O novo texto de Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, propõe um diálogo com o artigo de Guilherme Gutman publicado no site em agosto, “Curadoria-Filme: a construção de um outro modo de exposição de imagem e som”. Em resposta a ideias sobre outras e novas formas de pensar uma curadoria em arte, Gutman arrisca uma curadoria-filme, uma nova linguagem chamada por Camillo de “poética”.
Leia o texto completo abaixo:
CURADORIA-FILME E OUTRAS BIFURCAÇÕES CURATORIAIS: RESPOSTA AO GUILHERME GUTMAN
Ando lento nas respostas. Faz mais de um mês que o psicanalista e curador Guilherme Gutman publicou aqui no site do PIPA seu artigo “Curadoria-Filme: a construção de um outro modo de exposição de imagem e som”. Desde o momento que li tive a certeza que era uma chamada para conversarmos. Uma conversa, aliás, que já acontece há tempos, desde nossos cursos conjuntos com a Marta Mestre no MAM-Rio na década passada, alguns comentários seus a meus textos e muitos papos dispersos por aí, presenciais e, agora, virtuais. Uma conversa entre amigos é a coisa mais séria que há. Serei breve nesta resposta, uma vez que a vida no tempo da sincronicidade hiperativa e imperativa do mundo online produziu uma espécie de açodamento em repouso. Deixamos de circular, mas a circulação nos tomou por dentro.
Desde antes do artigo que ele cita algumas vezes, sobre Godard curador e ensaísta que publiquei com o Pedro Duarte, já vinha pensando sobre formatos curatoriais alternativos, modos de articular curadoria, crítica e história da arte. De maneira mais concreta, a pergunta sobre o pensamento curatorial diz respeito aos modos pelos quais ele interfere na exposição sem agredir as obras. O pensamento curatorial é um gesto reflexivo que põe em cena um conjunto de obras tendo em vista uma vontade de sentido que atua como uma espécie de gravitação entre as obras. Ele inevitavelmente desloca as obras, faz com que elas se insiram em uma constelação dinâmica, sem com isso tirá-las de seu próprio eixo, ou seja, sem dar-lhes um movimento arbitrário. As obras ganham movimentos novos, deslocam-se, mas sem que isso seja puxado de fora. A curadoria como orquestração de ritmos imprevistos e sincrônicos.
Nestes movimentos, a curadoria assume-se como crítica e como história da arte, faz isso sendo uma extensão do modo de ser das obras, atuando na recomposição do passado e na tensão com o presente. Montar uma exposição, pôr em cena um conjunto de obras, isso vem sempre motivado por um desejo de mobilizar sentidos históricos e críticos, ou seja, de fazer com que as obras abram leituras diversas do passado e do presente, para assim, de dentro desta multiplicidade temporal, produzir bifurcações em relação ao futuro. Uma exposição deve, portanto, lidar com nossos modos de sentir e de pensar, de sermos afetados e com isso desdobrarmos efeitos sobre como percebemos e nomeamos o real. Nem toda curadoria tem essa força, melhor dizendo, é raro que tenha, mas ela deve estar no horizonte.
Guilherme começa seu texto com uma indicação de que esta nova possibilidade de curadoria, o filme-curadoria, remetia ao momento da pandemia e do isolamento social. “No tempo em que vivemos, é provável que boa parte das exposições em artes visuais prossigam sendo também concebidas como ‘virtuais’; este pensamento desaguou em uma investigação das possibilidades de criação de um filme de curador.” Entretanto, para além deste empuxo contextual, o texto se desdobra na questão própria de um fazer curadoria enquanto experiência fílmica. “Sob a forma de um filme de curador, deve-se tatear e procurar um outro modo de falar sobre a exposição. Esta ideia não serve apenas como algo em substituição temporária às formas mais habituais de curadoria, mas um outro modo de realizá-la. Certamente cabem em uma curadoria muitas ideias e formas de realização, mas modos curatoriais menos convencionais podem deixar que reapareçam de uma zona sombreada, restos de imagens e de pensamentos que contêm potências específicas”.
Duas experiências, muito diferentes entre si, me veem imediatamente à memória. Os audiovisuais de Frederico Morais, realizados no início da década de 1970, que desdobravam o trabalho da crítica em uma experiência fílmica experimental, com diapositivos, música e narração. Pelo menos três experimentos foram feitos nesta direção e marcaram época. Sintonizando novos formatos artísticos e novas poéticas críticas. Uso deliberadamente a palavra poética aqui pois é de invenção de linguagem que se trata, levando à crítica um imperativo inventivo inusual, sem o qual ela perderia o passo de presente, sem disponibilidade para pensar com as obras. Neste aspecto, ficam estes exemplos do Frederico como uma marca singular de reinvenção da crítica e de sua potência co-criativa.
