Josi, “Da série: O que não passa”, 2022, peneira de bambu, tule, goma de farinha, água de feijão e terra, 53 x 50 cm

Luiz Camillo Osorio conversa com Jacques Leenhardt sobre J.-B. Debret e as releituras contemporâneas

Leia abaixo a conversa entre Luiz Camillo Osorio e Jacques Leenhardt na ocasião da palestra apresentada pelo crítico francês sobre o tema “Reler/Rever as imagens de J.-B. Debret”. Entre os pontos abordados estão os dois ângulos com que trabalhava Debret; a visibilidade tardia de imagens do pintor e as diversas estratégias de artistas contemporâneos para elaborar o passado.

Leenhardt é Diretor de Estudos da EHESS (Paris) e presidente de honra da AICA.


L.C.O – No seu livro recente reunindo todas as pranchas de J.-B. Debret e os textos referentes que ele escreveu contextualizando-as, você buscou restituir uma certa integridade ao trabalho iconográfico do artista francês e sua análise crítica da realidade colonial e escravocrata brasileira. Não obstante ser ele o pintor oficial da corte portuguesa e um dos criadores da Academia de Belas-Artes, estes desenhos que ele levou para a França na sua volta em 1831, realizados clandestinamente aqui, foram litografados em Paris e são um material único sobre o Brasil de então. Poderia falar sobre sua pesquisa, esta relação entre textos e imagens e a visão de Brasil que começa a ser construída aí?

J.L. – A meu ver, é essencial distinguir claramente duas partes, duas vertentes, na obra de Debret. Por um lado, o pintor profissional que trabalhou durante mais de vinte anos com Jacques-Louis David e que, após a queda de Napoleão e o exílio de David que o deixou sem recursos econômicos, juntou-se à chamada Missão Artística Francesa de 1816 e se exilou no Brasil. Por outro lado, há o autor dos 800 desenhos e aquarelas que constituem a fonte documental do livro Viagem pitoresca e histórica no Brasil, realizados secretamente no Brasil, trazidos de volta em 1831 e publicados por Debret em Paris entre 1834 e 1839. Devem ser claramente distinguidos porque o pintor que o regente João VI acolheu para que se encarregasse, com outros franceses, da criação de uma Academia de Belas Artes e imortalizasse em pinturas a óleo a vida da corte portuguesa deslocada na sua colônia brasileira, claramente não faz o mesmo trabalho que o artista que se auto retrata, sentado na calçada com um chapéu de papel na cabeça, capturando o cotidiano da efervescência do Rio de Janeiro. O primeiro é pintor da corte, sujeito às regras de comportamento e normas estéticas próprias de seu ofício, o outro é um artista que sentiu que estava presenciando um momento histórico importante – a transição do Brasil colônia para o império – e que pretende, através do seu trabalho de pintor e escritor, assumir plenamente o seu papel de testemunha e comentador da transformação social e política que está a se realizar diante dos seus olhos. Esses dois personagens coexistem em Jean-Baptiste Debret, sem dúvida de forma parcialmente contraditória, como nele coexiste o jacobino entusiasmado dos primeiros dias da Revolução Francesa e o profissional forçado pela necessidade, aos 52 anos, de se colocar a serviço do poder real português no exílio. Quando Debret chega ao Brasil, a Revolução já havia dado origem ao Império na França, e sem dúvida suas íntimas decepções políticas o levaram a finalmente tomar o partido da monarquia constitucional ao acompanhar Dom Pedro I° na hora da constituição da Império Brasileiro.

Vemos que a distinção entre esses dois personagens é imediatamente política e esclarece a singularidade da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil entre todas as obras publicadas por autores europeus. Debret não é um viajante. Ficou quinze anos no Brasil e se seu livro traz a palavra “histórico” no título é porque seu autor, longe de querer produzir um livro no gênero exótico, afirma estar fazendo um trabalho de historiador. Como ele mesmo diz, assiste ao fim do mundo colonial e ao advento de uma nação autônoma. O retrato do Brasil que ele desenha ao longo das 152 pranchas litografadas e 400 páginas de texto focaliza essa transição, suas contradições e suas esperanças. A divisão da obra em três volumes, cada um com seu próprio tema étnico, deixa bem explícita a questão colocada pelo jacobino em exílio voluntário: como fazer uma nação reunindo índios que fugiram nas selvas da brutalidade da colonização, africanos escravizados e desvinculados de suas raízes e imigrantes europeus preconceituosos, tanto como ele mesmo, J.-B. Debret? É esse desafio que seu livro ilustra e explicita e nisso, por sua ambição e pelo tempo que lhe dedicou – mais de vinte anos –, Debret não pode simplesmente ser colocado na categoria de “viajante” e se seu livro pertence de fato às “Brasilianas”, nelas ocupa um lugar muito singular. Insisto, na introdução que escrevi para a nova edição da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil [Imprenta nacional do Estado de São Paulo, São Paulo, 2015], na importância dessa ideia de explicitação. Debret é pintor, mas, no entanto, está muito consciente da ambiguidade fundamental da imagem, como também do texto. É por isso que ele recorre sistematicamente à escrita “afim, diz ele, de que pena e pincel suprissem reciprocamente sua insuficiência mútua” (pág. 44).

