Luiz Camillo Osorio conversa com Castiel Vitorino

Leia a Conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Castiel Vitorino, realizada após a escolha da artista como uma das cinco Selecionadas do PIPA 2021.

LCO – Castiel, comecemos pela sua formação no Espírito Santo e depois em São Paulo. Apesar de muito jovem, seu trabalho evidencia uma formação partilhada entre a psicologia clínica, as artes visuais e a espiritualidade afro-brasileira. Como estes saberes, normalmente tão distintos em suas institucionalidades específicas, foram se integrando e constituindo uma prática tão singular de convergências poéticas e deslocamentos disciplinares?  CVB: Acredito que seja porque eu fui criada de um jeito que não me deixou esquecer da inseparabilidade de meus órgãos e membros em meu corpo, ou do meu corpo com a comunidade biótica que me pariu e me alimentou nas primeiras décadas desta encarnação: a Fonte Grande. O que há são distâncias e que no Brasil são misturadas através do embranquecimento. Mas, ainda que em meu nome haja Brasileiro, nunca pertenci a esta nação, e também não pertenço à história do Sujeito universal, proposto pelas psicanálises e psicologias, e muito menos a nenhuma religião. Religiões são barcos, a espiritualidade é o mar. E se aqui na superfície sou Castiel Vitorino Brasileiro, quando mergulho já não importa este nome, ou tais mitologias modernas encarnadas em mim (negritude, travestilidade), porque meu sangue pertence às águas, e não à brasilidade.  É que eu não tenho nenhum pacto institucional, não me interesso em defender a história de minhas profissões, porque não me importo em provar para as branquitudes e as cisgeneridades que sou psicóloga, artista e escritora. Eu já sou, cumpro com os requisitos, e ainda assim não sucumbo a eles. Então percebo que vocês, Humanos, se assustam e se incomodam com minha desresponsabilização para com suas histórias, suas verdades. O fato é que eu nasci no Brasil, decidi ter algumas profissões, mas minha história não acaba aqui, nada daqui aqui se acaba.   Sim, me é preciso anunciar: as religiosidades católicas e neopentecostais são fundamentais para a instauração e sustentação da modernidade como violência racial. Psicanálises e psicologias também utilizam da mesma matéria, assunto, substância ordenada pelos capitalismos e religiões: a alma; ou, dita de outra maneira, o pensamento, a cognição, a subjetividade. Sem dúvidas, esse é um dado importante a se dizer, que a intuição é o exercício da alma, a alma é a substância da espiritualidade, e o corpo no qual a alma se faz presente, integra  histórias ecossociais. Em outras palavras, Capitalismo, Psicologias, Psicanálises e religiões afrobrasileiras integram a modernidade e utilizam das mesmas matérias para sobreviver, desejam o mesmo alimento, ainda que o nomeiam de modos diferentes. Vocês me nomeiam Castiel, negra, travesti, psicóloga, artista. Sim. Mas no fundo do mar não me importa, e é disso que se trata minha vida, minha obra: a boa morte, kalunga.

LCO – Um aspecto que me chama a atenção é a variedade de linguagens que você manipula em sua construção artística – que não deixa de ser também uma construção de si mesma. São aquarelas (maravilhosas, por sinal), fotografias, foto-performances, cerâmica, filmes, instalações. Sempre ativando uma dimensão ao mesmo tempo muito material e muito espiritual dos signos, dos corpos, da interação com o outro. Como se dá esta escolha dos processos de trabalho, das linguagens postas em cena por sua poética? CVB: Eu crio porque quero morrer bem. E toda vez que crio, eu transfiguro camadas e filamentos de minha alma, em formas, texturas, cheiros e cores terráqueas; vejam a série “Corpoflor”. Atualmente eu crio para conseguir sair do Planeta Terra, me conectar com a dimensão intergalática de minha existência. Porque aprendi a ser apaixonada pela criação, aprendi a amar meu desígnio, aquele me diz: a imprevisibilidade da forma permanecerá, enquanto você acolher a boa morte, essa, que se anuncia a cada aquarela que se cria, porque desenhar com água ou criar templos, são modos de me fazer lembrar que quando eu morrer, voltarei não para buscar os instantes que não vivi no fundo do mar, mas para me fazer lembrar que nunca estive fora do mar, porque em mim há sangue. Por isso eu crio imagens, cerâmicas, danças, textos, filmes, porque eu decido pela imprevisibilidade. Eu acordo e sinto que preciso desenhar com a água, eu durmo e sinto que preciso dançar, tocar o barro ou criar um filme. Eu crio porque tenho fome e escolho a técnica de acordo com a minha vontade de comer.

