“Dollhouse Gallery”, 2020
, tour virtual, www.dollhouse.gallery

Luiz Camillo Osorio conversa com Ilê Sartuzi

Todo ano, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversa com os finalistas e vencedores das categorias do Prêmio. Este ano, Ilê Sartuzi, um dos Selecionados, é o primeiro a responder Osorio. O curador e o artista falam sobre a formação da trajetória artística e as influências para o trabalho que apresentamos ao longo da semana. Veja a entrevista completa abaixo:

LCOFale um pouco sobre sua formação. Como ela se desenvolveu para que sua produção fosse incorporando elementos de cinema, artes visuais, computação, teatro.

IS: Comecei a produção cedo investigando a pintura dentro de uma estrutura clássica e um estudo rigoroso da figura humana. Na universidade esse interesse expandiu para outras linguagens e ferramentas que passou a investigar a imagem do corpo no espaço, tencionando as relações entre esse plano bidimensional no espaço e uma corporeidade escultórica achatada. A partir do momento em que surge o desejo de produções que se utilizam de ferramentas que extrapolam o que tradicionalmente se configurou como sendo do campo das artes plásticas, tornou-se necessária uma pesquisa mais específica de cada área.

Frequentemente colaborei com artistas de diferentes especialidades para aprender elementos que estavam sendo requisitados pelos trabalhos. Isto é, me parece que a incorporação de outros elementos dentro da produção é uma vontade que nasce dela própria, se é que se pode colocar tamanha independência sobre o trabalho.

Paralelamente à produção plástica, minha formação acabou sendo atravessada por uma série de encontros que acenderam um interesse teórico. Essa investigação crítica continua sendo uma fonte de trabalho (frente à precariedade, artistas que precisam pagar as próprias contas frequentemente precisam se engajar em outras atividades remuneradas) mas também sempre foi uma parte complementar da exploração poética. Trabalhando em instituições públicas e privadas, a defesa e o fomento ao debate crítico de arte e cultura é parte fundante da minha formação. Em grupos de pesquisa universitários e nos bares, a leitura rigorosa forneceu ferramentas conceituais para o enfrentamento direto de obras de outros artistas em entrevistas e ateliês e, evidentemente, tudo isso resulta numa visão crítica sobre a minha própria produção.

LCO – Vendo seus trabalhos, percebemos que há uma combinação curiosa de elementos orgânicos e mecânicos, de materiais moles e motores, de corpos fragmentados, movimentos arbitrários, vozes que falam por si mesmas. Há uma mistura inusual de Samuel Beckett e Louise Bourgeois. Em comum, um cansaço das formas fixas. Faz sentido? Fale um pouco sobre de onde falam seus trabalhos.

IS: Acho acertada essa leitura e a sua pergunta pode ser interpretada de maneiras diferentes. A sua própria descrição parece indicar que os trabalhos falam a partir deles mesmos. As vezes são corpos humanoídes que se aproximam de autômatos, mas em outros momentos são objetos não-atropomórficos que ganham vida. Nos dois casos, evocam um sentimento inquietante de um objeto inanimado que passa a simular alguma vivacidade. No entanto, há uma ambiguidade nesse caso: se esses tipos de objetos falam por eles mesmos, é difícil também que não apontem para uma espécie de titereiro.

Por outro lado, interpretando o lugar de onde os trabalhos falam de um ponto de vista histórico, me sinto confortável com as suas indicações. (risada). Os dois exemplos que você convoca carregam uma densidade psicológica, mais ou menos explícita, que pode ressoar nesses objetos que – dotados de movimentos, falas e coreografias – poderiam assumir uma certa projeção de “subjetividade” artificial. Mas sobretudo são artistas cujo interesse pela exploração da forma os levou a alargar os limites desses campos. Quer dizer, esse exercício de liberdade para além das “formas fixas” se dá tanto no interior de cada prática, por exemplo, escrutinando até a última consequência o texto literário, mas também engajando-se em desdobramentos periféricos como peças radiofônicas ou para a televisão. No caso de Bourgeois, ela acabou por criar uma série de signos que traçam uma mitologia própria, ao mesmo tempo em que reverbera algo do comum (isso me lembra um pouco do Tunga também). Me interessam, particularmente, as “cells”, cuja tradução aberta para “celas” e “células” indicam uma unidade onde a artista consolida um pensamento instalativo e compõe uma cena protagonizada por essa mitologia recorrente.