O segundo exemplo, seriam as História(s) do Cinema de Godard. Seu uso radical dos arquivos do cinema para recontar não apenas sua história como linguagem, mas a história do século XX como uma história a contrapelo. Fazer ver o que os filmes não mostravam, arrancar deles um testemunho inaudito do horror e da perplexidade. Contar a história remontando e deslocando suas imagens, seus textos, suas vozes. Como disse o filósofo Jacques Rancière sobre o método historiográfico de Godard, a história ali “é essa relação de interioridade que coloca toda imagem em relação com toda outra, que permite que se esteja lá onde não se foi, que permite produzir todas as conexões que não foram produzidas e representar, de outro modo, todas as histórias”.
A invenção do passado aqui é o oposto do negacionismo, em vez de apagar o passado quer revelar outros passados. Retirar daquilo que foi os seus futuros abortados, esta parece-me ser a tarefa principal da história da arte enquanto crítica de arte, da história enquanto historicidade, como escrita que interpela e redesenha os modos de entender o passado; assim como da curadoria enquanto fazer crítico, histórico e poético. Neste aspecto, lembrando um escritor fundamental para Godard, Andre Malraux, seria o caso de pensar o gesto curatorial enquanto mobilizador de museus imaginários. Da mesma forma que para o pensador, militante e ministro francês, a história da arte é a história daquilo que é fotografável, quiçá a proposta sugerida agora é de pensá-la também enquanto aquilo capaz de ser constantemente remontado, seja no espaço, seja nos filmes. É nesta disposição para ganhar novas articulações a partir de outras gravitações e diferentes constelações semânticas que as obras vão se inserindo em narrativas históricas aptas a lidarem com a multiplicidade de tempos, geografias e saberes.
Acrescento aqui como um desdobramento deste diálogo com o Museu Imaginário do Malraux e a curadoria enquanto filme, o curta-metragem antropológico-experimental de Alain Resnais e Chris Marker, As estátuas também morrem de 1954. Como já pontado por outros autores, este filme abre um diálogo direto e crítico com o Museu Imaginário da Escultura Mundial que havia sido recentemente lançado, com sua mobilização ativa de um repertório formal que aproximava deliberadamente produções plásticas díspares e de momentos históricos e civilizatórios os mais variados. Independentemente de uma visão idealista e anti-histórica, o que me interessa em Malraux é o modo como aposta na reprodução fotográfica e nos enquadramentos das imagens como dispositivo para pensar e articular uma nova episteme visual.
No filme de Resnais e Marker vemos uma montagem que parte de um museu etnográfico francês e se desloca por rituais africanos e conflitos raciais norte-americanos, passando pela pulsão do Jazz e do Boxe. Todos os conflitos são performatizados, abrindo cesuras nos corpos escravizados, insubmissos e plásticos. Não há neste “filme-curadoria” uma sublimação das cicatrizes, mas uma tentativa de tensionar o objeto cultural e a subjetivação política. A narração grave de Jean Négroni abre o filme dizendo: “quando os homens morrem eles entram na história, quando as estátuas morrem, elas viram arte. Esta botânica da morte é o que chamamos cultura”.
A pergunta por trás destas novas formas de curadoria, entre elas a curadoria-filme, seria uma tentativa de responder a esta botânica da morte e/ou idealização da arte com o imperativo lançado por Rilke ao Torso Arcaico de Apolo – Força é mudares de vida! Como multiplicar as formas de arte e modelos de exposição, garantir-lhes alguma força, em um mundo hiperinstitucionalizado e cansado de tanta afetação? Diria que há muito a aprender com a música e os DJs na invenção de programas que são ao mesmo tempo festa e ensaio crítico. O extraordinário ronca-ronca do Mauricio Valladares na web soa como um exemplo ímpar. Enfim, dos cortes e enquadramentos do museu imaginário do Malraux, passando pela experimentação televisiva e de modos de ver de John Berger, chegando às Histórias do Cinema com sua cascata de textos, vozes e imagens, há um universo de montagens e ritmos a serem explorados na fatura de filmes-curadorias. Não faltam caminhos e aplicativos, não faltam ideias e obras, exemplos e possibilidades. O importante é estar à altura do presente sem sucumbir à mediocridade operante.
Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA