Bem-vindos à Ocupação dos Artistas Selecionados do PIPA 2021! Até o dia 16 de outubro, os selecionados “abrem as portas de seus ateliês” para o público virtual do Prêmio PIPA, com vídeos, fotos e textos exclusivamente elaborados para a ocupação. A cada semana, um artista apresenta sua obra. De 20 a 25 de setembro, Denilson Baniwa fala sobre sua trajetória no meio artístico, o que tem produzido, além de apresentar trabalhos recentes. Ao final da ocupação, está programado também como parte do exposição virtual uma conversa na plataforma Preview (da qual o crítico e curador Gabriel Pérez-Barreiro é um dos fundadores) com o Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto, para falar sobre os selecionados e as recentes mudanças do PIPA.
Nesta 12a edição, o Prêmio PIPA traz um novo formato, sendo direcionado para artistas que tiveram sua primeira exposição no máximo há dez anos. O foco do PIPA 2021 é incentivar artistas em início de carreira que desenvolvem uma produção diferenciada. O material abaixo está disponível em versão reduzida também nas redes sociais do Prêmio. Fique de olho e nos acompanhe nas plataformas Instagram, Twitter e Facebook.
E lembre-se que os Artistas Selecionados estão sendo apresentados também na exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, ao lado dos Vencedores do Prêmio PIPA 2020. A mostra está aberta até o dia 20 de novembro. Será um prazer te receber por lá!
Dia 01:
Nasceu em Barcelos, Amazonas, 1984
Vive e trabalha em Niterói, RJ
Vencedor do PIPA Online 2019
Indicado ao PIPA 2019 e 2021
Artista Selecionado do Prêmio PIPA 2021
“Às vezes o desafio não é ocupar posições. Por exemplo, quando as que existem não servem, é necessário criar algo novo”. Denilson Baniwa é um artista indígena; é indígena e é artista, e seu ser indígena lhe leva a inventar um outro jeito de fazer arte, onde processos de imaginar e fazer são por força intervenções em uma dinâmica histórica (a história da colonização dos territórios indígenas que hoje conhecemos como Brasil) e interpelações a aqueles que o encontram a abraçar suas responsabilidades.
Assista o vídeo produzido pela Do Rio Filmes este ano, em que Denilson fala sobre seu trabalho e trajetória artística:
Dia 02:
No segundo dia de Ocupação, Denilson compartilha alguns trabalhos recentes. Em 2021, ele desenvolveu colagens digitais que recuperam a temática central de seu trabalho. Como artista antropófago, ele se “apropria de linguagens ocidentais para descolonizá-las em sua obra, rompendo paradigmas e abrindo caminhos ao protagonismo dos indígenas no território nacional”, diz ele em sua biografia na página. Dessa forma, Denilson desconstrói parte da hegemonia eurocêntrica e branca da arte contemporânea brasileira.
Por que reconhecemos a chamada arte euro-brasileira como sendo apenas arte brasileira?
Dia 03:
Para a Ocupação dos Selecionados, Denilson Baniwa produziu um vídeo exclusivo para falar sobre sua produção recente e as exposições que está participando no momento. O artista conta que neste ano está viajando por locais no Brasil tomados pelo agronegócio, “violência no campo” do qual Denilson se posiciona contra. A elaboração de documentários e filmes estão nos planos futuros do artista. Veja o vídeo completo abaixo:
Dia 04:
“Hoje, quase um século depois da Semana de 22, novas leituras de Macunaíma e da Antropofagia inspiram o pensamento brasileiro como estratégia de afirmação política e descolonização estética e cultural (inclusive cosmológica e de visão de mundo, “fora do espaço do Ocidente”). A elas, vem se acrescentar uma tendência nova e surpreendente: em 2017, num evento do Goethe-Institut São Paulo sobre Arte Indígena, o artista Jaider Esbell, da etnia Macuxi, reivindicou a reapropriação pelos índios do herói apropriado por Mário de Andrade; por sua
vez, o artista Denilson, da etnia Baniwa, reivindicou a Antropofagia como pensamento indígena apropriado por Oswald. Ora, a reapropriação da apropriação não é uma questão menor. A arte Indígena nunca foi reconhecida
como arte pela cultura brasileira. E no entanto, os dois pilares conceituais da arte Moderna do Brasil são invenção indígena. Assim, a reivindicação dos artistas indígenas suscita perguntas: Se a contribuição dos índios foi tão decisiva para a arte brasileira, por que os artistas indígenas precisam de passaporte para entrar no sistema da arte contemporânea? Em outras palavras: Por que precisam provar que o que fazem é arte segundo os critérios ocidentais, se a arte Moderna brasileira viu em suas criações potência estética su8iciente para tomá-las como matriz para a sua própria existência?”. Trecho retirado do texto Civilizados selvagens/Selvagens civilizados, de Laymert Garcia dos Santos.
