Luiz Camillo Osorio conversa com Marcela Bonfim

Todo ano, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversa com os vencedores das categorias do Prêmio PIPA. Este ano, Marcela Bonfim foi uma das entrevistadas por Osorio. A artista falou sobre a decisiva saída de São Paulo para Rondônia, onde começou a fotografar os moradores da região amazônica dois anos após sua chegada na região Norte.

Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Marcela Bonfim

LCO – A sua formação se deu em São Paulo, em economia, depois é que você foi para Rondônia. Como foi a decisão para se tornar artista? 

MB: Acredito que não foi uma decisão propriamente dita. No entanto, migrar para Porto Velho, em 2010, sim. Sendo essa, a única decisão que tive condições de tomar naquele período, finalmente me afastando das luzes de SP e dos violentos impactos entre a minha cabeça e o chão daquele lugar. O ano de 2009 foi marcado como uma temporada de dolorosas e insistentes cabeçadas; inclusive, assistidas por pessoas próximas e distantes; de vários ângulos; umas do lado de dentro, outras nem tanto; outras do lado de fora; e outras ainda de lado nenhum, apenas acompanhando as cabeçadas de uma mulher preta enegrecendo o senso de realidade, como se acordasse no instante do naufrágio.

Prosseguindo com os lugares e sentidos dessa questão; eu poderia supor que a artista veio dos instantes em que a cabeça se arriscou de cima a baixo; entre oscilações que só não me levaram à loucura por um fio muito tênue; assim, suportando as provas à beira dos meus próprios limites. A exemplo de uma entrevista com o ‘futuro chefe’, ainda em SP, onde fui dirigida à cozinha após a clara mudança de planos do anfitrião, anunciada no exato clique entre o nosso encontro. Fazendo da minha experiência como imagem, um repositório de pesos e desconfortos. Hoje tocados e refletidos aos nossos cuidados, dentro do campo da fotografia com a dignificação de nossos corpos-limites, agora, expandidos às faculdades da razão.

2 – Há anos atrás, no começo dos anos 2000, acho que em 2004, estive em Porto Velho em um projeto da Funarte. Visitei artistas locais e junto com dois artistas aqui do Rio de Janeiro (Cabelo e Paulo Paes) fizemos alguns workshops e participamos da premiação de um salão de arte local. O artista vencedor foi uma artista trans que fazia uns desenhos muito interessantes. Gerou muita polêmica, aparentemente, pois era uma cena muito conservadora, a cidade ainda muito marcada pelo garimpo com as marcas evidentes do extrativismo: alguns carrões nas ruas e nenhuma infraestrutura, uma desigualdade exponencial. Como foi sua chegada e adaptação neste contexto?

Posso dizer que esse processo foi um mergulho de cabeça e de olhos abertos nas contradições minhas, do lugar e das perspectivas da Amazônia. Transparecendo ao meu imaginário, nítidos desencaixes e espaços vazios, despertados aos sustos, toda vez em que me sentia atravessada pelo senso de realidade. Tendo como reflexo o tempo, os espaços e as relações e o dito desenvolvimento; agora; sentido do lado de dentro desses tantos lugares que é a Amazônia.

Descrevendo a imagem, comparo a chegada a Porto Velho, a um baque. Só que agora, diferente do impacto do chão, o que chocava à cabeça era o peso das distorções pressionadas aos meus sentidos. Levando um tempo para assentar os desequilíbrios e para eu perceber as dimensões de um tempo que se apresentava por si, mais próximo ao meu corpo.

Aqui recomecei a vida; sem imaginar que acolher as sombras se tornaria tão especial quanto perceber as minhas contradições, tão tênues às minhas potências, emergidas aos poucos dos confins do meu desconhecimento. Refletidos aqui, em Rondônia, neste tempo que, além das relações, apreendi bonitos e verdadeiros encaixes afetivos, como também me compreender como sendo fruto daqui.

3 – A Amazônia negra é desconhecida dos brasileiros e do mundo. Fale mais sobre seu projeto Reconhecendo a Amazônia Negra. Como está sendo este mergulho numa memória tão rarefeita e, pelo que vemos no seu trabalho, tão poderosa? Qual a participação do fracassado projeto da ferrovia Madeira-Mamoré nesta migração negra que você está pesquisando? 

Se eu pensar nesse poder como fruto da memória e a memória, por sua vez, fruto de alguma forma de imagem, eu me organizo com mais potência do lado de dentro desses lugares; exercitando as minhas próprias imagens junto a estes tantos contextos, desde os sons que chegam até mim todas as manhãs, comunicando a imagem do clima na frequências dos pássaros; até a ausência desses cantos, alertando indesejáveis manchas de soja e fuligem no ar; sugerindo que talvez o verdadeiro fracasso da história seja a própria continuidade desses projetos difundidos na imagem do desenvolvimento.

Nesse aspecto, ter a Madeira-Mamoré presente nesta reflexão visual, é ter a consciência do fracasso, dos genocídios, como também das forças aliadas à terra. Ela permanece até hoje aqui como cultura, costumes e influências que seguem feito o fluxo de um Rio, com suas memórias interiores às águas que chegam e que vão, mas que se fixam como fruto-raiz.