De qualquer maneira, essas duas possibilidades que indicam de onde falam os meus trabalhos não andam uma sem a outra. Partindo da própria estrutura do trabalho, que acredito ser sempre uma via privilegiada para investigação, podemos lembrar da cena final de cabeça oca espuma de boneca (2019). Nessa situação, dois androides performavam uma conversa escrita por inteligência artificial. Por um lado, esse objeto falava a partir dele mesmo, mas também trazia suas palavras mais diretamente de um banco de dados de usuários que utilizavam esse chatbot e o seu algoritmo. Ou seja, falava a partir de um ponto médio das interações com usuários humanos (só isso implicaria em uma extensa conversa). Mas também, o resultado da falta de coerência e uma programação simplória desse chatbot, gerava um texto fragmentado cujo cerne era difícil de definir e que migrava de um assunto para o outro com facilidade. Tomando o resultado desse texto, gosto de comparar essa estrutura dramatúrgica com o Esperando Godot (1952) pela semelhança formal. No fim, o que quero apontar, é que os trabalhos estão inseridos dentro de uma herança ou tradição não linear de formas que, querendo o autor ou não, anunciam alguns lugares de onde partem e para onde voltam.  

LCO – Em “Cabeça oca espuma de boneca” temos um teatro sem atores, com máquinas e manequins e vozes percorrendo o espaço. Um teatro sem atores é um teatro sem drama, mas seus corpos mecânicos são frágeis e evidenciam essa fragilidade. O que mobiliza essa dramaturgia? Para você funciona igualmente no palco como no vídeo? 

IS: A dramaturgia e a forma, que me parecem indissociáveis nesse caso, são mobilizadas pelos próprios objetos. Mas isso não configura, necessariamente, um teatro sem drama. O primeiro acontecimento da peça desencadeia um movimento que acompanhará todo o tempo, em paralelo. Duas peles de látex coladas são içadas e então rompem a junção a partir da tensão produzida em sentidos opostos por um sistema de motores e contrapeso. Depois de separadas, uma das peles desenha os limites do “palco”, sobe a um plano mais alto até ser retomada na cena final. É, portanto, um contorno narrativo cíclico uma vez que, ao final, a mesma pele que se rompeu retorna ao lugar de início, como que sob uma pulsão de retorno.

A partir desse primeiro movimento, cada cena subsequente era moldada por um ou mais dispositivos. A fragilidade que você aponta poderia ser também um elemento dramático. Não pelos corpos serem frágeis em si, mas parece que um sistema tão complexo e, ao mesmo tempo, precário, abre possibilidades para uma série de falhas que exporiam alguma fragilidade.

Ou seja, de maneira geral, esses dispositivos mecânicos além de proporcionarem uma relação com o tempo própria deles, ora com desencadeamentos simultâneos, ora focando a atenção do espectador para detalhes específicos de cada cena; eles criam um apelo central de dramaticidade: a possibilidade imanente da falha e do descontrole. Lidando com mecanismos imperfeitos, a impossibilidade de prever as eventuais falhas adiciona uma tensão para a experiência do espectador. De alguma maneira, essa possível dimensão autônoma de alguns dos mecanismos poderia fugir do controle e assumir uma potência autodestrutiva, nos remetendo, por exemplo, à “Homenagem à Nova York”, do Yves Tinguely. Nos termos dessas máquinas e objetos, ganhar vida significa para nós, perder o controle.

Agora, certamente esse é um trabalho para ser visto na experiência direta. Eu fiz um filme da peça que virou uma videoinstalação em três canais, junto com a Quina filmes. Foi um bom trabalho, mas é completamente diferente. Usar os três canais possibilitou algo mais próximo da peça, porque é possível mostrar vários acontecimentos simultaneamente, como acontecia. Mas essa questão – que a produção teatral teve que enfrentar no último ano – não será nunca resolvida enquanto uma substituição perfeita. Existe algo de uma experiência corporal e espacial, de projeção, que é singular no teatro. O que me interessava e a razão pela qual eu me refiro ao trabalho como uma peça de teatro com atores ausentes é, justamente, o ritual tradicional que essa linguagem implica: dirigir-se ao local, penetrar no espaço, esperar o início, relacionar-se com as coisas diretamente, o corte do fim e o retorno para o mundo.