Partindo dessa ideia de Laymert Garcia dos Santos, podemos pensar o trabalho de Denilson como essa apropriação da arte indígena na identidade brasileira. Nos trabalhos selecionados abaixo, Denilson projeta em monumentos e prédios públicos tradicionais de capitais brasileiras frases e imagens que remetem à sua origem indígena. Por meio de laser e videomapping, o artista ocupa símbolos da arquitetura modernista do país e com isso afirma politicamente a decolonização indígena.
Veja nas projeções de 2020 e 2021 abaixo:
- Denilson Baniwa, “Me deixa ser Selvagem”, 2020, Projeção a laser
No quinto de Ocupação, leia a Conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Denilson Baniwa.
LCO – Denilson, em 2019 fizemos uma primeira conversa já publicada pelo PIPA por ocasião de você ter ganho naquele ano o PIPA Online. Agora você foi um dos vencedores da categoria principal. Olhando sua produção de lá para cá vemos o quanto ela foi se fortalecendo e ganhando envergadura e relevância política. Acho que posso dizer hoje que ser artista e ser uma liderança indígena se complementam na sua trajetória. Isso é muito bom de ver. Como tem sido conciliar estas duas atividades tão demandantes?
DB: Querido Camillo, muito obrigado pela conversa, é muito bom estar de volta aqui contigo e agora nesse lugar de premiado na categoria principal do PIPA. É uma felicidade incrível estar nesse lugar, ainda mais para um artista indígena. Sobre a pergunta, penso que ainda andam muito em paralelo, antes de ser artista, sou uma pessoa extremamente ligada ao Movimento Indígena Amazônico, e isso rege meu caminhar ao longo do processo artístico. O que muda é que agora me preocupo neste processo, em outros caminhos que não mais os antigos, penso em processos que partem do trabalho artístico, qual o impacto dele nas comunidades e fora da comunidade, já que agora a arte é minha ferramenta de comunicação com o mundo. De fato, desde a última vez que conversamos até agora, muita coisa mudou na minha vida, o PIPA foi realmente um marco importante na minha carreira e que possibilitou alcançar lugares que não imaginava, inclusive fora do Brasil. Por outro lado me forçou a estudar mais, pesquisar com mais seriedade os temas que desenvolvo, buscar entender os códigos do mundo da arte com mais dedicação, para que eu pudesse evoluir não só como profissional mas também fazer com que meu trabalho ganhe corpo e densidade de discurso cada vez mais. O PIPA me fez repensar muitas coisas, tais como acesso, permanência e não permanência em certos espaços e como eu deste lugar posso abrir picadas para que outros além de mim possam chegar junto. Neste rever, muitas das minhas produções que antes eram ligadas principalmente ao desenho e pintura, transformaram-se naturalmente em trabalhos multimidiáticos e também em textos elaborados para tratar deste momento de aparição da arte produzida por pessoas indígenas no Brasil. Uma evolução, penso que natural, devido ao esforço de tentar entender todo o contexto onde eu me encontro junto com outros artistas indígenas.
Uma coisa, digamos, pragmática que meu trabalho possui é a capacidade de gerar ferramentas e ajuda direta a comunidades e projetos indígenas. Posso hoje, por exemplo, ajudar na construção de escolas indígenas, coisa que antes eu precisaria de um esforço muito maior para conseguir, agora eu posso através do meu trabalho bancar isso, sem precisar de negociações com agentes externos, isso pra mim tem sido muito importante.