Esta necessidade de garantir que o seu leitor interpretará corretamente as suas imagens é perceptível de forma exemplar, e creio que posso mesmo dizer única na história dos livros ilustrados, pelo acréscimo, a cada imagem, de várias páginas de explicitação do que é dado a ver. Todas as pranchas da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil são acompanhadas de três ou quatro páginas de texto informativo. Debret sabia que trabalhava em um meio cultural que não estava acostumado aos códigos da estética neoclássica e, como aponta Rodrigo Naves, duvidava que suas imagens fossem imediatamente compreendidas. Essa preocupação pedagógica, que tem tudo a ver com o pedagogismo republicano de 1789, lança luz sobre as intenções políticas investidas por Debret na publicação de seu livro. Assim, para o pano de boca do Teatro Imperial produzido por ocasião da coroação do imperador Pedro I, evento que marcaria a rutura com a realeza portuguesa, Debret pintou uma espécie de “alegoria do bom governo”. O imperador está presente, acima do trono da Constituição, apenas pela letra P, inicial de seu nome, porque seu papel se limita a ser o “defensor perpétuo e imperador constitucional do Brasil”. Mas essa alegoria do poder constitucional mostra-o cercado por todos os componentes da nação. Para evitar qualquer mal-entendido sobre o significado político da presença de índios e negros no pano de boca, Debret divulgará, às suas custas, na imprensa local, a análise política de sua imagem e sua visão da convergência harmoniosa dos povos ao redor do soberano. É necessário, portanto, considerar Viagem pitoresca e histórica ao Brasil como um conjunto de textos e imagens com coerência própria, e sobretudo não deixar de ler as páginas explicativas, muitas vezes de uma ironia feroz em relação aos personagens representados.

L.C.O. – Um fato que você destaca no livro é o longo período, de um século, em que este material ficou invisibilizado, sem publicidade e sem qualquer debate sobre ele. Tanto na França como no Brasil, estes desenhos ficaram clandestinos. Como foi se recuperando o interesse por este material e em que medida ele ter sido recuperado paralelamente ao período modernista não teria sido responsável por este divórcio entre imagens e textos?

J.L. – Deve entender-se que ao longo de quase todo o século XIX a história da conquista foi essencialmente constituída pela legenda heróica da ocupação dos territórios sulamericanos pelos portugueses. Na época, ninguém queria ler ou ver o outro lado da conquista: o extermínio dos índios e a exploração dos africanos escravizados. Por isso, as imagens publicadas por Debret após seu retorno a Paris não lisonjearam nenhuma das expectativas da corte imperial. O mal-estar produzido pelas imagens da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil foi tão violento que, quando Debret enviou de presente o Volume II de seu livro para a corte, dedicado à apresentação dos diferentes ofícios exercidos por escravos na cidade do Rio de Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) recusou-se a aceitar a obra na biblioteca imperial. Essa rejeição não deveria ter surpreendido muito Debret, que sabia perfeitamente que suas imagens seriam desagradáveis, razão pela qual ele mesmo as manteve escondidas das autoridades durante os quinze anos de sua estada no Brasil. Assim, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil desapareceu do espaço público brasileiro, como do francês, quase sem deixar rastro nenhum até sua redescoberta no século XX. Diz-se que os exemplares não vendidos foram propostos ao famoso livreiro Ch. Chadenat no final do século e que este recusou, temendo fazer um mau negócio! Hoje o livro é extremamente raro e caríssimo.