LCO – Há muito trabalho manual e muita tecnologia no seu processo de trabalho. Qual você acha o grande desafio para o uso das novas tecnologias na arte? Lembro de algumas conversas que tive com o Palatnik em que ele fazia questão de enfatizar que a tecnologia não era um fim, era um recurso, ele não estava preocupado em ficar up-to-date com as novas invenções, mas se apropriava delas para produzir acontecimentos ópticos. Como você vê isso na sua poética?

IS: Eu concordo que há esse perigo do encantamento da técnica e o uso de qualquer tecnologia não deve ser ingênuo, inclusive de tecnologias tradicionais do campo artístico. Isto é, qualquer gesto na elaboração do trabalho deve ser entendido como tal e como parte inalienável da obra. Como indiquei no começo, o uso de outras técnicas e ferramentas veio de uma necessidade do desenvolvimento dos próprios trabalhos, não era um conhecimento que tinha a priori e que decidi introduzir na prática por mero efeito. Ao contrário de Palatnik (cuja casa também tive o prazer de visitar em determinada ocasião), que tinha uma formação técnica para produção mecânica, os primeiros passos para o uso de algumas máquinas e micro-controladores são acompanhados de outros colaboradores, no meu caso.

No entanto, não podemos deixar de lado que cada ferramenta também cria novos olhares e, em última instância, subjetividades. Por isso, tomando o caso da fotogrametria, embora o desejo de utilizar essa técnica seja anterior ao entendimento e estudo dessa tecnologia, tão logo você começa a explorar suas possibilidades ela indica uma visualidade própria diferente do vídeo filmado. Isso me leva, por exemplo, a um movimento de câmera fantasmagórico e contínuo que me interessava, cuja realização no mundo físico implicaria em condições que não tenho acesso.

O espaço digital, que não é nenhuma tecnologia de ponta, apresenta relações completamente diferentes. A questão é: mesmo sendo algo conhecido, quando foi apropriado de maneira massiva pelo circuito de arte, isso foi feito da maneira mais conservadora possível. Quer dizer, o espaço digital mimetizava os espaços físicos reais – as paredes brancas e o chão de cimento queimado das galerias. O que a Dollhouse Gallery (2020) explora, em relação a isso, é uma situação inusitada, algo que seria impossível fora do mundo digital. A repetição que era uma característica central da casa de bonecas original, assume a forma de uma mise en abyme, onde não só a representação da casinha está dentro da casa de bonecas que retorna para ela mesma, mas também no desenvolvimento de um trabalho dentro do outro. Acho que isso acaba sendo algo recorrente: a produção normalmente é bastante consequente e, por vezes, autorreferente; ou utiliza-se de partes anteriores para elaborar algo.

O ponto é que a questão nunca foi utilizar as tecnologias mais atuais ou não, mas o que se faz com essas ferramentas. Como apontava, cada forma – seja ela um aparato tecnológico, determinado tipo de pincelada ou estruturas tradicionais de representação da arte – carrega em si a sua história. Procuro não ser muito ingênuo em relação a isso e, eventualmente, me utilizo de suas próprias características históricas. Mas me parece difícil classificar o uso geral dessas tecnologias mais recentes no trabalho porque elas variam muito. Acho que talvez algo que atravesse seja uma relação híbrida com essas tecnologias que conjugam técnicas ancestrais como teatro de fantoches ou bonecos ventríloquos com uma tecnologia mais ou menos simples da mecatrônica contemporânea.

LCO – Sua apropriação em vídeo do Worstward Ho! do Beckett é muito interessante, especialmente sabendo que foi feito durante a pandemia e o isolamento social, como se a perda de mundo a que estamos sendo submetidos nos obrigasse a assumir a falência do nosso projeto civilizatório moderno. Nosso progresso é nosso desastre. “Try  again.  Fail  again.  Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again.” Como bifurcar para não irmos para o abismo? Qual o papel, para você, da arte no enfrentamento deste desastre iminente?

IS: Acredito que uma questão fulcral é que a ideia da falência do projeto civilizatório moderno parece ser enunciada de um ponto pós-moderno; mas de fato, existe uma série de questões da modernidade que nunca foram superadas. Ironicamente, para mim o ponto de partida para entender o papel da arte parte de um pensamento moderno.

