Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, comenta neste texto a quase participação de Duchamp na exposição inaugural do MAM-SP, em 1949. Esse fato, pouco conhecido, se deu pela política de aproximação com o MoMA e artistas norte-americanos ligados às tendências abstratas. No texto, Osorio também discorre sobre o trabalho de Duchamp como artista e curador: “depois de Duchamp não há uma desmaterialização, mas uma multimaterialização da arte”.
Leia o texto completo abaixo.
“ – Mas Vossa Excelência já entendeu: como dizíamos antes: existe a moda, que é uma ideia que passa rapidamente por muitos espaços, mas não avança no tempo. E há as outras ideias…”
– Gonçalo M. Tavares
É dessas outras ideias que quero falar aqui. São duas histórias em uma. A atuação de Marcel Duchamp como curador a partir dos anos 1930 e a sua (quase) participação na curadoria da exposição inaugural do Museu de Arte Moderna de São Paulo (1949). Este segundo ponto é mais curioso por tratar-se do Brasil, mas o que mais me interessa é discutir o papel aparentemente marginal da curadoria junto ao fazer artístico de Duchamp. Mas é só aparentemente mesmo, pois como lemos no livro notável da pesquisadora e curadora Elena Filipovic, publicado em 2016 pelo MIT Press, intitulado The Apparently marginal activities of Marcel Duchamp, esta faceta era crucial. Cabe dizer que é algo intrinsecamente ligado à sua poética e será determinante para o desenvolvimento das curadorias no mundo contemporâneo.
Foi o mesmo artista que teria se desconectado das convenções tradicionais do fazer artístico e causado algum desassossego na Sociedade dos Artistas Independentes de Nova York, em 1917, com o envio (usando um pseudônimo) de um urinol, que inaugurou um tipo de gesto curatorial que tornar-se-ia exemplar no futuro. Justamente por sua “obra” ser totalmente desajustada aos padrões tradicionais, Marcel Duchamp viu-se obrigado a inventar novas formas e modelos expositivos que dessem alguma visibilidade ao que parecia impossível de ser visto como arte. Não bastava criar as obras, era necessário criar para elas uma situação artística.
Esta preocupação curatorial não deve ser vista neste caso como algo externo ao fazer da obra, mas como um desdobramento estratégico que constrói as articulações de sentido que com o tempo irão perpassar nossos modos de ver a arte. Não é algo intempestivo, mas que vai maturando um devir poético singular que constituirá possibilidades de experiência até então descabidas. Por exemplo: qual o momento em que podemos associar um urinol em uma exposição à ironia e não ao absurdo? Isto leva tempo, estas condições não são criadas da noite para o dia. Há antecedentes e há desdobramentos que vão se constituindo a partir de uma ideia de arte que vinha se materializando historicamente e que Duchamp soube fazer germinar. Da criação dos Salões de Arte Independentes em Paris em 1884 à legitimação histórica dos ready-mades nos anos 1960 foram quase 100 anos. Duchamp percebe uma radical flexibilização do conceito de arte, quando, em 1913, em uma nota daquilo que seria publicado mais tarde em sua Caixa Verde, escreve – “como fazer uma obra que não seja uma obra de arte”.
Isso já aponta para a revisão de um argumento bastante recorrente depois do surrealismo de que é o artista quem faz a obra, seu gesto criativo arbitrário é capaz de fazer de um objeto ordinário como um urinol, uma obra de arte. Este arbítrio do “artista genial” pode até ser necessário, mas não é suficiente. É fundamental criar as condições de percepção e exposição de uma coisa-qualquer como arte. Uma questão complexa, mas que não se resolve apenas dizendo que é arte aquilo que o artista diz que é.
Outro argumento recorrente que vem na esteira deste urinol é o de que há sempre um valor de escândalo e de polêmica no atrito da “antiarte” com o museu ou as instituições. Não houve, no caso da Fonte duchampiana (título original do urinol), escândalo algum. O trabalho foi retirado da exposição dos artistas independentes de Nova York em 1917 antes da abertura, ninguém viu, além de uns 4 ou 5 membros da comissão organizadora, nem se falou dele como um assunto crítico relevante. Restou apenas uma fotografia feita por Alfred Stieglitz em sua galeria 291, importante refúgio de artistas modernos norte-americanos, a pedido de Duchamp. Depois o objeto simplesmente desapareceu. Fechada a exposição, o próprio Duchamp escreve um artigo na revista alternativa Blind Man de maio de 1917, reproduzindo essa fotografia e defendendo o gesto artístico do tal Richard Mutt. O mais relevante neste processo de envio, recusa e defesa crítica da Fonte, por parte de Duchamp, foi ter conseguido transformar uma coisa qualquer, no caso um urinol, em uma possibilidade de arte. O salto foi dado e o desamparo instalado.
Outro ponto crucial daquele pequeno artigo em defesa de Richard Mutt é quando nele Duchamp equaciona produzir e escolher. Ou seja, é menos o fazer, o fabricar, que determina a singularidade da arte, mas a capacidade de escolher algo, deslocá-lo de suas funções ordinárias e criar aí outras maneiras de percebê-lo e compreendê-lo. Arte passa a ser menos ligada à produção de objetos, mas sim à escolha que gera novas formas de relação e outras possibilidades de circulação e compreensão para os objetos. O que vemos está sempre em situação, produzindo relações, reinventando formas de estar no mundo. O gesto criativo e o gesto curatorial não se confundem, mas se complementam. O valor expositivo da arte ganha uma nova articulação e passa a corresponder a um regime estético no qual a linha que separa arte e não-arte fica bastante fluida. Mais do que isso, a materialidade das obras ganha múltiplas camadas e agregações. O texto de artista, por exemplo, que era sempre subsidiário, passa a poder assumir uma nova função poética, não sendo mais apenas sobre a obra, mas parte dela. Depois de Duchamp não há uma desmaterialização, mas uma multimaterialização da arte.
Dito isso, uma ressalva importante. A possibilidade de existirem os ready-mades duchampianos e eles serem determinantes para a arte contemporânea, na intersecção do singular e do banal, não implica que as formas tradicionais de arte deixariam de existir. Ele inclui uma nova possibilidade de arte e não exclui as existentes. Basta entrar em um museu hoje: pinturas, esculturas e suas derivações híbridas seguem existindo, algumas instigantes, outras irrelevantes, como sempre. Mesmo que o próprio artista tenha falado de uma arte anti-retiniana, o ponto é muito mais como se vê a arte e não uma destituição do lugar da visão. Além disso, não devemos esquecer do seu papel como marchand, vendendo obras de Mondrian, Brancusi e Picabia, entre outros, para colecionadores americanos, assim como seu interesse inicial pela pintura de Jackson Pollock – a coleção de Peggy Guggenheim, por exemplo, deve muito a ele.
Já que falamos do Pollock, concentraremos agora neste episódio conturbado da participação de Duchamp na exposição inaugural do MAM-SP. Como é sabido, ambos os museus de arte moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo surgiram em 1948, como parte da política de boa vizinhança estabelecida pelo governo norte-americano no imediato pós-guerra. Havia um anseio de intelectuais e artistas brasileiros para que fosse criado um espaço institucional para a arte moderna. Os ecos dos atritos causados pela exposição de Anita Malfatti antes da Semana de 22, as dificuldades nas décadas seguintes de efetivação de um repertório moderno nas artes visuais, o sucesso de nossa arquitetura culminando na exposição Brazil Builds no MoMA em 1943 e os ares de redemocratização do mundo ocidental depois da derrota nazi-fascista em 1945, tudo isso soprava a favor da criação dos museus de arte moderna.
O MoMA-NY, criado em 1929, era a grande referência e serviria de modelo para o desenho institucional dos seus pares brasileiros. Daí terem sido criados como instituições não estatais, ligadas à sociedade civil, a serem financiadas pelos grandes industriais da época e cotas mensais de associados. O que funcionava nos EUA não necessariamente funcionaria aqui, como vimos, mas isso são outros quinhentos. Em 1946, Nelson Rockefeller fez uma doação inicial de 10 obras de artistas modernos que seriam divididas entre Rio e São Paulo; era o pontapé inicial das coleções, até que em 1948 foram inaugurados os dois museus de arte moderna, das duas principais cidades brasileiras, sob o comando, aqui no Rio, de Castro Maia e, em São Paulo, de Ciccillo Matarazzo.
O primeiro diretor do MAM-SP foi Léon Degand, crítico belga que foi o responsável pela primeira exposição do museu, cujo foco seria contar a história da arte abstrata desde Kandinsky até o final dos anos 1940. O título inicial da exposição – Tendências atuais da plástica à não figuração – no final ganharia outro título, ainda mais careta: Do figurativismo ao abstracionismo. Dada a política de aproximação com o MoMA foi decidido que haveria uma curadoria de artistas norte-americanos, ligados às tendências abstratas; curadoria esta que seria feita por Marcel Duchamp e por Sidney Janis (à época ligado ao MoMA – depois tornar-se-ia um importante galerista em Nova York). Junto aos dois veio outra figura que em breve seria determinante na cena americana, o galerista Leo Castelli, que acabaria assumindo o envio das obras para o Brasil.
A pessoa responsável pelos contatos e pela logística da exposição era o galerista parisiense M. Drouin, que assumiria a responsabilidade financeira de tudo por indicação de Matarazzo. A exposição teria três seções inicialmente. Uma primeira apenas documental, com reproduções coloridas de artistas modernistas do impressionismo até o cubismo. Uma segunda seção de artistas que se inspiram na natureza exterior e desconstroem-na em uma composição não-figurativa – Klee, Miró, Arp, Léger, Brancusi etc. Uma terceira e última seção de artistas abstratos, compreendendo desde os pioneiros – Kandinsky, Mondrian, Delaunay, Malevicth, Lissitzky, Kupka, Magnelli entre outros – até os mais contemporâneos, como Deyrolle, Verzclay, De Stael, Piaubert, Lardera entre outros. A contribuição de Duchamp e Janis viria, não só conseguindo obras dos pioneiros, como, mais substancialmente, da geração de artistas jovens abstratos americanos. Pela lista acima, vemos o quanto isso seria importante para a exposição.
A primeira seção foi abolida. Não era possível conseguir boas reproduções coloridas em Paris no pós-guerra. Por fim, a remessa americana teve que ser cancelada na última hora por confusões do galerista Drouin, que não repassou US$ 1800 para o envio das caixas com as obras. A troca de telegramas envolvendo Leo Castelli, um representante de Matarazzo em NY e o próprio Ciccillo é intensa. Depois de tudo embalado para envio, foi suspensa a participação dos americanos. Degand, na sequência, escreve a Drouin revoltado com estas confusões, pois mais até do que não enviar as obras americanas, ele havia retirado as esculturas da Escola de Paris, o que prejudicava sua parte na exposição.
Vemos nesta reclamação de Degand que sua preferência era de fato pela participação da arte parisiense, mostrando-se desinteressado pelos americanos. Em comentário escrito a Ciccillo Matarazzo ele chega mesmo a dizer que a ausência destes jovens abstratos de Nova York não prejudicaria a exposição, pois tinha dúvida sobre a qualidade do que faziam. Esta hesitação, diga-se de passagem, não era só dele. O próprio Mario Pedrosa, muito mais perspicaz que o belga, mantinha suas reservas a Pollock e De Kooning, taxados de informais e carregando as tintas na expressão gestual considerada muito subjetivista.
Em carta que Duchamp escreve a Matarazzo, falando sobre a sua seleção de artistas americanos, ele observa: “da minha parte devo dizer que as 40 telas que reunimos formam um conjunto muito representativo do movimento abstrato nos Estados Unidos. Aliás, nós acrescentamos alguns semi-abstratos para tirar a monotonia de um certo rigor teórico”. Em seguida ele acrescenta que estas pinturas são pouco conhecidas fora da cena americana e se impõem por seu valor. A lista de obras compilada por Duchamp, Janis e Castelli estava dividida em três partes: 1 – Pioneiros americanos (Arthur Dove, Katherine Dreier, Lyonel Feininger, John Marin, Georgia O’Keeffe, Joseph Stella, Man Ray); 2 – Novos abstratos americanos (uma longa lista, contendo obras de De Kooning, Pollock, Motherwell, Gorky, Hofmann, Tobey, Gottlieb, Reihardt); e 3 – Pintores e escultores variados – (Miró, Tanguy, Ozenfant, Mondrian, Lissitzky, Malevich, Schwitters, VanDoesburg, Gabo, Maria Martins, Calder, Lippold, Pevsner, David Smith).
Resumindo: a seleção feita por Duchamp seria a melhor parte da exposição, a mais surpreendente certamente. Os jovens abstratos americanos eram pouco conhecidos ainda, mesmo o MoMA quase não tinha adquirido obras destes artistas, que só estourariam a partir do começo da década de 1950. Para um artista que se dizia anti-retiniano, parecia uma escolha visualmente poderosa. Uma pena que esta mostra curada por Duchamp, Janis e Castelli não tenha vindo inaugurar o MAM-SP e o público teve que esperar até a Bienal de 1957 para ver um conjunto forte de artistas americanos. Teria sido também uma boa oportunidade de se estreitar as relações não só com Duchamp, que nesta altura já havia feito a curadoria de duas exposições importantes dos Surrealistas em Paris e NY. Como também com Sidney Janis e Leo Castelli, ambos se tornariam nas décadas seguintes galeristas fundamentais, responsáveis em grande parte pela circulação e comercialização da experimentação mais radical na arte do pós-guerra. O MAM-SP poderia ter assumido um protagonismo parecido com o do Moderna Museet de Estocolmo não fosse a insistência de Léon Degand com a Escola de Paris. Ele acabou ficando menos de um ano como diretor do museu e a exposição de abertura, inaugurada em março de 1949, intitulada Do Figurativismo ao Abstracionismo mostrou-se bastante conservadora em comparação ao que poderia ter sido se houvesse incorporado as obras selecionadas por Duchamp vindas dos Estados Unidos.

Estudo para a fachada posterior do pavilhão. Luís Saia [Acrópole, n.157, mai.1951 / Arquivo Histórico Wanda Svevo – Fundação Bienal de São Paulo]
A função-curador exercida por Duchamp foi extremamente criativa e radical, vindo do seu “museu portátil” de 1936-1942, passando pelas várias exposições surrealistas e os demais experimentos expográficos. Apesar de pouco conhecida, esta atuação é da maior relevância para propor novos modos de exposição para um tipo de arte (recorrente depois dos anos 1960) que requer uma atmosfera menos contemplativa e mais arrojada. Neste momento em que se discute o papel das curadorias é um exemplo a ser debatido.
Luiz Camillo Osorio
PS – Meus agradecimentos a Leia Carmen Cassoni coordenadora da Biblioteca do MAM-SP pela sua ajuda com esta documentação da exposição inaugural.