No primeiro texto de 2021 para sua coluna, Luiz Camillo Osorio debate a arte de filmar o futebol. Após a morte de um dos maiores jogadores da história, o argentino Diego Maradona, Camillo compara o futebol do século XX com o futebol assistido hoje e vigiado pelo VAR, além de analisar a “câmera que quer mostrar o que não se vê” tanto no campo como nas telas de cinema e instalações de arte que retratam o futebol. Leia o texto completo abaixo.
FUTEBOL E ARTE
“No futebol o pior cego é aquele que só vê a bola” – Nelson Rodrigues
São dois assuntos muito caros. A minha memória afetiva está inexoravelmente marcada pelo futebol. Carrego comigo as inscrições deixadas por sensações vividas no Maracanã ou diante da TV, em grande parte tendo o Fluminense e a seleção como protagonistas. Não saberia viver sem futebol. Essa é uma constatação banal e maravilhosa. A minha vida adulta tem na arte um outro indicativo existencial. Conversas com artistas, visitas a museus, exposições e ateliês, a escrita da crítica, a reflexão teórica, curadorias reais e imaginárias, tudo isso é parte da minha vida profissional e uma fonte verdadeira de prazer (não obstante a tagarelice e afetação em torno do mundo da arte contemporânea). A aposta no valor da experiência estética (e o que há nela de partilha de mundo) costura em mim futebol e arte.
Por que falar desses dois assuntos juntos agora? Explico: sonhei outro dia que estava em um debate defendendo a tese do Maradona ter sido o mais trágico e, portanto, o mais apaixonante jogador do século XX. Ao acordar lembrei-me do sonho e segui com ele. Pelé é craque, mas é menos apaixonante. Pelé é apolíneo. Um gênio absoluto, o maior de todos: virtuoso, implacável, completo. Maradona era movido por uma espécie de ira demoníaca, a plasticidade do seu jogo era pura transgressão.
Peguemos a vitória da Argentina sobre a Inglaterra em 1986. Dois gols dele. Ambos extraordinários e complementares. Um de mão, uma mão evidente e invisível; o outro driblando meio time, trazendo a bola do seu campo, endiabrado, imparável, mostrando ao mundo que não se tratava de um jogo, mas de um acontecimento histórico. Além disso, ele não jogava só nas quatro linhas – seus títulos e suas derrotas aconteciam também, e muito, fora de campo.
Ano passado vi o documentário sobre Maradona de Asif Kapadia. Li àquela altura que ele não havia gostado. Eu gostei. O foco do filme foi no período napolitano, onde o craque foi do céu ao inferno em 3 anos. Vitórias, títulos impensáveis, máfia, drogas, veneração, paranoia. Depois de um título italiano, numa comemoração que tomou conta de Nápoles por semanas, para se ter ideia do que isso representa aos amantes do futebol, deixaram uma faixa na entrada do cemitério – “vocês não sabem o que perderam”. Maradona era Deus em Nápoles. Segue sendo.
Gostei muito do filme também, creio eu, pois futebol e cinema me levam de volta à infância e à adolescência. Cresci vendo o Canal 100. Valia a pena ir ao cinema só para assistir aqueles momentos iniciais da sessão. A câmera colada no jogo e rente ao gramado, os lances de efeito em câmera-lenta, a vibração da torcida ao fundo, a participação do geraldino, a música inesquecível, tudo aquilo foi parte constitutiva de minha educação sentimental.
Vou assim chegando ao que queria comentar despretensiosamente – a arte de filmar o futebol(1). A arte de filmar enquanto modo de pensar-sentir o futebol. Um parêntese conjuntural. A relação entre as câmeras e o jogo tem sido vilipendiada recentemente pela presença do VAR. A câmera que vigia a transgressão anda se sobrepondo àquela que testemunha o extraordinário. É justo, ok, mas futebol não tem nada a ver com justiça. Ninguém ama futebol por ser um esporte justo, talvez seja mesmo o contrário, é um dos esportes em que de fato surpresas/injustiças são constantes e isso potencializa sua dimensão trágica. Não deixa de ser curioso, mesmo forçando um pouco a barra, que estejamos vivendo agora, na pandemia, o ápice do VAR com estádios sem público. Esta me parece a conclusão lógica deste recurso, que, acima de tudo, quer rasurar completamente a espontaneidade e a potência estética do futebol. Mas falemos do que interessa, da arte junto ao futebol, da câmera que quer mostrar o que não se vê.