Com esta nova indicação ao PIPA 2021, espero poder crescer cada vez mais e que meu trabalho seja direcionado à formação de outros artistas e na construção de um cenário ainda mais amplo a partir do lugar de onde estou.
LCO – Dois trabalhos mais antigos seus, creio que de 2018-19, “Pajé-onça hakeando a 33ª Bienal de São Paulo” e “ Relacionamentos (AGRO) tóxicos”, parecem-me reunir de forma muito sintética e intensa duas linhas de atuação poética: uma relacionada a reconfiguração da história da arte de uma perspectiva ameríndia e outra de intervenção direta no debate ambiental e ecológico sem perda da contundência visual. Faz sentido este entendimento? Estas duas direções te parecem relevantes para uma compreensão de sua prática artística e política?
DB: Claro. Faz muito sentido, minha pesquisa procura esse entendimento dos processos históricos no território brasileiro e na ocupação dele. Busco uma certa poesia da violência, do desterramento desse território, e no meu fazer ambos estão ligados à construção da história nacional pela arte ocidental e a exploração de terras pelo agronegócio, já que ambos são derivações de um nacionalismo que prevê a anulação de qualquer história local, sobrepondo o progresso sobre qualquer ocupação anterior aos marcos temporais ocidentais. Portanto, meu trabalho ao procurar essas conexões entre esses lugares históricos, se apresenta de acordo com o que for encontrado, seja pela arte ou pelo agronegócio. A formalização se dá a partir da conexão encontrada, às vezes mais explícitas noutras menos direta. Minha prática é feita basicamente de memórias, experiências pessoais enquanto militante, pesquisa de acervos e publicações, conversas com indígena ou não indígenas.
Uma coisa importante, também, é o fato da minha formação acadêmica passar pela tecnologia, comunicação e publicidade: ao mesmo tempo que é um trabalho indígena, é também um trabalho que cabe o entendimento dos usos da comunicação de massa e das tecnologias da informação.
LCO – Você sempre enfatiza que você é indígena e é artista. De certo modo esta conjunção explicita que a atuação conjunta interfere no modo como pensamos a arte e a tradição ameríndias. Lembro aqui que em nossa outra entrevista, ao ser perguntado sobre o uso da tecnologia em sua obra, você disse que “a utilização de ‘modernidades’ ou novas ferramentas não significa o abandono ou a perda da cultura indígena, pode, inclusive, ajudar a fortalecer a identidade e transpor mudanças que ocorreriam naturalmente ou forçadamente pela violência externa”. Sua compreensão deste problema ganhou novas camadas de lá para cá?
DB: Com certeza, vou inclusive procurar estudar mais a respeito a partir de experiências de outros povos indígenas fora do Brasil. No Canadá, por exemplo, eles têm uma experiência grande com o uso de tecnologias e ferramentas ocidentais na luta pela memória de suas culturas. Desse modo, desde a nossa última conversa, tenho procurado não só colocar no trabalho essa perspectiva do uso da tecnologia sem a perda total da identidade, mas também o próprio trabalho agora vem a partir dessas tecnologias. Se antes eu pintava um curumim ou uma criança indígena com o computador na mão, hoje eu procuro usar o próprio computador, a tecnologia computacional, para fazer trabalhos que estão muito mais ligados a esse uso tecnológico moderno e de ciências ocidentais. Partir do outro para a minha própria identidade é talvez como uma antropologia reversa, onde eu encontro o eu a partir do outro, a partir das diferenças entre nós. Portanto, a tecnologia ou as ferramentas ocidentais podem não ser mais como desaguadores das nossas culturas, mas nascentes de outro tipo de memória cultural. Um saber de construção de banco de dados que podem ser acessados por nós indígenas e por todo mundo. Um exemplo, é do pajé, que mantém gravado um benzimento que pode ser revivido várias e várias vezes sob novas formas, como através de uma transmissão online ou outro meio.