A eliminação dessas imagens do imaginário brasileiro se deve, obviamente, ao fato, longamente comentado pelos censores do IHGB, de que as imagens de Debret ilustram, ao ponto da insuportabilidade, a violência racista do regime escravista. Por outro lado, essas mesmas pranchas dão uma imagem lisonjeira, em todo caso extremamente positiva, de escravos de ganho negros, exercendo todos os ofícios no espaço urbano. A este respeito, Debret insiste no fato de os portugueses terem horror ao trabalho, tanto assim que os infelizes escravos foram os únicos a construir o país através do seu trabalho. Valorizá-los através da imagem é, portanto, uma afirmação deliberada de sua parte, que só podia parecer indecente ao público leitor e ao governo da época. Essas poucas razões explicam por que as imagens de Debret foram banidas por quase um século até adquirirem, em um novo contexto ideológico, um lugar de destaque na iconografia brasileira.

Essa inversão da situação deve-se às profundas transformações vividas pelo Brasil durante as primeiras décadas do século XX. A chegada de uma nova geração política ligada às elites urbanas fará com que a miscigenação possa finalmente ser vista como um bem da nação, e não um desastre. Só então, lenta e nunca definitivamente, a hegemonia dos esquemas racistas se esvai, que explicava pela mestiçagem o atraso econômico e cultural de que padece o Brasil. A Semana de Arte Moderna de 1922 marcou uma virada nesse sentido: vemos artistas, ensaístas – entre eles o antropólogo Gilberto Freyre, o escritor Mario de Andrade ou o pintor Vicente Do Rêgo Monteiro – destacando a contribuição das culturas nativas e africanas para construção da nação. É nesse clima sem precedentes que as imagens de Debret poderão reaparecer em plena luz do dia.

A partir de 1914, aliás, a Revista da Semana passou a reproduzir algumas imagens da corte carioca emprestadas da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, depois ampliou o espectro de suas publicações para finalmente, em 1931, exibir sob o título: “Da treva do cativeiro à aurora da abolição” imagens de violência contra populações escravizadas. É como se, aos poucos, o Brasil pudesse começar a virar a página da negação da escravidão. Depois de reprimidas por simbolizar a má consciência de uma nação moralmente culpada, as imagens de Debret finalmente conseguiram ganhar a visibilidade pública que lhes foi negada desde o início. Este reconhecimento tardio será acelerado graças à aquisição, em 1939, em um antiquário parisiense, de mais de 500 desenhos e aquarelas de Debret por Raymondo Castro Maya. Ele legou suas coleções ao Museu da Chácara do Céu, onde estão guardadas até hoje. O ato final dessa reabilitação será a tradução da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil pelo antropólogo e crítico de arte Sérgio Milliet e sua publicação em 1940. Desde então, as imagens de Debret constituem uma fonte documental inigualável e, através de sua difusão no espaço público, elas se tornaram o próprio imaginário do Brasil colonial e imperial. Certamente poderíamos nos regozijar com a ideia de que uma obra tão complexa finalmente conhece um público mais amplo, mas essa distribuição de apenas imagens, desprovidas dos textos e contextos que as iluminam, muitas vezes, ao contrário, favoreceu uma leitura superficial e redutora.

L.C.O. – O crítico e historiador da arte Rodrigo Naves, começa seu livro A Forma Difícil com um capítulo bastante original sobre Debret, destacando como em sua iconografia podemos começar a perceber a sociabilidade perversa do Brasil, ou seja, há nele o começo de uma visualidade propriamente brasileira. Acho interessante esta leitura, pois redimensiona o valor crítico de sua obra tão marcada pela chave colonial. Sem deixar de ser um pintor oficial, soube ver e falar de nossas mazelas de forma original. Como você analisa o valor crítico desta obra surgida do interior do sistema oficial?

J.L. – Ao chegar ao Brasil, Debret é um homem maduro, a quem os contratempos da história e, sem dúvida, também a morte de seu único filho, tornaram atento e irônico. Rodrigo Naves tem razão ao apontar a lacuna intransponível que existia entre os sonhos de grandeza greco-latina carregados pela estética neoclássica cultivada durante a Revolução Francesa e a realidade cotidiana que estava diante dos olhos de Debret no Rio de Janeiro dos anos 1816-1830. Nas aquarelas realizadas na rua, a ironia mordaz com que Debret retrata e comenta as cenas da vida cotidiana as torna infinitamente vivas, enquanto as pinturas dedicadas à corte, onde toda ironia está excluída, mostram uma artificialidade sem grandeza nem alegria que pesa sobre um mundo engomado, atestando o mal-estar do pintor ou a inadequação do seu estilo com referência à corte nos trópicos. Mas há algo além desse mal-estar cujas implicações Rodrigo Neves desenvolve muito bem. O próprio Debret tem uma relação conscientemente crítica com a imagem e a utiliza para denunciar os mitos românticos que cercam o conhecimento do Brasil na Europa.

