, reduto do samba e da nova noite carioca que performa o arrefecimento da pandemia, na vizinhança do “Porto Maravilha” e do Morro da Conceição, está o Atelier Sanitário. Um espaço que se coloca como autônomo, tendo na escolha dessa palavra um gesto de oposição ao termo independente que supõe a dependência de algo, enquanto ideia de autonomia convoca para a abertura de campos de existência investidos de mais liberdade. E nesse campo aberto surgem obras de arte, móveis, restaurações, farra, festa, enquanto acontece na cozinha o preparo de cervejas artesanais. Além de abrigar uma editora, eventos de arte e, agora, uma residência.

A proposta da residência-oficina, tal como descrito na convocatória, consistia em: “Ao longo de um mês, a turma com seis participantes vai se encontrar uma vez por semana – obedecendo o tempo e o ritmo de produção da cerveja. Em cada encontro, cada um com duração de 4 horas, o grupo vai trabalhar no mobiliário da nova cozinha do Ateliê, aprendendo técnicas de projeto e construção de mobiliário, desenho e realização de serigrafia, e fabricação de cerveja, além de discutir processos poéticos e práticos, individuais e coletivos. Todos os encontros serão coordenados por Daniel Murgel, Leandro Barboza, Fernanda Lopes e Antônio Carlos Rodrigues”.

Basta conhecer o espaço para perceber a ironia contida no título “Brewing Arts and Crafts International Residency Program”. Mas tomemos a sério. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o termo Arts and Crafts, que foi incorporado ao vocabulário da arte sem tradução e me pareceu disparador de toda a composição semântica “internacional” do título da residência. E a própria ideia de Arts and Crafts, um movimento iniciado na Europa que se espalhou pelo mundo, da segunda metade do século XIX ao início do século XX que de modo geral pensava o vínculo entre “artes visuais” e “artes aplicadas”. Dito de outro modo, distendia a relação entre arte e indústria, seja priorizando objetos artesanais como alternativa à produção em série, seja interferindo de dentro, valendo-se de materiais e objetos industriais para desafiar a lógica da produção de massa, do consumo e dos objetos como algo útil.

Em o “Destino das Imagens” há um capítulo em que Rancière analisa como a ideia do design no início do século XX redefine o lugar da arte e o que isso implica na construção de um novo sensível compartilhado, tanto na própria legibilidade da esfera artística quanto em novas formas de comunidade ampliadas a partir das instituições: “O elemento comum é a ideia da reconfiguração de um mundo sensível comum a partir de um trabalho exercido sobre seus elementos de base, isto é, sobre a forma dos objetos na vida cotidiana. Essa ideia comum pode se traduzir em retorno ao artesanato e em socialismo, em estética simbolista e em funcionalismo industrial (…). Todos denunciam a relação instituída entre a produção desalmada do mundo mercantil e a alma caótica introduzida nos objetos por seu embelezamento pseudoartístico” (2012, p.112).

Guardadas as devidas distâncias temporais e contextuais entre o movimento inicial do Arts and Crafts e a proposta do Atelier Sanitário, é possível encontrar ecos entre uma coisa e outra para além do título da residência. Atualizações e tensionamentos que alargam o sentido de Arts and Crafts e o próprio trabalho do Atelier. A começar pela ideia de espaço autônomo que subjaz a uma disputa que se reconfigurou: a da oposição à lógica fabril, da produção em série do capitalismo industrial, para o enfrentamento do mercado das artes, do capitalismo de especulação e da classificação monetária de obras de arte que valem mais que outras.

A discussão a respeito da ideia de um espaço autônomo, e não independente, não passa só pelo crivo da maior ou menor quantidade de dinheiro, da disputa com o termo independente que remete à inserção no mercado de arte, não obstante a ausência de patrocínio e investimento. Tampouco pela perspectiva ingênua de ler autonomia como algo totalmente fora da norma hegemônica, como se fosse possível prescindir dela. Se pensarmos com Rancière autonomia está sempre ligada à heteronomia, o que significa que está sempre em relação com o dentro e o fora, é aquilo que escapa, que produz um ruído nos acordos. Em ultima instância, pensar a relação entre arte e autonomia significa dizer que a arte, tal como a entendemos hoje, está sempre ligada àquilo que não é arte. Mas não no sentido da oposição entre arte e mercado, arte e cultura de massas, ou mais na crista da onda, arte e NFTs. E sim pelo jogo de negociações que reformula o que é arte a todo tempo. A autonomia não diz respeito ao objeto artístico ou ao espaço de arte, mas à experiência, como uma forma autônoma de vida.

