Ocupação dos Artistas Selecionados 2021: Marcela Bonfim

Bem-vindos à Ocupação dos Artistas Selecionados do PIPA 2021! Até o dia 16 de outubro, os selecionados “abrem as portas de seus ateliês” para o público virtual do Prêmio PIPA, com vídeos, fotos e textos exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 27 de setembro a 02 de outubro, Marcela Bonfim fala sobre sua trajetória no meio artístico, o que tem produzido, além de apresentar trabalhos recentes. Ao final da ocupação, está programado também como parte do exposição virtual uma conversa na plataforma Preview (da qual o crítico e curador Gabriel Pérez-Barreiro é um dos fundadores) com o Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto, para falar sobre os selecionados e as recentes mudanças do PIPA.

Nesta 12a edição, o Prêmio PIPA traz um novo formato, sendo direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há dez anos. O foco do PIPA 2021 é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada. O material abaixo está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas InstagramTwitter e Facebook.

E lembre-se que os Artistas Selecionados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, ao lado dos Vencedores do Prêmio PIPA 2020. A mostra está aberta até o dia 20 de novembro. Será um prazer te receber por lá!


Dia 01:

Marcela Bonfim
Porto Velho, RO, 1983
Vive e trabalha em Porto Velho, RO

Indicada ao Prêmio PIPA 2021
Artista Selecionada Prêmio PIPA 2021

Sabemos de fato quem somos? Quantas vezes nos olhamos no espelho e identificamos ali nossos traços ancestrais? Algumas pessoas criam uma imagem que não as representam, mas que são aceitas pela sociedade ou por vezes preferem, simplesmente, quebrar o espelho e não se encarar. Muitas vezes esse espelho foi quebrado pela fotógrafa Marcela Bonfim, paulistana da cidade de Jaú, 38 anos, hoje reconhecida como mulher negra e moradora na cidade de Porto Velho, em Rondônia há 11 anos.

Assista o vídeo produzido pela Do Rio Filmes este ano, em que Marcela fala sobre seu trabalho e trajetória artística:


“Formada em economia pela PUC-SP, a militante pela causa das populações negras e povos tradicionais era outra Marcela até os 25 anos. Ela se considerava uma negra embranquecida, acreditava no discurso da meritocracia. Ouvia dos pais que se estudasse conseguiria ter um bom emprego e ser feliz. Também baseado nesse discurso criticava as políticas de ações afirmativas, como as cotas raciais, e dizia que eram mais uma demonstração de preconceito e racismo, palavra essa que não enxergava dentro da sua realidade.

Marcela vestia por cima da pele alguns disfarces para ser aceita. Na turma do colégio recebeu o título de a mais engraçada, era a palhaça da sala de aula, a mais risonha, e assim a economista levou a vida. Acreditou em um mundo possível, com portas abertas e livre circulação, sem nenhum impedimento. Mas ela se enganou e foi durante a busca pelo primeiro emprego que o mundo dela ruiu e os disfarces não funcionavam mais, a cor da sua pele agora estava a mostra.

Já em Rondônia, para enfrentar sua negritude, Marcela comprou um máquina fotográfica, em 2012, e começou a fotografar homens, mulheres, crianças, jovens e velhos negros e negras na Amazônia em comunidades quilombolas, rituais de terreiros de candomblé, festejos religiosos, penitenciárias. O registro também buscou retratar o negro em seu emprego, na grande maioria exercido em atividades domésticas.

As lentes também captaram a resistência pela preservação da cultura e costumes e a beleza da estética negra. A fotografia foi um resgate da própria identidade de Marcela enquanto mulher negra e foi na Amazônia que ela “enfrentou” a cor de sua pele”, diz a biografia de Marcela na página dela.

Essas fotografias deram origem à série “(Re)conhecendo a Amazônia Negra”, em que Marcela dá visibilidade à ancestralidade negra na região Norte do país:


Dia 03:

“Por que ser só uma?”