Um filme absolutamente singular neste aspecto é Zidane: A 21st Century Portrait (2006) de Douglas Gordon e Philippe Parreno. Um jogador, uma partida, 17 câmeras. É um filme sobre arte, sobre o retrato, sobre uma estrela, sobre a espera, sobre futebol. O que se vê ao longo de toda uma partida é Zinedine Zidane, câmera fechada nele. Nunca assisti a este filme inteiro, no cinema, do começo ao fim. Vi partes, muitas partes, em ocasiões diferentes. A operação para realizar o filme não deve ter sido simples. Como chegar ao craque? Como conseguir filmá-lo assim em uma partida oficial? Como filmar uma partida com 17 câmeras todas voltadas para o mesmo jogador? Como juntar bons profissionais de câmera e coloca-los sob uma mesma função? Um filme sem roteiro. No dia do jogo – Real Madri x Villareal no Santiago Bernabeu – li que toda a equipe foi ao Prado ver uma exposição, com direito a visita guiada pelos artistas, sobre o retrato na arte espanhola de Velazquez a Picasso. É aí dentro desta história que ele pertence.
Segundo os artistas o difícil foi montar o material em um único filme. Tarefa árdua. O coração deste filme é nos colocar junto, colado ao jogador em campo – esperando a bola, correndo, passando, marcando, trombando com o adversário, pensando com os olhos e com as pernas, movimentos lentos e rápidos, onde colocar as mãos, correr em que direção, respirar, esperar, esperar, esperar. Há muitos momentos de suspensão, onde nada aparentemente acontece. O artista está tragado pelo jogo e cheio de reflexividade. Lembrei-me de um maravilhoso poema do João Cabral sobre o craque do Palmeiras Ademir da Guia, que reproduzo aqui na íntegra pois tem muito a ver com Zidane.
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
Em uma carta escrita para a revista Parkett endereçada a Philippe Parreno, o crítico de cinema Luc Lagier faz algumas observações interessantes sobre este filme. Destaco aqui uma. “Contrary to all expectations, my reaction to your film was physical, visceral, claustrophobic – in short, a genuine experience of fear comparable to what I had felt when viewing the horror films of my adolescence, which I never thought I’d encounter again. ZIDANE: A 21s’ CENTURY PORTRAIT was like a scary movie to me. Really”(2). Esta claustrofobia vem por conta do plano fechado, do ritmo líquido, lento, grosso, que se infiltra no espectador e tira dele qualquer capacidade de olhar de fora, interditando o domínio sobre a cena, a visão integral dos lances e do campo. Como nos filmes em tempo real do Warhol, somos fustigados pelo tédio, junto à constatação da elegância de movimentos.
Em uma partida de futebol, um jogador, por mais protagonista que seja, toca pouco na bola. Segundo estudos recentes, um jogador fica em média 1,5 minuto com a bola no pé ao longo dos 90 minutos! Isso se torna exponencial no filme uma vez que a câmera não descola dele. A emoção no futebol está concentrada na dinâmica da bola, nos movimentos orquestrados em torno dela. O volume de jogo e a intensidade adquirida são, cada vez mais, do time e não de cada jogador. Como dito pelo título, trata-se de um retrato, o retrato de um herói em ação, não de uma partida de futebol. Tampouco importa a vitória ou derrota. O Real Madri perdeu, mas isso passa despercebido.
Outro trabalho notável que parte do futebol sem se restringir apenas ao jogo, é Deep Play (2007) de Harun Farocki. Exibido pela primeira vez na Documenta de Kassel de 2007, obrigou-me a assisti-lo ao longo dos 4 dias que permaneci na cidade alemã. São ao todo 12 monitores, cada um com um aspecto da final da Copa do Mundo de 2006 entre Itália e França. Sim, a partida marcada pela cabeçada de Zidane no peito do zagueiro Materazzi.
Como de costume no caso do Farocki, impossível ver esta instalação em uma sentada só. São muitos aspectos tratados e todos compõem um mosaico sócio-político-cultural constituído sobremaneira pela inteligência da montagem. No caso da transmissão de uma final de copa do mundo, a complexidade do acontecimento esportivo fica potencializada. São bilhões de telespectadores, inúmeros interesses comerciais, várias preocupações de segurança, investimentos táticos e técnicos de muitas vidas sendo jogados em 90 minutos. Farocki, além do jogo, nos fez ver, através de cada monitor utilizado, o olhar da segurança, a análise dos comentaristas, o controle de edição, os técnicos, criou animações com esquemas táticos, destacando a movimentação das defesas e dos ataques em gráficos de calor que se deslocavam pelo monitor.