L.C.O. – Como você enxerga este material visual de Debret dentro da vasta produção de artistas viajantes ao longo de todo o século XIX? Até por que, quem viveu no país por 16 anos não se encaixa bem nesta denominação. Há traços peculiares neste trabalho de Debret? Como abordá-lo no interior desta produção de artistas viajantes?

J.L. – Debret é um artista que foi treinado por David. Isso significa que ele está perfeitamente ciente do que hoje chamaríamos de retórica da imagem e sabe aproveitá-la. Isso é evidente desde a primeira prancha de seu livro. Neste primeiro capítulo com título “As florestas virgens do Brasil”, Debret não se contenta em representar a natureza virgem, ele a povoa com um conjunto de figuras e comenta sua imagem assim: “O conjunto de figuras que anima esta paisagem representa três soldados nativos homens civilizados que, depois de devastar uma pequena cidade selvagem, trazem de volta as mulheres e crianças prisioneiras de guerra”.

Jean-Baptiste Debret, “Mata virgem, beira da Paraíba”, cerca de 1834

Ao instalar uma cena de guerra no coração da mata virgem, Debret assume uma visão oposta às imagens exóticas que circulam por lá na época e fazem da floresta brasileira uma espécie de paraíso. Olhando mais de perto, me dei conta que Debret está retomando uma imagem que circulou amplamente na época, a famosa Floresta Virgem exposta em Paris em 1819 por seu autor, o Conde de Clarac, e difundida por toda a Europa pela gravura de Claude François Fortier feita em 1823.

Jean-Baptiste Clarac, “Floresta Virgem”, 1819

Pouco visíveis na imensidão da vegetação representada por Clarac, duas figuras atravessam um rio em um tronco derrubado. Vestido à maneira dos indígenas Bororo, o homem abre caminho seguido pela esposa carregando o filho. O conjunto respira calma e felicidade neste cenário sublime, as personagens estão “em casa” nesta natureza que a mão do homem ainda não violou. Tanto para o cartão postal.

Debret retoma essa imagem típica do exotismo romântico e a inverte. Ele opera um zoom, um close-up, para trazer diante do olhar do espectador a parte em que os índios circulam. E o que mostra? No mesmo grande tronco caído no abismo, igual ao que Clarac havia imaginado, ele acampa duas ameríndias prisioneiras e acorrentadas, escoltadas por três soldados armados. Como o comentário à imagem indica, os homens foram mortos e os soldados estão apenas trazendo de volta as mulheres e crianças como escravas. Texto e imagem contribuem para uma reversão total, irônica e desesperada.

A singularidade da imagem de Debret refere-se diretamente à violência do processo de colonização que empurrou os índios para as matas onde se refugiaram para escapar do trabalho forçado e da escravidão. Essa prancha e seu comentário abrem o livro de Debret como uma “cena primitiva” onde a violência que acompanhou a fixação dos europeus no Brasil aparece como a determinação fundamental de toda a história por vir. À mitologia romântica de Clarac, Debret opõe o teatro da história, onde se joga a verdade da colonização, a violência infligida pelos colonizadores aos nativos.

Esse “tableau vivant”, essa imagem performada de duas viúvas índias acorrentadas e arrastando seus filhos para uma nova forma de escravidão, impõe duas coisas distintas à consciência do espectador: a própria violência e o caráter encenado da imagem. Debret cria uma floresta-violência. Ele não visa o naturalismo, não pretende capturar um momento da vida na floresta: ele compõe, constrói uma demonstração que tem como tema a violência. Essa imagem não busca o plausível, ao contrário, por meio dessa teatralização, Debret impõe um distanciamento reflexivo do conteúdo violento, uma Verfremdung brechtiana. Mas esse dispositivo, Debret o coloca no lugar mais emblemático de sua obra: na abertura, para que funcione como contrato de leitura para o resto. Debret convida seu leitor-espectador a sair do suposto referente da imagem, ou seja, libertar-se do pictórico, para enfrentar a dimensão política das imagens que lhe oferece.

L.C.O. – Mais importante de tudo, como olhá-lo a partir do presente, sem, por um lado, negligenciar o ponto de vista do colonizador europeu, nem, por outro, a especificidade de um olhar que analisou criticamente todos os aspectos escandalosos do regime escravocrata?