Para a Ocupação dos Selecionados, Marcela produziu um vídeo exclusivo em que caminha pela beira do rio Madeira, em Porto Velho, onde mora, enquanto reflete sobre valores de vida e possíveis contradições. Veja o vídeo completo abaixo:


Dia 04:

Outra série de fotografias de Marcela é “Madeira de dentro, madeira de fora”, em que ela registra construções típicas de cidades de beira de rios, na região Norte do país, fragmentos da floresta amazônica, além de imagens do cotidiano. Veja abaixo:


Dia 05:

Todo ano, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversa com os vencedores das categorias do Prêmio PIPA. Este ano, Marcela Bonfim foi uma das entrevistadas por Osorio. A artista falou sobre a decisiva saída de São Paulo para Rondônia, onde começou a fotografar os moradores da região amazônica dois anos após sua chegada na região Norte.

Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Marcela Bonfim

LCO – A sua formação se deu em São Paulo, em economia, depois é que você foi para Rondônia. Como foi a decisão para se tornar artista? 

MB: Acredito que não foi uma decisão propriamente dita. No entanto, migrar para Porto Velho, em 2010, sim. Sendo essa, a única decisão que tive condições de tomar naquele período, finalmente me afastando das luzes de SP e dos violentos impactos entre a minha cabeça e o chão daquele lugar. O ano de 2009 foi marcado como uma temporada de dolorosas e insistentes cabeçadas; inclusive, assistidas por pessoas próximas e distantes; de vários ângulos; umas do lado de dentro, outras nem tanto; outras do lado de fora; e outras ainda de lado nenhum, apenas acompanhando as cabeçadas de uma mulher preta enegrecendo o senso de realidade, como se acordasse no instante do naufrágio.

Prosseguindo com os lugares e sentidos dessa questão; eu poderia supor que a artista veio dos instantes em que a cabeça se arriscou de cima a baixo; entre oscilações que só não me levaram à loucura por um fio muito tênue; assim, suportando as provas à beira dos meus próprios limites. A exemplo de uma entrevista com o ‘futuro chefe’, ainda em SP, onde fui dirigida à cozinha após a clara mudança de planos do anfitrião, anunciada no exato clique entre o nosso encontro. Fazendo da minha experiência como imagem, um repositório de pesos e desconfortos. Hoje tocados e refletidos aos nossos cuidados, dentro do campo da fotografia com a dignificação de nossos corpos-limites, agora, expandidos às faculdades da razão.

2 – Há anos atrás, no começo dos anos 2000, acho que em 2004, estive em Porto Velho em um projeto da Funarte. Visitei artistas locais e junto com dois artistas aqui do Rio de Janeiro (Cabelo e Paulo Paes) fizemos alguns workshops e participamos da premiação de um salão de arte local. O artista vencedor foi uma artista trans que fazia uns desenhos muito interessantes. Gerou muita polêmica, aparentemente, pois era uma cena muito conservadora, a cidade ainda muito marcada pelo garimpo com as marcas evidentes do extrativismo: alguns carrões nas ruas e nenhuma infraestrutura, uma desigualdade exponencial. Como foi sua chegada e adaptação neste contexto?

Posso dizer que esse processo foi um mergulho de cabeça e de olhos abertos nas contradições minhas, do lugar e das perspectivas da Amazônia. Transparecendo ao meu imaginário, nítidos desencaixes e espaços vazios, despertados aos sustos, toda vez em que me sentia atravessada pelo senso de realidade. Tendo como reflexo o tempo, os espaços e as relações e o dito desenvolvimento; agora; sentido do lado de dentro desses tantos lugares que é a Amazônia. 

Descrevendo a imagem, comparo a chegada a Porto Velho, a um baque. Só que agora, diferente do impacto do chão, o que chocava à cabeça era o peso das distorções pressionadas aos meus sentidos. Levando um tempo para assentar os desequilíbrios e para eu perceber as dimensões de um tempo que se apresentava por si, mais próximo ao meu corpo. 

Aqui recomecei a vida; sem imaginar que acolher as sombras se tornaria tão especial quanto perceber as minhas contradições, tão tênues às minhas potências, emergidas aos poucos dos confins do meu desconhecimento. Refletidos aqui, em Rondônia, neste tempo que, além das relações, apreendi bonitos e verdadeiros encaixes afetivos, como também me compreender como sendo fruto daqui.