Até a partida em si pode ser vista. Esta, curiosamente, era o que menos interessava. A maioria já tinha visto e o jogo não foi grande coisa. Mas os muitos ângulos apresentados, a enorme parafernália de segurança e de transmissão, as estratégias, a movimentação da bola e dos times; isso tudo era fascinante. Uma constatação ainda intuitiva e provisória. O retrato de Zidane e a final da copa de 2006 marcam uma transição no futebol. O craque vai perdendo lugar para a equipe, o domínio da bola vai sendo substituído pela ocupação do campo, a diferença de um lance genial começa a valer menos que a coesão e intensidade do jogo coletivo. A cabeçada do Zidane é o desespero do último craque do século XX percebendo que ele não tem vez contra aquela mancha compacta de marcadores italianos que o monitor do Farocki explicitou. Messi e CR7 são outra história.
Vendo estes dois trabalhos – Parreno/Gordon e Farocki – percebemos, ou melhor, somos lembrados do quanto o futebol é um fenômeno político de primeira grandeza em nossa época, que nos manipula, fascina, desconcerta, reúne, encanta e desespera. O que fazemos com isso é uma questão que não pode se separar do que isso – o futebol – faz conosco. Eu diria que o futebol é um dos poucos lugares que ainda se podem produzir afetos de comunhão e separação tendo o mundo comum do jogo como força agregadora maior. A indiferença em relação ao futebol é muito mais incompreensível para quem ama futebol do que o afeto do torcedor adversário. Essa é a política que interessa no futebol: o exercício do dissenso apaixonado.
Para terminar com outro filme e trazer de volta para o Brasil, não poderia deixar de mencionar o vídeo de Lula Wanderley intitulado Arte é o futebol sem bola. O filme abre com a citação de Nelson Rodrigues usada neste artigo. “No futebol o pior cego é aquele que só vê a bola”. O filme é de uma simplicidade estonteante, especialmente se compararmos com os outros dois. E ele realiza, literalmente, o que promete. Mostra que futebol não se reduz à bola, mas à dinâmica dos corpos a sua volta, a coreografia e a plasticidade dos corpos em máxima concentração e performatividade.
Wanderley mostra em sequência três gols históricos de Copas do Mundo (Pelé em 1958 contra a Suécia; Maradona em 1986 contra a Inglaterra; Romário em 1994 contra a Holanda). Só que ele tira a bola de cena e deixa o lance se desenrolar sem ela. Sobram, na mais alta potência, a fantasia, a dança e o combate dos corpos em movimento, próprios do futebol. A retirada da bola mostra toda a beleza envolvida como uma coisa só – a preparação da jogada, o gol e a comemoração. E a câmera é testemunha e promotora destes momentos extraordinários – ainda, naquela altura, sem o corta barato do VAR para interromper o gozo.
(1) Ao falar de futebol e cinema não poderia deixar de mencionar o Cinefoot, festival de cinema de futebol que já chegou a 11 edições para o deleite dos amantes de ambas as artes. Também um elogio aos garotos do Doze Futebol que com seus pequenos documentários trazem o que está à margem no futebol para dentro do foco. Por fim, um obrigado aos inúmeros filmes históricos sobre o rude esporte bretão, a começar, no Brasil, com Garrincha, alegria do povo (1962) de Joaquim Pedro de Andrade, até, mais recentemente, o notável Geraldinos (2015) de Renato Martins e Pedro Asbeg. Há muito filme bom sobre futebol, mas meu interesse aqui neste texto é outro, é mais sobre o modo como o cinema ou vídeo podem pensar o futebol, incorporar e traduzir a experiência do jogo.
(2) Luc Lagier, Revista Parkett nº86, 2009 – “Contrariamente às expectativas, minha reação ao seu filme foi física, visceral, claustrofóbica – em suma, uma experiência genuína de medo, comparável àquela vivida na adolescente em filmes de horror. Coisa que achei que não mais se repetiria. Zidane: um retrato do século XXI foi um filme aterrorizante, de verdade”.