4 – Fiquei muito impressionado com suas intervenções urbanas mais recentes com projeção a laser: tanto os Petroglifos na selva de pedra (2019) como a ação sobre os monumentos. Estes últimos são muito interessantes, pois desconstroem os monumentos, explicitam a violência simbólica que eles representam sem destruí-los. Como se assim deixasse clara a continuidade do problema e a memória de um passado traumático, que dói, mas é nosso. Fale-nos um pouco sobre estes trabalhos.
Sim. Esses trabalhos partem primeiro do lugar de onde eu venho, que é o Rio Negro, lá existe todo um conjunto de inscrições nas pedras ao longo do rio que contam a cosmogonia do meu povo, a criação do universo e dos seres que vivem nesse planeta, também são nessas inscrições que são guardadas as regras para o bem-viver nesse mundo. O meu papel enquanto artista e indígena é trazer esses saberes de lá pra que ocupem a cidade. Penso que essa colisão de narrativas e entendimento do que é o território da memória são os pontos que me animam a fazer trabalhos deste tipo. Quando trago estas temporalidades indígenas para a temporalidade dos monumentos da colonização, eu busco justamente colocar em choque os marcos temporais coloniais. Seria mais fácil implodir ou explodir, colocar abaixo esses monumentos, é o caminho mais prático, direto. Mas, vejo isso como “varrer o problema para debaixo do tapete”, preciso entender que esses monumentos são cicatrizes mal curadas da colonização, escondê-las, colocar um band-aid nelas não irá ajudar em uma cicatrização melhor, apenas irá inflamar ainda mais a ferida. É preciso antes reabrir essa ferida colonial, limpar e suturar essa violência, e depois, torná-lo uma marca infame de uma história nacional. Aí sim, poderíamos derrubar os monumentos, quando não tenha mais que se construir monumentos acima dos antigos, quando não precisarmos mais de monumentos levantados, mas de escolas e parques em lugar de estátuas.
Projetar imagens no corpo desses monumentos é deslocar outras memórias, é chamar atenção ao monumento, não para o que ele simboliza, mas para o que ele pode simbolizar. É reconstruir um território de memória antes daquele monumento, é fazê-lo uma memória da vergonha. Isso vem a partir de um entendimento do meu povo, em que o sequestro do corpo do inimigo era uma forma de koada, a vingança de um corpo pelo outro. Quando projeto imagens sobre o corpo símbolo da construção de São Paulo e do Brasil, penso em uma armadilha: enquanto a cidade se encanta pelas luzes e cores eu sequestro um pedaço daquele monumento e o desqualifico, tornando-o indigno de respeito.
Entendo que meu papel enquanto artista e indígena é fazer com que essas tensões coloniais possam vir à tona sem tornar isso explícito, sem que a cidade perceba o que está acontecendo.
5 – O trabalho que você fez na Pinacoteca recentemente incorporou uma outra camada de sentido em sua obra no que diz respeito a esta inserção nos museus. Este espaço simbólico de poder é tensionado por um esforço de regeneração de memórias traumáticas do passado que insistem em se manter atuais. Há uma necessidade de dar vida aos fantasmas do nosso passado que seguem inconscientemente produzindo violência e exclusão. Como é para uma cultura viva como a indígena entrar no museu, não como objeto, mas como sujeito da sua própria história?
O trabalho na Pinacoteca de São Paulo foi bem simbólico: por ser numa instituição daquele porte; por ser a primeira exposição grande com curadoria de uma mulher indígena, a Naine Terena. Eu poderia propor um trabalho que fosse simplesmente um quadro pintado, um vídeo que seria colocado dentro da sala onde estava a exposição, mas isso não teria para mim nenhum significado, pois estar na Pinacoteca é estar dentro de um certo sistema que eu não gostaria de entregar o que se espera de um artista indígena ou pior, algum estereótipo que o público esperaria. Não é confortável para mim esse lugar.