J.L. – Requerer, como eu, que as imagens e os textos de Debret sejam cuidadosamente analisados ​​para minimizar mal-entendidos, não significa que Debret esteja isento das falhas ideológicas de seu tempo. Como seria isso? Ninguém escapa aos a priori de seu tempo. Mas se encontramos em Debret aspectos racistas ou colonialistas, encontramos também o seu oposto e um forte sentido de dignidade de todos os seres humanos. Podemos, portanto, apenas observar que Debret é ao mesmo tempo dividido e contraditório. Ele entendia perfeitamente que se os índios fugiam para as florestas, era para escapar da violência colonialista, mas não conseguia se livrar da ideia de que sua civilização europeia era superior e constituía um horizonte desejável para a evolução humana. Este é um limite que marca todo o Ocidente colonizador, mas também todas as culturas expansionistas que se sucederam nos cinco continentes. Os incas, os maias, os chineses também se julgam, em algum momento de seu destino, superiores às culturas que dominam, cada qual segundo seus próprios métodos. O extermínio dos nativos americanos pelos colonizadores brancos é um dos episódios mais trágicos dessa lógica dos mais poderosos.

Depois de tantas guerras, e as guerras atuais só podem reforçar essa visão, a humanidade está tentando sair dessa lógica mortal. É nesse sentido que me interesso muito pelos diversos artistas da jovem geração brasileira que realizam um trabalho crítico sobre as imagens produzidas pelos períodos colonial e imperial no Brasil.

L.C.O. – Mais recentemente, vemos uma enorme e muitíssimo interessante produção visual de artistas brasileiros, em sua maioria afrodescendentes – Jaime Laureano, Gê Viana, Dalton Paula, para citar alguns – que se apropriam criticamente da iconografia de Debret e deslocam o ponto de vista do colonizador, trazendo para a superfície formas outras de ver o que se “naturalizou” na vida social brasileira. Mais do que uma análise histórica, mostrando como foi o passado, trata-se de uma desconstrução do presente, no sentido da desnaturalização das narrativas hegemônicas de quem somos. Como para um historiador europeu, com larga vivência brasileira, dá-se este contato com esta re-visão contemporânea do Debret?

J.L. – Partilho plenamente deste interesse e penso que nos obriga a refletir sobre alguns aspectos que não deixarão de surpreender. Você usou as ideias de “re-visao” e “apropriação crítica”. Parecem-me bem adaptados ao tipo de trabalho que um certo número de artistas está a fazer atualmente. Trata-se de abrir caminho para novas visões ao invés de simplesmente retomar o discurso crítico usual sobre as imagens produzidas no passado. É uma estratégia que muitas vezes parece pular o exame crítico das imagens desse passado para oferecer ao imaginário contemporâneo algo “todo diferente”. A partir de então, a palavra “crítica” talvez assuma um significado diferente daquele dado pela tradição filosófica, da Antiguidade ao marxismo. Este é um tema muito complexo. Na obra de Gê Viana ou Dalton Paula, parece-me que se trata menos de desconstruir intelectualmente, à maneira dos anos 1960, conjuntos icônicos cuja ideologia seria acusada de reacionária ou ultrapassada. Vemos o surgimento de outro tipo de “crítica” que visa subverter todo um estrato sócio-discursivo, questionar um sistema de verossimilhança como um todo.

Vamos dar um exemplo, ou pelo menos partir do que entendi da série “Assentar” de Dalton Paula. O uso extremamente sutil que faz das imagens de Debret não pretende denunciar nestas uma espécie de cumplicidade com o colonialismo ou o racismo. Dalton não leva Debret a julgamento, e acho que faz todo sentido, pois tal julgamento, para ser sério, envolveria uma análise aprofundada das imagens. Seria preciso levar em conta a ironia, o que sempre se revela muito complexo, pois o próprio Debret, em sua explicação desta imagem, “Regresso de um proprietário de chácara”, onde vemos o dono carregado por seus escravos numa rede, denuncia a absurda vaidade desse meio de transporte. Não é, portanto, nesse nível crítico que Dalton aborda essa imagem.