LCO – Um dado notável é a poesia dos seus títulos, que já são eles próprios endereçamentos poéticos: “Quando o segredo é revelado, o mistério não é roubado”; “Lembrar da maldição, sentir a profecia”; “O estado sólido do fogo é a saudade”, e por aí vai. Eles surgem junto ao fazer das obras? Eles já existem de antemão e aguardam materialização em obra?  CVB: Não sei te responder. Não sei dizer sobre este porque, pois não há explicação quando me acontece esses milagres, ou sorrisos. Eu escolho títulos quando consigo relaxar, e nem sempre tenho conseguido… Eu penso em várias línguas… portugues, inglês, kimbundo, pajubá, espanhol. Neste momento, sei que meus títulos são lembretes ou convites, e também poemas. É comum que eu comece a escrever o título de um trabalho e continue a transformá-lo num parágrafo poético. Então eu paro e me digo:  vai com calma, respira, não precisa disso tudo porque a imagem basta.  Ai eu me respondo: mas imagem não depende da palavra.  Então geralmente eu opto por continuar o título em outra aba e decido pela frase que será dita quando for necessário. No entanto, nenhuma linguagem antecede meu corpo, e quando isso acontece, há a violência racial. Por isso meus títulos surgem durante o que se passa, na criação. E nesta tradução que me solicita, rumo ao Entendimento à brasileira, digo que minha criação não corresponde ao tempo cronológico, meu ritmo é outro, imensurável aos desenhos que chamamos de números. Então não sei responder essa pergunta.

LCO – Acho muito interessante quando você diz não estar preocupada com categorias tais como arte afro-brasileira, arte-travesti etc. Que você se sente numa distância radical da brasilidade. Seu lugar é o planeta Terra. Seus elementos o fogo, a água, a terra. Buscando criar o que você denomina “templos e espaços perecíveis de liberdade”. Tudo isso é muito instigante, atual, urgente. Fale um pouco sobre isso. CVB: Sim, eu frequento terreiros de macumba e geralmente também sou desrespeitada dentro deles. Não em todos, mas infelizmente é comum a travestifobia nestes templos. Perceber a colonização acontecendo nestes espaços de cura, me permitiu desencantar da ideia de liberdade como o paraíso cristão, da arte como objeto museológico, e da clínica enquanto exercício a ser feito apenas dentro do cubo branco. Importante também me são os enlaces que faço entre quilombos brasileiros, a incompetente Lei Aurea e a/os brancas/os abolicionistas medíocres que não conseguiram fazer nada além de criar empatia entre si, ou seja, se colocaram no lugar das pessoas escravizadas, quando o que é necessário a ser feito, é se colocar em seus lugares de herdeiros da riqueza colonial, de saqueadores, de colonizadores.  No Brasil, a liberdade e a cura são palavras e experiências que caminham juntas e se confundem. Em minha poética, eu proponho a cura como um momento perecível de liberdade e percebo a liberdade como um acontecimento real, no entanto, insondável à linguagem, e imprevisível às formas conhecidas. Eu articulo a liberdade para pessoas negras e indígenas, essa é a minha preocupação, mas sei que meu alcance ultrapassa minhas coordenadas iniciais.  Então, a liberdade não é um espaço, mas um acontecimento que inaugura espacialidade e também temporalidades, porque ainda que esta liberdade nos arremesse em momentos vitais cuja categoria de tempo-espaço não sirva, a liberdade é efêmera e quando em seu fim, nos vemos habitando lugares de violência. É um vai e vem. Então o desafio é criar um espaço que contenha mecanismos, ferramentas e condições para que essa liberdade possa ser instaurada. A liberdade para nós escuras é tornar-se indescritível aos gêneros, raças e quaisquer marcadores/previsões/mapeamentos modernos que cotidianamente nos traduzem.  Para que isso aconteça, eu decidi radicalizar minha poética acolhendo a efemeridade da forma e com isso decidi que os templos são construídos apenas uma vez. Esses espaços interagem com a história e condições ecológicas de cada ambiente em que é criado. Por isso não é cabível a repetição. Ainda na obra Quarto de Cura, a única em que há a possibilidade de ser instaurada em vários lugares, em cada um desses territórios, existe um novo Quarto de Cura. E é disso que se trata a liberdade: o acolhimento da condição fluvial, líquida da vida, o acolhimento da transfiguração.