3 – A Amazônia negra é desconhecida dos brasileiros e do mundo. Fale mais sobre seu projeto Reconhecendo a Amazônia Negra. Como está sendo este mergulho numa memória tão rarefeita e, pelo que vemos no seu trabalho, tão poderosa? Qual a participação do fracassado projeto da ferrovia Madeira-Mamoré nesta migração negra que você está pesquisando? 

Se eu pensar nesse poder como fruto da memória e a memória, por sua vez, fruto de alguma forma de imagem, eu me organizo com mais potência do lado de dentro desses lugares; exercitando as minhas próprias imagens junto a estes tantos contextos, desde os sons que chegam até mim todas as manhãs, comunicando a imagem do clima na frequências dos pássaros; até a ausência desses cantos, alertando indesejáveis manchas de soja e fuligem no ar; sugerindo que talvez o verdadeiro fracasso da história seja a própria continuidade desses projetos difundidos na imagem do desenvolvimento.

Nesse aspecto, ter a Madeira-Mamoré presente nesta reflexão visual, é ter a consciência do fracasso, dos genocídios, como também das forças aliadas à terra. Ela permanece até hoje aqui como cultura, costumes e influências que seguem feito o fluxo de um Rio, com suas memórias interiores às águas que chegam e que vão, mas que se fixam como fruto-raiz. 

Assim, senti a potência das imagens locais, ao ser identificada barbadiana; ascendendo à flor da minha pele, a curiosidade sobre as frequentes imagens trazidas pela cidade, ao me associar às famílias ‘Johnson’;Maloney’ eShockness’; crescendo em mim a necessidade de pensar sobre essas imagens e o desejo de ver como seriam essas feições. 

O primeiro clique desse processo não foi meu. Os créditos são de Porto Velho. 

Isto é, as imagens apontadas pela cidade aos poucos me abriram à multiplicidade de corpos negros encaixados aqui; vindos de todos os cantos do Brasil, e de outros países, como essas famílias desembarcadas das antigas ilhas inglesas caribenhas. Significando para mim tanto a porta de entrada da Amazônia Negra quanto o princípio pela busca da consciência das imagens que vivo; que penso; que sinto; que sou.

4 – A fotografia no seu trabalho tem ao mesmo tempo uma dimensão documental e uma força visual grande. Como você lida com estas duas direções? O quanto você precisa fabular, ficcionalizar, para ser verdadeira com uma memória tão invisibilizada?

Penso que a dimensão documental e a força visual são em si a própria imagem. A única coisa que cabe a mim é posicionar-me diante do contexto em que estou da maneira mais próxima. Exercendo o olhar como mais uma camada dessa imagem que já existe; daí a questão: Qual é a camada em que estou nessa composição? Quem sou? O que estou fotografando? Qual a minha relação com essa imagem? 

Assim, tenho para mim que a estética, a política e a geografia são por si o próprio lugar; isto é, a própria composição da imagem. Enquanto eu? O que eu represento em relação a tudo isso? São questões presentes no cotidiano da fotografia que exerço dentro do mundo das relações de futuro: corpo-espaço-tempo. 

Neste aspecto, percebo a ficção como a própria humanidade e o mundo surgindo dessa gigantesca fábula imagética, onde me encontro toda vez que penso no passado, no presente e no futuro. Ela se dá toda vez que exerço o meu caminhar dentro do que percebo existir nesses símbolos, junto ao que absorvo como uma imagem negra. Trata-se de um verdadeiro tabuleiro de peças mais conscientes, permitindo lidar melhor com os impulsos; agora, refletidos, em lugar de espremidos, acomodando e confortando os meus cacos. E eu cuidando da minha saúde mental.

5 – Você tem trabalhado também com poesia, performance, teatro. Como têm sido estes desdobramentos? Fale-nos, por favor, sobre o projeto “Madeira de dentro, Madeira de fora”? Como ele está sendo desenvolvido e qual a integração da comunidade nos seus projetos?

Imagem é dúvida, contexto, cheiro, desejo, ensejo, conquista, cultura, ternura, liberdade; e suportes como o teatro, performance, música, que atravessam a noite fazendo da ideia escura uma possível cena de paz, apenas no ato de tocar. Por que não poderia ser a noite a verdadeira imagem da paz? 