Dalton Paula, “Assentar volta à cidade de um proprietário de chácara”, 2019, nanquim e aquarela sobre papel, 25 x 40 cm, foto: Paulo Rezende

Assim como Gê Viana, Dalton Paula nota que as imagens reunidas na chamada “Brasiliana” fazem hoje parte de um imaginário que congelou a violência do passado em representações cuja escala de disseminação torna quase impossível questioná-las de maneira simples. Parece-me, portanto, que esses artistas optaram por outra estratégia, aquela que eu chamaria de “faire um pas de côté”, “afastar-se” ou mudar de registro. Enquanto estratégia, isso me lembra a figura de Paul Lafarge (1842-1911), genro de Karl Marx e fundador com Jules Guesdes do Partido Operário Francês, o primeiro partido marxista da França. Contra a exploração capitalista, Lafarge publica um panfleto intitulado O direito à preguiça (1880). Lafarge se levanta contra a ideologia do trabalho, insidiosamente propagada pela religião e pela classe dominante, e que ocupa um lugar importante nos argumentos do próprio movimento operário. Lafarge denuncia essa estranha loucura: o amor ao trabalho. Reivindicar o direito à preguiça tenta frustrar esse fascínio pelo trabalho, que a priori condena o impulso libertador da revolução social.

Gê Viana, “Homens cultivam plantas e cogumelos em sua moradia. Com o forte cheiro das plantas em torno passarinhos se aproximam tentando aproveitar do licor das flores”, da série “Atualizações traumáticas de Debret”, 2020, colagem digital

Tenho a sensação de que esse tipo de estratégia, usada por Dalton na sua série “Assentar” e de uma certa maneira por Gê com os seus cogumelos gigantes, implementa novas estratégias de imagem: ricas, inventivas e, sem dúvida, que questionam algumas de nossas rotinas intelectuais.

L.C.O. – Há nesta produção contemporânea, a meu ver, um ir além da denúncia, apostando em uma espécie de fabulação histórica que arranca o passado da sua lógica dos fatos para inventar outras relações de força a partir do presente. A artista Josi, uma das premiadas do PIPA em 2022, tem uma expressão para falar do seu trabalho, que me parece bem apropriada aqui neste contexto – ela fala em “quaramento reverso”. Quarar as roupas significa embranquecê-las, retirar todas as manchas, purificá-las. Sua reversão é a apropriação das manchas, deixá-las impregnar-se no tecido (social) e transformar visualmente a branquitude. Inverter poeticamente o valor do puro e do impuro, apostar nas impurezas do passado, para que algo se abra no presente. Poderia falar um pouco sobre como você vê isto a partir do debate pós-colonial tão importante globalmente?

J.L. – Concordo completamente com você. Assistimos, na obra de muitos artistas, à tentativa de sair das armadilhas da retórica da denúncia que muitas vezes acaba por reforçar o sistema do qual se pretende emancipar-se. Acho muito estimulante o uso feito por Josi, que você cita, da ideia de “inversão” e “reversão”. Os artistas inventam noções na medida em que se sentem confinados naquelas que saturam o discurso crítico estabelecido. A ideia de “quaramento reverso” pretende não só contrariar o mito da brancura e pureza, mas de forma mais radical dar espaço e dignidade a estes minúsculos vestígios que fazem história tanto quanto as figuras maiúsculas do poder. Esta foi chamada a “visão dos vencidos”, desenvolve-se hoje sob o nome de “estudos subalternos”. Trata-se de fortalecer ferramentas teóricas e estratégias para abrir espaços imaginários ainda inexplorados. Na palestra que dei sob o título “Reler/Rever as imagens de Debret”, citei a artista samoana Youki Kihara, que usa a noção de “upcycling” que toma emprestado do vocabulário da luta ecológica. Com isso, designa a ação de retomar imagens que a cultura de massa popularizou a ponto de perderem toda verdade e toda eficácia, e de reinfundí-las com um novo espírito crítico. Vejo isso como uma maneira muito interessante de reler as imagens de Debret. Perante as dificuldades inerentes à representação do passado, parece-me fascinante ver como todos estes artistas procuram formas de enfrentar o imaginário que foi construído ao longo do tempo sem cair num confronto reativo, que rapidamente se tornaria estéril porque reduz toda a complexidade a uma luta do bem contra o mal. Também a sua expressão “apostar nas impurezas do passado” parece bem-vinda para mim. Ela me lembra o poeta e pensador da Martinica, Édouard Glissant, escrevendo no limiar de seu grande livro Le Discours antillais: “o mundo, em sua unidade fragmentada, não exige que todos se esforcem para a reconhecida opacidade do outro?”. Não se trata mais apenas de reverter o discurso opressor, trata-se de aprofundar a consciência de que toda verdadeira libertação envolve ser capaz de enfrentar as sombras da ambiguidade.



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