Frente a um engajamento que se utiliza de um conjunto de formas estabelecidas – uma “acomodação ao mundo” para transmitir suas mensagens – prefiro apostar no “choque do ininteligível” da arte autônoma e o entendimento de um sentido de forma complexo, defendida por Theodor Adorno. Em coincidência com a sua pergunta, um dos exemplos radicais levantados pelo autor em seu texto seminal Engagement (1962) é justamente Samuel Beckett. A repetição que é a base de Worstward Ho! trata-se de uma exploração da forma às suas mais radicais reduções. Seguindo uma lógica similar à de Adorno, o filósofo francês Alain Badiou escreve sobre o texto de Beckett que “Se não há adequação, se o dizer não está sob a prescrição do “o que é dito”, mas apenas sob a regra do dizer, então o dizer mal é a essência livre do dizer, ou ainda a afirmação da autonomia prescritiva do dizer.”

Essa leitura ressoa o tom de Adorno, onde o “dizer mal” é a resistência através das formas que não foram previamente aceitas pela ordem do mundo. Isto é, “Não cabe à arte apontar alternativas, mas resistir, por meio apenas de sua própria forma, ao curso do mundo que ameaça os homens com uma pistola permanentemente apontada para suas cabeças”. A obra de arte não tem uma finalidade, porque ela é uma finalidade em si mesma. Poder-se-ia dizer que essa é uma posição que aliena a produção artística, mas há de se lembrar que “não há qualquer conteúdo material, qualquer categoria formal de uma obra artística que, por mais indireta ou irreconhecivelmente transformada e desconhecida de si mesma, não tenha se originado da realidade empírica da qual se libertou.”

Evidentemente que existem uma série de outras atitudes fora do campo artístico, enfrentamentos concretos que devem ser levados a cabo enquanto sujeito no campo político. Tampouco isso quer dizer que a “arte autônoma” não tenha o seu impacto político, muito pelo contrário: o que está em jogo é a maneira como encaramos esse engajamento que, por vezes, simplifica o espectro político “Política ruim torna-se arte ruim, e vice-versa”.

Acho que a gente poderia encarar essa esteira “para o abismo” de duas maneiras. Se na sua pergunta ela representa a decadência da humanidade, o quadro político-econômico e os valores que em última instância regem a esfera pública, ela está a todo vapor e não vai ser a arte que vai salvar dessa queda. Existem algumas coisas que não cabem a ela resolver. Seria ingênuo pensar que ela resolveria todos os problemas materiais e imateriais. Parte da luta é travada com políticas públicas, movimentos sociais e na histórica luta de classes. As vezes a arte pode querer maquiar o que deveria ser disputa de classe. Por outro lado, se esse abismo representar o “dizer mal”, então se torna uma possibilidade da arte abrir as suas fendas e investigar as brechas. Não amenizar a queda, mas agudizar as consequências da real falência do projeto de modernidade que ainda está por vir.

LCO – Como foi para você e sua obra esse período da pandemia? O que não será mais igual?

IS: Não acredito que esse acontecimento tenha um efeito determinante e irreversível, ao contrário do que se acreditou no início. Mas também tirar uma posição no calor do momento poderia ser precipitado. As estruturas básicas de classe se mantêm e, portanto, não parece surgir uma mudança revolucionária de subjetividade a partir disso. No que se refere aos trabalhos artísticos, esse período deu espaço para desenvolvimentos que estavam em curso dentro da produção e, no fim das contas, as ferramentas que comecei a explorar parecem responder bem a uma série de questões levantadas pelo isolamento. Não obstante, os dois vídeos Night and Day e Worstward Ho! (2020) se relacionam diretamente com uma pesquisa de vídeos realizados em apartamento que, desde 2016, se configuravam como um espaço de exceção, de uma realidade isolada. ensaio, h (2017) é um vídeo inserido nessa pesquisa cuja única experiência fora do apartamento era mediada por imagens de computador e visitas virtuais. Quer dizer, existiam uma série de questões que foram levantadas nesse período que já eram constituintes de pesquisas anteriores e que se adensaram de maneiras diferentes.

Certamente haverão impactos e mudanças em algumas relações de trabalho, no mercado de arte, e na maneira como nos relacionamos que devem se desenrolar nos próximos anos. Mas tendo a ser resistente à ideia de que o impacto desastroso desse fenômeno tenha implicações drásticas e duradouras por si. Um comentário recorrente é que a “natureza” da humanidade e sua engenhosidade técnica e cultural é àquela da adaptação (junto à uma tendência conservadora, muitas vezes). O lapso de agudização das condições de isolamento, hiperconectividade e distanciamento social é um ensaio para questões centrais no desenvolvimento da espécie, por vir.


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