Eu pensei em aproveitar o espaço, para tensionar algumas camadas sociais que me preocupam bastante, tais como até que ponto vai o discurso descolonial de certas instituições e até que ponto um artista indígena pode criar condições de trabalhar para além do que se espera dele. Me preocupa bastante o processo de interlocução, negociação dos espaços entre artistas indígenas e as instituições. O trabalho foi essa maneira de provocar o corpo da Pinacoteca, o público e a cidade. O trabalho possui muitas camadas, que nem sei se consigo falar sobre todas, mas vai desde a criação de acervos, a salvaguarda desses acervos, resgate e reapropriação, até mesmo sobre acesso à arte e à mobilidade urbana.
O jardim plantado no estacionamento da Pinacoteca, foi ao mesmo tempo para mostrar a fragilidade das nossas vidas enquanto pessoas indígenas dentro de um sistema ocidental ou dentro de uma modernidade ocidental, mas, também, provocar a instituição para saber até que ponto ela estaria disposta a perder seu espaço de trânsito, até que ponto o estacionamento seria mais importante do que o trabalho de um artista indígena.
Penso que levar meu trabalho para fora da galeria, torná-la parte da cidade é fazer com que ela seja pública e acessível, ao mesmo tempo o trabalho estaria à disposição do clima e da natureza ao redor, da cidade e do público. Bastaria estar atento ao todo e não só ao que se prende na parede e se coloca etiqueta descritiva. Não fazer parte de uma vitrine, mas estar viva em qualquer espaço, como resistência e não aprisionamento.
6 – Como foi para você e sua obra esse período da pandemia? O que não será mais igual?
Esse período que vivemos em pandemia tem sido muito difícil, mas em um aspecto para mim foi muito propício. Pois me possibilitou voltar pra minha comunidade sem nenhum peso na consciência, de deixar trabalho e tudo pra trás aqui na cidade. Foi difícil manter certo bem-estar recebendo todos os dias notícias de que algum amigo, conhecido ou pessoa importante indígena havia falecido ou estava internado por causa do Covid-19. Foi nesse momento que decidi não mais ficar longe de todos da minha comunidade, então a maior parte de 2020 eu passei no Rio Negro com minha família, em certa segurança.
Apesar de retornar pro Rio de Janeiro, agora em março de 2021, voltei com um sentimento de que para mim não seria mais possível um pertencimento à cidade, um desapego com tudo o que não é essencial para minha existência. Sinto que muitas pessoas estão com esse sentimento desde que começou a pandemia, vejo alguns amigos que foram morar no interior ou procuraram desacelerar o ritmo da produção das coisas. Acho que em momentos de extremo medo da morte a gente começa a perceber que muito da nossa produção não faz o menor sentido. Claro que um certo número de pessoas realmente se deixou tocar pelo sentimento que veio na pandemia, para outros que já não possuem sonhos além de ser engrenagem, ainda esperam que tudo volte ao normal. Mesmo que o normal seja uma anormalidade humana.
Dia 06:
No último dia de Ocupação, leia o texto crítico de Rachel Cecília de Oliveira sobre o trabalho de Denilson.
Entre dois mundos
Denilson Baniwa é um artista de fronteira. Habita as fronteiras entre o mundo dele, que chamamos Baniwa, e o nosso. Produz imagens endereçadas a nós: brancos, designação que não se refere ao fenótipo, mas à nossa adesão à cultura de nossos colonizadores. A partir desse entre-lugar promove uma espécie de formação visual e crítica do público, do ponto de vista indígena. Devido a seu objetivo, não utiliza, de forma explícita, a memória oral e visual de seu povo, afinal, a produção e reprodução da linguagem indígena foi transformada em artigo exótico, devidamente hierarquizado pela Europa.
Denilson habita a fronteira para gerar comunicação, por isso usa e abusa, na chamada arte erudita, da tão difamada indústria cultural. Esta, que vem sendo criticada desde o famoso texto publicado por Adorno e Horkheimer em 1947, é incorporada justamente pela sua capacidade comunicativa e sua presença quase universal. Não interessa ao artista a crítica ou o louvor aos seus mecanismos, comum na história da arte, mas sim a capacidade comunicativa, quase irrestrita, de sua linguagem. A indústria cultural é uma de suas principais ferramentas de trabalho, funciona como mediadora da tensão em suas obras, algo próximo do chiste. Ouso dizer que Denilson faz uma reelaboração contemporânea da atitude de Feliciano Lana, artista do povo Desana, ao se referir a um padre com quem estabelecera contato: se ele não entende, eu irei desenhar.