LCO – Você poderia explicar como funcionou a instalação “Quarto de cura”, realizada entre dezembro de 2018 e janeiro de 2019. Podemos chamar de instalação? Ela era ativada pelas pessoas e por você? A dimensão da cura funcionava com visitas agendadas? O que há de terapêutico no seu trabalho? O que junta e o que separa arte e terapia? CVB: Eu penso que a categoria Instalação tradicionalmente tem correspondido a interesses poéticos e curatoriais de uma elite branca brasileira, com a qual eu não tenho nenhum interesse em similar-me, ainda que meu trabalho em alguns momentos seja colocado, pela agenda curatorial brasileira  – no Brasil e fora dele – em diálogo com tais artistas, como Hélio Oiticica e Lygia Clark. Ou até mesmo com Nise da Silveira. Minha história é outra, eu não faço arte terapia, eu não fetichizo a favela e suas arquiteturas, e não estou interessada em refletir sobre as castrações emocionais e sensitivas da branquitude, com minha obra.  Me interesso pelas histórias de Stela do Patrocínio, Arthur Bispo do Rosário e de tantas outras pessoas negras e indígenas que foram encarceradas e psiquiatrizadas também pelos seus fazeres estéticos, que demonstravam a vida além dos limites existenciais impostos pela categoria/ferramenta/metodologia/mitologia Sujeito Moderno. Poderíamos recomeçar a história da dança e da performance, deste país, a partir da primeira prisão de homens negros por praticarem capoeira. Poderíamos começar essa história da Arte Brasileira analisando o fato de que delegacias policiais tornam-se museus na medida em que saquearam de templos afrobrasileiros, seus objetos sagrados. Devemos começar a história do corpo, a partir da catequização de pessoas indígenas, que foram obrigadas a ajoelhar e orar ao Deus fálico que também é utilizado por psicologias e psicanálises para nos dizer: famílias negras são desestruturadas, a transição de gênero é um transtorno. Então, para responder às suas perguntas, nós precisamos de tempo e esforço conjunto, porque são questões que, se analisadas de modo ético, nos mostram que de fato o Brasil deve chegar ao fim.  Sim, posso afirmar que Quarto de Cura é um território perecível de liberdade, são zonas de suspensão criadas dentro dessa geografia amaldiçoada. No fim do ano de 2018, meu mestre de congo Renato Santos visitou a exposição coletiva Malungas, curada por Rosana Paulino e integrada por mim, Charlene Bicalho e Kika Carvalho no Museu Capixaba do Negro. Naquela visita, Renato me convidou para montar o Quarto de Cura dentro de sua casa, no morro da Fonte Grande. E assim eu o fiz: perambulava entre o Quarto e o hospital onde meu avô Benedito Brasileiro foi internado 3 dias antes da inauguração da obra. Meu avô Bininho morreu enquanto o Quarto de Cura acontecia, e ele sempre nos dizia que queria morrer na boca da mata da Fonte Grande, lá onde morávamos.  Neste Quarto de Cura, eu me disponibilizei às visitas, passava várias horas dentro do cômodo recebendo as pessoas. Conversamos sobre traumas, criamos músicas, fotografias, chorávamos e eu perguntava a algumas a seguinte questão: o que é cura? Então, gravei alguns desses depoimentos, e após elaborei uma obra sonora que transformou-se no som do filme “Lembrar daquilo que esqueci”(2019). Algumas pessoas do morro entenderam que eu tinha aberto um centro de macumba na Fonte Grande, e estava oferecendo benzimento, como acontecia no passado do bairro. Hoje sei que sim, elas estavam corretas, porque minha obra é um trabalho espiritual, clínico, ou seja, um exercício da alma, a intuição. Foi importante construir aquele Quarto, porque contribui para a história do morro da Fonte Grande como uma área quilombola, ainda que a prefeitura capixaba e o estado brasileiro não o reconheçam como tal.  Eu disponibilizava dias e horários e esperava as pessoas virem me visitar. Nesses contatos, percebi enlaces do prazer e o fetiche que ainda não havia sido elaborado por mim com o cuidado e coragem necessários. Eu sou retinta, e no Brasil as pessoas esperam de mim servidão. Cotidianamente fetiches como da Tia Anastácia, da Nega Velha que cura brancos, da Ama de Leite, são utilizadas por vocês para se aproximarem e vincularem-se comigo, seja na clínica ou na arte. Eu terminei aquele Quarto de Cura muito feliz, alimentada, agoniada e esgotada. Após, lancei o livro “ Quando encontro vocês: macumbas de travestis, feitiços de bixas” (2019).

LCO – É difícil lidar com sua obra, há desamparo e há energia. O que você diria para quem começa a se aproximar do seu trabalho, da sua poética e não sabe por onde se orientar? CVB: Permaneça no desentendimento ou violentarar-me com o seu desejo iluminista, que me embranquece para tentar saber da totalidade de mim. Não sou nada além de uma criatura escura, una mujer invertida, un hombre maldito, uma flor, una tormenta. Si, soy tudo isto pero no se mi nombre. Pois soy tudo isso. Pois no soy nada mas que un respiro citrico. La forma de la menya. Kalunga.

LCO – Como foi para você e sua obra esse período da pandemia? O que não será mais igual? CVB: Vivi o que me era necessário, com a sapiência que eu tinha a me oferecer. O que transfigurou foi o meu interesse, me desencantei. Atualmente eu não mais desejo encontrar vocês.



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