Portanto o que está em jogo nessa chave de leitura, tanto para pensar o movimento Arts and Crafts quanto o Atelier Sanitário, é a configuração de um novo sensório, de novas formas de vida, que se articulam tanto nos modos de legibilidade das obras de arte quanto nos espaços em que é possível que ela seja feita.

Para sair da abstração, vou tomar como inspiração o espírito da manufatura. Ao longo dos quatro encontros da residência, foram confeccionadas duas mesas. Os artistas que acompanharam tinham bagagens diversas, começando pela arquitetura e terminando em mim que aprendi a manusear um estilete e traçar uma linha reta com a régua. A partir de contribuições das mais díspares naturezas, resolvemos construir as duas mesas na mesma parede, uma dando para dentro da cozinha e outra dando para fora, mais especificamente, para área de convivência ampliada. Em ultima instância, uma mesa para os próprios artistas do atelier cozinharem comida e cerveja e outra disponível para as pessoas visitantes nos dias de eventos. A ideia foi uma cozinha que se estendesse dos seus fins práticos para os seus fins de sociabilidade, aberta para os fluxos indeterminados do acontecimento, mas com alguma organização e diretriz espacial.

Se toda essa experiência faz das mesas obra de arte, sigo sem me arriscar a responder. Por terem sido confeccionadas em uma residência artística elas assumem automaticamente esse estatuto? Quando em 1966, Hélio Oiticica coloca uma mesa de bilhar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a mesa ganha o estatuto de arte porque está dentro de um museu e da exposição “Opinião 66”? Ou porque busca, pela mesa, a possibilidade de novas partilhas do sensível, novas formas de experienciar o mundo? No cerne da proposta da mesa de bilhar de Hélio Oiticica está a incorporação do outro, a força do ato de participar que faz a passagem da experiência individual para a experiência coletiva. A busca por desestabilizar o próprio estatuto de arte.

A instalação Apropriação – Mesa de Bilhar D’Aprés O Café Noturno, de Van Gogh, criada por Hélio Oiticica em 1966 (Foto: Ares Soares)

Tanto a presença no museu, quanto o gesto de enunciar algo como arte, parecem ser importantes para conferir esse estatuto, mas não são garantias. O que faz do objeto da arte ser menos um estatuto e mais um estado. Já foi dito que, segundo Rancière, não é o objeto que tem a autonomia, mas a experiência. Acrescento que essa experiência, para ser referida ao campo das artes, está sempre tensionada por diversas relações contextuais que a circunscrevem nesses termos. Algo passa a ser arte em função de uma rede de mobilização que positiva um gesto.

Talvez basta algo estar inserido em um museu ou galeria para ser legitimado como arte, mas que arte? Da anestesia ou do ruído? O Atelier Sanitário me parece por si só o ruído, ali tudo é deslocado de seu sentido normativo, toda a rede de mobilização que define o que é arte é reposicionada. A autonomia transcende o subtítulo do espaço, incorpora sua dimensão de experiência e, com isso, o ruído não é apenas a respeito do “que”, mas também “quem”, “onde”, “como” se faz arte? E é nesse desmantelar de fronteiras que a mesa se faz disparadora de um acontecimento.

Por isso recorro agora a Didi Huberman, especificamente a um texto que, para mim, foi um encontro da ordem de um acontecimento, daqueles em que a memória se faz fotografia e a gente cria uma imagem do momento do arrebatamento como se para ter certeza que nunca mais vai esquecer daquilo. O texto em questão se chama “Mesas para recolher pedaços do mundo” e está no livro “Atlas ou o Gaio Saber Inquieto”. Farei aqui, em uma homenagem interesseira, uma montagem – tema caro ao autor – do texto com a discussão presente, sem adentrar no debate específico do livro. “Ainda é preciso se munir de uma mesa para acolher essa transformação do olhar e do sentido, para recolher o feixe das multiplicidades figurais que esperam ser vistas.” (DIDI HUBERMAN, 2018, p.54) “Isso começa por uma sequência de gestos precisos, concretos, técnicos: a arte se assim se pode dizer, de ‘instalar’ ou de preparar a mesa” (DIDI HUBERMAN, 2018, p.55).