Assim, senti a potência das imagens locais, ao ser identificada barbadiana; ascendendo à flor da minha pele, a curiosidade sobre as frequentes imagens trazidas pela cidade, ao me associar às famílias ‘Johnson’; ‘Maloney’ e ‘Shockness’; crescendo em mim a necessidade de pensar sobre essas imagens e o desejo de ver como seriam essas feições. 

O primeiro clique desse processo não foi meu. Os créditos são de Porto Velho.

Isto é, as imagens apontadas pela cidade aos poucos me abriram à multiplicidade de corpos negros encaixados aqui; vindos de todos os cantos do Brasil, e de outros países, como essas famílias desembarcadas das antigas ilhas inglesas caribenhas. Significando para mim tanto a porta de entrada da Amazônia Negra quanto o princípio pela busca da consciência das imagens que vivo; que penso; que sinto; que sou.

4 – A fotografia no seu trabalho tem ao mesmo tempo uma dimensão documental e uma força visual grande. Como você lida com estas duas direções? O quanto você precisa fabular, ficcionalizar, para ser verdadeira com uma memória tão invisibilizada?

Penso que a dimensão documental e a força visual são em si a própria imagem. A única coisa que cabe a mim é posicionar-me diante do contexto em que estou da maneira mais próxima. Exercendo o olhar como mais uma camada dessa imagem que já existe; daí a questão: Qual é a camada em que estou nessa composição? Quem sou? O que estou fotografando? Qual a minha relação com essa imagem?

Assim, tenho para mim que a estética, a política e a geografia são por si o próprio lugar; isto é, a própria composição da imagem. Enquanto eu? O que eu represento em relação a tudo isso? São questões presentes no cotidiano da fotografia que exerço dentro do mundo das relações de futuro: corpo-espaço-tempo.

Neste aspecto, percebo a ficção como a própria humanidade e o mundo surgindo dessa gigantesca fábula imagética, onde me encontro toda vez que penso no passado, no presente e no futuro. Ela se dá toda vez que exerço o meu caminhar dentro do que percebo existir nesses símbolos, junto ao que absorvo como uma imagem negra. Trata-se de um verdadeiro tabuleiro de peças mais conscientes, permitindo lidar melhor com os impulsos; agora, refletidos, em lugar de espremidos, acomodando e confortando os meus cacos. E eu cuidando da minha saúde mental.

5 – Você tem trabalhado também com poesia, performance, teatro. Como têm sido estes desdobramentos? Fale-nos, por favor, sobre o projeto “Madeira de dentro, Madeira de fora”? Como ele está sendo desenvolvido e qual a integração da comunidade nos seus projetos?

Imagem é dúvida, contexto, cheiro, desejo, ensejo, conquista, cultura, ternura, liberdade; e suportes como o teatro, performance, música, que atravessam a noite fazendo da ideia escura uma possível cena de paz, apenas no ato de tocar. Por que não poderia ser a noite a verdadeira imagem da paz?

Esta forma de pensar me leva crer que, o que se vê é cria do ar, não dos olhos; sendo os pulmões responsáveis por receber todas essas informações, tocadas a cada respiro, suspiro; inspirar; tendo em vista sempre o contrário, uma vez que só existe a liberdade porque inventaram a prisão. E tudo isso acontecendo dentro e fora da imagem.

“Madeira de Dentro. Madeira de Fora” é como os braços da Amazônia Negra. Ela trata do alcance do ar, como também dos rios, da terra, do fogo e das tantas Amazônias em seus diversos contextos e lugares; culturas e raízes; multiplicidades. Por fim, reduzidas politicamente a uma nomenclatura? E a madeira e suas infinitas espécies e origens, enxugadas à ideia utilitária de suporte? Tudo isso podemos repensar a partir da imagem no exercício do tempo, do espaço e das relações de futuro.

Esse processo traz a segurança de pensar a comunidade do lado de dentro da câmera, exercitando comigo a visualidade na construção da fotografia, que depende apenas da minha posição e, sobretudo, da minha carga imaginária. Tornado o clique efêmero, quando o assunto se trata do que é criado antes do ato da fotografia, sempre à superfície da imagem, sendo a comunidade esse miolo onde se concentram as energias. Enquanto reorganizo a ideia de propriedade, com meu corpo de suporte desta discussão, quando ainda percebo não ter domínio sobre o que gostaria de expor sobre as minhas sensações. Isso me leva a pensar a comunidade presente na autoria destas criações, me abrindo à possibilidade de imagens que finalmente libertem a minha própria ideia de imagem negra; porque tudo são relações…

6 – Como foi para você e sua obra esse período da pandemia? O que não será mais igual?

Costumo pensar que tudo muda o tempo todo. Então nada será igual para sempre; sobretudo, num período como este, bastante difícil de mensurar e comunicar até o que se enxerga a olho nu. Sem contar os ângulos restritos, como os que marcam a minha posição de uma mulher negra, vivendo todo esse período de caos dentro de uma casa, situada numa comunidade às margens do Rio Madeira, em Porto Velho, Rondônia. Tendo noção desses limites, mas já entendendo que não ocupo o mesmo lugar desde ontem, até por conta das buscas do dia-a-dia. Pelos constantes reencaixes das ideias, do corpo e dos sentidos que a pandemia tem apontado, cá estou eu, do lado de dentro e de fora, me reorganizando…



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