Esta forma de pensar me leva crer que, o que se vê é cria do ar, não dos olhos; sendo os pulmões responsáveis por receber todas essas informações, tocadas a cada respiro, suspiro; inspirar; tendo em vista sempre o contrário, uma vez que só existe a liberdade porque inventaram a prisão. E tudo isso acontecendo dentro e fora da imagem. 

“Madeira de Dentro. Madeira de Fora” é como os braços da Amazônia Negra. Ela trata do alcance do ar, como também dos rios, da terra, do fogo e das tantas Amazônias em seus diversos contextos e lugares; culturas e raízes; multiplicidades. Por fim, reduzidas politicamente a uma nomenclatura? E a madeira e suas infinitas espécies e origens, enxugadas à ideia utilitária de suporte? Tudo isso podemos repensar a partir da imagem no exercício do tempo, do espaço e das relações de futuro. 

Esse processo traz a segurança de pensar a comunidade do lado de dentro da câmera, exercitando comigo a visualidade na construção da fotografia, que depende apenas da minha posição e, sobretudo, da minha carga imaginária. Tornado o clique efêmero, quando o assunto se trata do que é criado antes do ato da fotografia, sempre à superfície da imagem, sendo a comunidade esse miolo onde se concentram as energias. Enquanto reorganizo a ideia de propriedade, com meu corpo de suporte desta discussão, quando ainda percebo não ter domínio sobre o que gostaria de expor sobre as minhas sensações. Isso me leva a pensar a comunidade presente na autoria destas criações, me abrindo à possibilidade de imagens que finalmente libertem a minha própria ideia de imagem negra; porque tudo são relações…  

6 – Como foi para você e sua obra esse período da pandemia? O que não será mais igual?

Costumo pensar que tudo muda o tempo todo. Então nada será igual para sempre; sobretudo, num período como este, bastante difícil de mensurar e comunicar até o que se enxerga a olho nu. Sem contar os ângulos restritos, como os que marcam a minha posição de uma mulher negra, vivendo todo esse período de caos dentro de uma casa, situada numa comunidade às margens do Rio Madeira, em Porto Velho, Rondônia. Tendo noção desses limites, mas já entendendo que não ocupo o mesmo lugar desde ontem, até por conta das buscas do dia-a-dia. Pelos constantes reencaixes das ideias, do corpo e dos sentidos que a pandemia tem apontado, cá estou eu, do lado de dentro e de fora, me reorganizando…  


No último dia de Ocupação de Marcela Bonfim, leia o texto crítico de Alessandra Simões sobre o trabalho da artista.

A fotografia-corpo de Marcela Bonfim

O filósofo Achille Mbembe, no livro Crítica da Razão Negra, afirma que uma das funções da arte é “preservar a esperança de sair do mundo tal como foi e tal como é, de renascer para a vida e de renovar a festa” (n-1 edições, 2018, p. 299). Em sua visão, a obra de arte nunca teve por função primordial simplesmente representar, ilustrar ou narrar a realidade; sua natureza é embaralhar e mimetizar de uma só vez as formas e as aparências originais. É desta maneira que se compõe a obra da artista Marcela Bonfim, paulista que migrou há mais de dez anos para Porto Velho, capital de Rondônia, onde vem construindo uma expressiva iconografia da presença negra na Amazônia. Ao longo de incursões também pelo Amazonas, Pará, Maranhão, Acre e fronteiras da Bolívia e Peru, Marcela seguiu a sina de uma senhora dos caminhos, divindade de suas próprias encruzilhadas que passou a entrelaçar vida e arte, cumprindo assim a dimensão relacional citada por Mbembe. 

O percurso desta existência, transformada pelo reconhecimento da potência de seu corpo negro e marcada por uma imagética-etnográfica de expressiva força poética, ganhou corpo quando, em Porto Velho, Marcela comprou uma câmera fotográfica, inaugurando uma nova cosmovisão para si. Naquela época, ela ainda era uma economista recém-formada que sonhava em comprar coisas e que acreditava na meritocracia. Ainda descortinando o véu que lhe cegava as dores e delícias da condição de mulher negra e a possibilidade de uma visão de mundo mais profunda, a artista começou a descobrir uma Amazônia da cor da sua pele. Então, apossada de seu corpo-política no processo de construção de uma fotografia-corpo, passou a registrar a iconografia amazônica negra, delineada pela escravização dos corpos negros, e mais tarde pelas sequenciais ondas diaspóricas negras; demarcadas a partir do século 18 e hoje presente na memória e nas feições dos quilombolas do Vale do Guaporé, dos descendentes afro-caribenhos, dos migrantes do norte e nordeste e dos recém-chegados haitianos e venezuelanos. 

Quando criança, a menina Bonfim, que questionava seu pai sobre a origem de seu sobrenome – nome de fazenda, dizia ele – hoje recebe o tratamento honroso de uma artista na plenitude da força e consciência estética e ética de sua obra e de si mesma. É assim que ela foi representada em uma pintura que adorna as paredes de sua casa à beira do rio madeira, um rio que tem “banzeiro” e traz fluidez para a vida desta ribeirinha urbana. A obra, intitulada Moça do Bonfim, feita pela artista amiga Margot Paiva, coroa a beleza de Marcela com pinceladas que alongaram expressivamente seu pescoço para representar a altivez de uma barbadiana. “É assim que você deve andar, como uma barbadiana”, disse a amiga. Em Rondônia, são chamados de barbadianos os descendentes dos antilhanos que para lá migraram, principalmente, em função da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Em sua grande maioria, pessoas negras delineadas por uma beleza intensa que reflete a dignidade de suas personalidades. Como uma imagem muito bem-vinda, Marcela nunca mais se sentiu só.

Seus retratos impressos sobre a madeira desvelam a alma de homens, mulheres e crianças (ela está sempre rodeada de muitas crianças!) humanamente presentes na imagem, invertendo a dualidade da lógica ocidental da divisão entre sujeito e objeto. Na Amazônia, a artista trocou a velocidade por outro tempo, o tempo do afeto.  A cada pessoa fotografada, uma conversa surge, em confissões trocadas que costuram a história do povo negro amazonense. Em vez de imagem-representação, suas fotografias são imagem-vida que lançam a clássica pergunta: como ver o que nos olha? Afinal, não somos nós que miramos as fotografias de Marcela; são elas que nos espreitam, revelando que o lugar da enunciação (fotógrafa e fotografados, em permanente relação dialógica) compõe o locus disparador da efetividade transformadora da arte. Isto é muito claro em seus retratos, no olhar de cada pessoa fotografada. Assim, a fruição de suas imagens se torna experiência, ultrapassa a informação, o conteúdo, para enlaçar o espectador em força vivencial e afeto. Como afirmou Roland Barthes, no livro Fragmentos de um Discurso Amoroso (Martins Fontes, 2003), o amor é um modo de olhar, é ver-se nos olhos do outro.  Na obra de Marcela, a troca de olhares, entre retratados, observadores e artista, se torna retribuição, espelhamento, amor.

O método da artista inclui o mergulho profundo na experiência, a decisão por viver no local de sua poética, a troca com seus “modelos”, a intimidade, o transformar-se a si mesma, e, por fim, o comunicar. Marcela faz arte refazendo-se. E neste refazer voltou à música, ao piano (depois de sete anos engavetado pelo trauma do conservatório), ao canto, à escrita, à composição. Seu próprio discurso, suas palavras, dão a gira de sua potência imagética. Depois de tanta transformação, Marcela passou a exercer longos tempos de fala, diferentemente do silêncio calado que a embalava anteriormente, como ela mesmo contou certa vez. Ouvir suas palavras, em discursos, aberturas de exposições, entrevistas, cantos, é curativo.

Neste constante operar entre vida e poética, Marcela faz emergir uma Amazônia tão desconhecida do povo brasileiro quanto a própria África. Sua descoberta em torno de outras amazônias não foi servil às permanentes disputas por esta região exotizada, em torno da qual rondam os interesses da devastação capitalista. Para Marcela, a Amazônia deixa de ser esta “ideia-lugar”, como nomeia a artista, para se tornar uma Amazônia da cor de sua pele. Assim, a artista presta grande serviço à história brasileira registrando as reminiscências das muitas e desconhecidas diásporas negras na região, como o deslocamento em massa, no século 18, de populações da Vila Bela da Santíssima Trindade para o Vale do Guaporé, berço da negritude amazônica, no período em que Rondônia ainda era território do Mato Grosso e do Amazonas.