O artista “desenha” para contar a história que seu povo compartilha com os demais povos originários. Suas obras funcionam como uma espécie de memória/aviso do genocídio e do apagamento permanentes que nossa sociedade impetra aos vários povos que habitam essas terras. Memória, pois escolhemos esquecer que, para essas pessoas, a mudança de colônia para império e de império para república significou muito pouco. Talvez, tenhamos escolhido fingir que os conflitos são pontuais. Logo, o percurso do artista reproduz a lógica do movimento indígena. Suas obras são continuidade do trabalho que faz na luta pela sobrevivência e pela dignidade dos povos originários. Seu objetivo é construir um imaginário que conte essa história constantemente apagada e diminuída.
Isso fica claro na obra Warboys, na qual usa uma arma de brinquedo para fazer alusão à violência que caracteriza a ação dos supostos donos das terras. Esta inofensiva pistola de água mostra a naturalização da violência e a desproporção existente entre os que dominam e os que são dominados. Ela lembra, também, a já conhecida deturpação da expressão “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda.
Warboys faz referência direta à metaforização do cultivo da monocultura social. Esta deixou de ser apenas um método de plantio para se transformar em modelo de sociedade. Uma sociedade que se quer única, hegemônica, que impede e odeia a existência da diferença. Uma sociedade que cultiva a monocultura racial, sexual, social, de gênero, de classe. Cultiva até a monocultura geográfica.
A relação entre dominadores e dominados aparece de forma violenta na obra Natureza Morta. Ela estampa com contornos indígenas o desmatamento das florestas brasileiras e a destruição dos povos que nelas habitam. O corpo gravado se contrapõe ao verde das florestas que o circunda, servindo de lembrança tanto da destruição constante das terras indígenas e não-indígenas; quanto da destruição de seus corpos, seja pela invasão, seja pela forma de produção do agronegócio. Essa obra nos remete à imagem da morte, da tentativa constante de eliminação do espírito daqueles que vivem nas matas desde tempos imemoriais. Ela lembra quem são os guardiões das florestas brasileiras, os que preservam, que mantém a mata intocada, enquanto nós transformamos nossas cidades em selvas de concreto.
É sobre esse tipo específico de selva a obra “Plantio”, realizada na Pinacoteca de São Paulo. Denilson transformou o espaço inócuo do estacionamento em um jardim. Um jardim que nasceu a despeito das sucessivas tentativas de fazê-lo desaparecer, que cresceu apesar das advertências sobre a impossibilidade de se cultivar um jardim em meio aos paralelepípedos do estacionamento. Um jardim que desafia os limites de uma instituição tradicional como a Pinacoteca, por ser um trabalho localizado em uma espécie de não-lugar, um espaço sem prestígio, para o qual as pessoas sequer olham.
“Plantio” mostra a força da vida, sua capacidade de vencer a despeito de tudo. Mostra que a quase ausência de vida nas cidades é um trabalho contínuo de construção, destruição e “limpeza”, de retirada dessa lembrança incômoda, geralmente vista como resultado do desleixo, não do cultivo. Com “Plantio”, o artista desafia o modelo das cidades e sua constante tentativa de apagar a vida sobre a qual elas são construídas.
Já a colagem “Ficções Coloniais” trata de uma outra forma de apagamento. Nela, o artista cria uma sátira a partir de uma imagem produzida para divulgar a “descoberta” da Amazônia. A obra coloca em xeque a vasta produção intelectual e imagética sobre os indígenas. O verbo descobrir remete à tradição essencialista da metafísica ocidental, a qual requer encontrar o conhecimento verdadeiro, único e universal. Quem descobre algo ou alguém se transforma em referência, em lugar de enunciação dessa verdade, ou seja, exige adotar o ponto de vista do “descobridor”. Essa “descoberta”, que prefiro chamar de dominação, configurou o modo de compreender os indígenas. Afinal, o olho é o órgão de uma tradição visual e a nossa é colonial. Isso remonta às primeiras xilogravuras feitas na Europa, no século XVI, para ilustrar os relatos de viagem sobre o dito “novo mundo”. O que Denilson faz é ironizar o que Joaquín Barriendos, filósofo mexicano, chama de colonialidade do ver.
Nessa obra, é possível ver de forma explícita a guerra das imagens. O artista disputa com as narrativas feitas sobre os indígenas, ironizando e ficcionalizando um imaginário repetidamente divulgado como verdade. Denilson ironiza o olhar colonizado ao vestir um dos indígenas com uma camiseta estampada com o cartaz do filme de Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol”, e equipar os dois com instrumentos de audiovisual. Transforma os retratados, em suas vestimentas tradicionais, em adeptos do lema do Cinema Novo: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Com isso, ele inverte as posições. O objeto passivo do olhar antropológico dos chamados “viajantes” se transforma em agente, em construtor de narrativas, em protagonista da história. Ao ironizar a imagem, ironiza também o conhecimento estabelecido. Volta ao passado para provocar o presente e transformar o futuro.
A intervenção urbana “Brasil, Terra indígena”, projeção sobreposta ao Monumento às Bandeiras, de Brecheret, lembra como nosso presente está lotado de passado. Ela nos faz pensar por que repetimos acriticamente os nossos colonizadores, sem considerar outros pontos de vista.
Essa intervenção conversa com outra, ocorrida em 2013 durante uma manifestação em favor dos povos indígenas, quando esse mesmo monumento foi manchado de tinta vermelha pelos participantes. Ambas as intervenções questionam o mito do bandeirante desbravador, conquistador das terras do interior do Brasil, criado no início do século XX, com o intuito de construir uma narrativa ancorada no embranquecimento dos povos negros e indígenas e na construção de uma imagem pacífica de trabalho conjunto. Um dos símbolos do modernismo brasileiro, o monumento exalta os responsáveis pelo estupro e genocídio indígena, assim como pela expulsão desses povos de suas terras. Ao transformar o monumento, Denilson deixa as feridas abertas, promovendo uma guerrilha imagética que lembra quem são os verdadeiros donos da terra, geralmente esquecidos.
Esse trabalho ressignifica, também, a história da arte brasileira. Desromantiza as narrativas de construção da nação e da arte, para as quais os modernistas criaram imagens. Exige pensar qual o ponto de vista do olhar que pinta o quadro, que esculpe a pedra.
O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior mostra como a narrativa de Mário de Andrade para o modernismo brasileiro propõe, como método de “desafrancesamento”, a elaboração de elementos regionais, provenientes da tradição popular, negra e indígena, para criar trabalhos de escopo universalista, que contribuíssem para o “concerto mundial das artes”. A pintura “Reantropofagia”, literalmente, decapita a narrativa marioandradina reincorporando o projeto anárquico de Tarsila do Amaral, Raul Bopp e Oswald de Andrade com o Movimento Antropófago, inspirado na tradição Tupinambá.
Repleta de elementos indígenas e com uma referência direta a Macunaíma, personagem inspirado na figura de Mukunaimã, o avô dos povos que habitam a reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, Denilson ironiza o modo como as tradições indígenas foram incorporadas, folclorizadas, exotificadas e embranquecidas pelos modernistas. Na pintura, o artista deixa um recado para um Mário de Andrade negro, subvertendo a máxima do manifesto antropófago: “Só me interessa o que não é meu”.
É importante lembrar que habitar a fronteira é perigoso, pois é lugar de exposição, lugar da verdadeira vanguarda, daqueles que estão na frente do pelotão de uma guerra. Os trabalhos de Denilson Baniwa ocupam lugar de destaque nessa guerra de imagens. São armas e munições para transformar o olhar, transformar a tradição visual. Ao abusar das linguagens e estratégias da indústria cultural, ele se aproxima com eficiência dos “brancos” na construção de um imaginário sobre essa história apagada e diminuída.