Preparar e instalar uma mesa significa antes de tudo imaginá-la. A mesa é evocada antes de adquirir seu estatuto de objeto empírico porque é uma possibilidade de vir a ser nos múltiplos pedaços de madeira espalhados pelo atelier. É preciso fazer uma espécie de previsão, de aposta ou adivinhação para montar e manipular pedaços espalhados que juntos possam corresponder a uma mesa. Unir fragmentos daquilo que foi recolhido nas ruas, destroços que um dia foram outras coisas, com materiais comprados para virem a se tornar algo. Ao traçar correspondências entre as histórias secretas dos pedaços disponíveis naquele espaço, entre o Porto Maravilha e Morro da Conceição, não esqueçamos, a mesa torna-se “aquilo que faz dela uma verdadeira aparelhagem do mundo e do corpo, algo bem mais complexo que um simples suporte” (DIDI HUBERMAN, 2018, p.57).

Há ainda outra parte do titulo da residência “Brewing Arts and Crafts International Residency Program” que contribui para pensarmos a mesa para além dela mesma. “Brewing”, sem diletantismos, nesse contexto está diretamente relacionado com cerveja. Já foi dito que o atelier, entre tantas outras coisas, fabrica sua própria cerveja artesanal. E relembrando, a convocatória da residência dizia que o tempo da produção obedeceria ao da feitura da cerveja. Justiça seja feita, a cerveja permeou todos os encontros da fermentação até a embriaguez.

Construir uma mesa enquanto se cozinha cerveja é, de certa forma, trabalhar a partir de temporalidades heterogêneas. De um lado, o tempo da serra, das marteladas, de transportar os materiais e dispô-los juntos. De outro, o tempo da fermentação, das bactérias, do corpo. Mecânica e natureza, o tempo da feitura e da espera, do controle e da paciência. E entre esses polos, os disparos dos pensamentos, das ideias borbulhantes e mirabolantes, o tempo da imaginação, de medir alturas e larguras enquanto a embriaguez vai produzindo o torpor que nos conecta a outras formas de ver, não necessariamente boas, mas outras. E ainda o trabalho do corpo que monta a mesa e recebe o álcool até que surge a fome. Faz-se um pão. A massa descansa enquanto as mãos trabalham, o estômago espera e o fígado se agita. Instaura-se um caos e as mesas.

É uma “mesa” em que se decide colocar juntas algumas coisas díspares, entre as quais se procura estabelecer múltiplas “relações intimas e secretas”, uma área que possui suas próprias regras de disposição e de transformação para ligar certas coisas cujos elos não são evidentes. E para fazer desses elos, uma vez revelados, os paradigmas de uma releitura do mundo (DIDI HUBERMAN, 2018, p.60).

As mesas confeccionadas na Residência do Atelier Sanitário talvez não reivindiquem o estatuto de objeto de arte, não obstante estarem inseridas em um espaço artístico. O interessante é que, a despeito disso, o modo como foram produzidas deu a elas esse estado, ao menos para os residentes. Assim, as mesas simbolizam a situação transitória da arte e da não arte, aqueles que a construíram participaram da experiência simbólica e concreta da construção de um comum, que se materializa na mesa. Por isso, entreveem o antes, o durante e o depois que se cristalizou em um objeto que será tanto suporte para cervejas, comidas, copos, braços, como testemunha de encontros e desencontros, de conversas, ideias e lamentos. Mediadora de histórias, composta por elas, disparadora de experiências, possibilidade aberta para múltiplas configurações de partilha, de junções e disjunções. O lugar privilegiado para construir comuns sem medida.

Bibliografia:

COELHO, Fred, O jogo e a maquina, Somos muit+s: experimentos sobre coletividade, Agosto – Outubro 2019, p.57-90, Pinacoteca de São Paulo.

DIDI HUBERMAN, Georges, Atlas ou o Gaio Saber Inquieto, Ed: UFMG, Belo Horizonte, 2018.

MOUFFE, Chantal, Quais espaços públicos para práticas de arte crítica, Arte & Ensaios | revista do ppgav/eba/ufrj | n. 27 | dezembro 2013.

RANCIÈRE Jacques, A Revolução estética e seus resultados. In: New Left Review, NLR 14, Março-Abril 2002, pp. 133-15, disponível em: http://newleftreview.org/.

________________O desentendimento. Editora 34, Rio de Janeiro, 2018.

________________ O destino das imagens. Ed Contraponto, Rio de Janeiro, 2012.

________________ Tempos Modernos. Arte, tempo, política. Ed: N-1, São Paulo, 2021.

 



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