Suas imagens revelam que o convívio é mecanismo de troca permanente entre artista-propositora e pessoas retratadas. Na busca por alteridades, Marcela não se baseia na verticalidade de quem produz a matéria artística, mas no reconhecimento, na participação, na co-criação. É do auto-reconhecimento da artista, de suas subjetividades e reminiscências, que brotam imagens em um movimento permanentemente dialético: o fora-e-dentro da arte. Afinal, como determinou Hall Foster, no antológico ensaio O Artista como Etnógrafo, o fora não é o outro em nenhum sentido simples. Na obra de Marcela, não há confronto com o outro, não há captura da imagem, há imagem enquanto vida e experiência. A Amazônia é Marcela; Marcela é a Amazônia. 

Se há algo de etnográfico em seu processo, isto se dá na conjunção da fotografia como meio de reconhecimento histórico, geográfico, sócio-cultural, porém o resultado é arte em toda sua profundidade. A obra de Marcela perpassa a zona antropológica da produção do olhar, dos padrões humanos, dos sentidos amazônicos, porém, em seu fim último está a expressão da linguagem fotográfica em si. A artista assegura a construção do estatuto poético da fotografia enquanto arte. Seu clique é seco, duro, feito com uma canon de linha de entrada da marca, cujas imagens são apenas digitalmente temperadas para marcar o contraste entre luzes e sombras do dia. Seu sistema elenca retratos, recortes imagéticos, composições únicas, mãos, pés, muitos olhares, paisagens, identidades, memórias, códigos icônicos, sistemas cromáticos, jogos de luz e sombra. Como afirmou a artista, “A fotografia não é só um clique. Antes de fotografar temos a imagem na cabeça, um imaginário, eu chego antes da imagem”, lembrando ainda que seu próprio corpo é quem sai em sua defesa. É um corpo negro que está por trás da câmera.

Em sua inaugural série-projeto-militante “(Re)conhecendo a Amazônia Negra: Povos, costumes e influências negras na floresta”, todas estas ferramentas emergem para fortalecer a poética da artista. No site, em catálogos e entrevistas, Marcela deixa sempre as marcas de cada pessoa fotografada, a mãe-criança, a madona negra, o nobre Bubu Johnson, meninos feitos de água, os olhos-janela de dona Catarina, a mulher Socorro a amparar o mundo, a reverência de tantos sorrisos largos, a altivez dos barbadianos. Em comum entre todas essas pessoas: a solidez matérica de rostos que contam e recontam histórias, os riscos sobre a tez expressivamente marcada que enlaça reminiscências e o detalhe de cada memória, a cor chumbo de peles que reverberam a visibilidade concreta da presença e da ancestralidade negra, o brilho tenaz e metálico na superfície corpórea que acumula longas histórias. Os desdobramentos deste trabalho viraram a série “Madeira de dentro, madeira de fora”, na qual estão demarcadas novas reflexões entre tempo/espaço por meio das potencialidades da madeira, suporte da obra e tema da imagem representada por meio do interior brilhantemente cromático das casas ribeirinhas e pela densidade de tantas madeiras na floresta.

Marcela conta que a câmera lhe apresentou a dignidade, a luz para a escuridão da visão e a libertação dos estigmas. A criança Bonfim, lá no passado embranquecida, encontrou na Amazônia o encontro com seu reverso, o disparador de um enegrecer perdido em suas reminiscências mais profundas. Cantando, contando e escrevendo imagens, Marcela diz ser o voo mais alto de meus ancestrais. A fotografia, que organizou seu corpo afro-brasileiro no tempo, no espaço e no interior de seu imaginário, passou a representar a potência de sua própria história como a história e a identidade de tantas outras pessoas negras. Marcela fala de si para falar do mundo. As expressivas feições dos amazonenses que tanto lhe impressionaram passaram a traduzir sua própria diáspora, refletida em tantos rostos que compõem hoje o espelho de seu entendimento. São retratos transformados em um auto-retrato contínuo, que reflete o manancial simbólico afro-indígena da Amazônia e a reconfiguração da própria existência da artista, agora re-existência.



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