Olá, já conhece as fotografias de Gê Viana? E da técnica de colagem digital, está por dentro?
Bem-vindo à Ocupação dos Finalistas 2020! A cada semana, um dos quatro artistas abre a porta de seu atelier para o público virtual do Prêmio PIPA, com vídeos, fotos e textos exclusivamente elaborados para a Ocupação. Randolpho Lamonier e Maxwell Alexandre já compartilharam conosco diversas novidades sobre seus trabalhos. Nesta semana, até o dia 7 de novembro, Gê Viana ocupa o site e as redes sociais do Prêmio com conteúdo original. A cada dia, um novo material será disponibilizado. Fique de olho e nos acompanhe também nas plataformas Instagram, Twitter e Facebook.
A ideia de criarmos uma mostra online surgiu por conta deste período em que estaria em cartaz no Paço Imperial a exposição dos finalistas do Prêmio PIPA 2020. Até 14 de novembro, nossas plataformas vão estar recheadas de conteúdos realizados e elaborados pelos artistas. Não temos o objetivo de substituir a exposição que foi adiada por conta da pandemia, com previsão para acontecer em 2021, mas criar um encontro possível entre finalistas do PIPA 2020 e o público virtual ainda este ano.
Dia 6: No último dia de Ocupação de Gê Viana, a artista compartilha o texto crítico, escrito por Beatriz Lemos. O texto inédito é parte do catálogo do Prêmio PIPA 2020, que deve ser lançaco ainda em novembro.
Leia o texto completo:
Herança de capelobo é fazer brotar árvore no umbigo
Deixe sinais de luta.
Deixe sinais de triunfo.
E deixe sinais.
Cheryl Clake
A memória é traiçoeira. Gravamos na superfície da pele lembranças que se encontram compartilhadas com vivências, ambientadas em tempos distintos. Uma memória comunitária, ancestral, que não nos deixa esquecer. Por vezes a dor ou o silenciamento cravam com mais força no corpo, criando camadas de traumas herdados por gerações. Porém, também guardamos nessa mesma pele os sorrisos, os encontros, a musicalidade, a potência do amor, lembranças por vezes pouco acessíveis diante das armadilhas dessas ruínas em que vivemos. Pois traiçoeiras também são as sequelas intrínsecas aos mecanismos estruturais do racismo, que nos desviam de modos de vida que permitam construir conceitos de coletividade, pertencimento e presentificação.
“A função primordial do racismo é a distração”, diz Toni Morrison. Quando temos de constantemente responder a um histórico de subalternização, nos forçam esquecer que as rotas de fuga e a desobediência aos dispositivos de controle e de morte sempre existiram – e o mais importante: foram elaboradas por nós. De certo existem as urgências da denúncia, que gritam por medidas de reparação. Mas há caminhos, dentro das sutilezas do imaginário, nos quais podemos elaborar memórias que ainda virão ou escrever as cartas que já foram enviadas. Onde podemos definir a linearidade ou não de nossas histórias. A memória pode ser traiçoeira, mas também guarda a potência das escolhas. E assim, não mais deixaremos nossos álbuns esvaziados.
A fabulação do arquivo
A incompletude do que é usualmente propagado enquanto verdade arquivística manifesta a grande falha que são as narrativas históricas embasadas em relatos e inventários de imagens. O que é deixado de fora do registro histórico denota escolhas políticas calcadas em estruturas de poder, racismo, etnocídio e em recortes de classe e gênero. As histórias não contadas apontam as diretrizes do projeto colonial que conjecturam em seu cerne a dessubjetivação e desumanização dos corpos que habitam o amplo espectro das dissidências, bem como o desmantelamento da memória e suas epistemologias.
Acervos são narrativas organizadas para contar histórias específicas e pré-determinadas a partir de pontos de vista, juízos de valor, boca e olhos de quem ocupa a posição privilegiada do relato. Historicamente, essas representações são construídas pelo imaginário branco e patriarcal e carregam consigo todas as autorizações concedidas pelo regime de acesso simbólico e intelectual. No conduto do tempo, a memória ocidental é feita de arquivo. Palavras e imagens são colocadas como provas históricas de que algo existiu. Assim, os inventários documentais e imagéticos de uma cultura, segundo critérios eurocêntricos, colonialmente ditos universais, comprovam existências e feitos.
E na rota para a demolição dos padrões universais de conhecimento e existência, temos trabalhado de forma incansável na elaboração de um pensamento sistêmico e radical que proporcione os devidos suportes às insurgências que se manifestam na descolonização dos corpos e do inconsciente, de forma que tais insurgências codifiquem e corrompam os procedimentos coloniais de coerção e apagamento.
A atenção para a produção simbólica como um espaço de perpetuação das relações de poder, por configurar campo dominante de reconhecimento das identidades, tem sido reivindicada por artistas e intelectuais que, ao insistirem na autonomia de suas subjetividades, ceifam os condicionamentos de ingresso destinados ao protótipo da colonialidade corpórea e fundam a permissão do fabular. Tal exigência nada tem a ver com a demanda pelos falidos regimes de representatividade, manifestando-se, pelo contrário, como conjuro, feitiço e ritual de reconstrução de uma genealogia comum entre diferentes tempos-espaços.
Diálogos
No documentário Orí (1996), Beatriz Nascimento nos introduz a sua condição de atlântica, tomando seu corpo negro como individual na mesma medida que se constitui em coletividade, enquanto lugar de registro de sua história e migrações. A perda da imagem extraviada na diáspora é discussão central dessa obra, em que Beatriz associa imagem e corpo à construção da identidade, não somente a individual, mas a do corpo coletivo, ao trazer a noção da memória que se revive em ritmo e movimento, quando na instauração de qualquer agrupamento ou espacialidade de corpos pretos, ressignificando o conceito de quilombo. A autora afirma: “[…] a memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento”.
Um gesto impecável de especulação desse corpo liberto das demandas racistas que operam na base do epistemicídio pode ser visto no filme The Watermelon Woman, de Cheryl Dunye. Também produzida nos anos 1990, a obra se configura como uma importante referência nos estudos das lesbianidades negras e da história cultural cinematográfica, denunciando a invisibilidade e a marginalização justamente por meio da criação de um arquivo. Dunye cria um filme de ficção que se camufla em documentário para edificar um imaginário a partir da fabulação. Por meio de um arquivo fictício, o filme reivindica a vida de mulheres negras e lésbicas e de suas histórias que certamente existiram, mas nunca foram documentadas. Dessa forma, presentifica a memória comum a partir de um conjunto imagético fabulado, fincando pertencimento, legitimação e recognição.
A fabulação nos encaminharia, assim, em direção ao translado entre distintas temporalidades, operando processos de cura no presente para restituir o corpo de antes. Precisamos nos ver, porém não mais performando o desejo do outro sobre nós. O gesto de reflorestamento dessa imagem de representação é bem contextualizado por Geni Núñez, que nos traz a imagem da violência como um espelho quebrado, em que, ainda que nos vejamos bem: “[…] a imagem que o espelho colonial devolve […] é distorcida – cinde o processo de (auto)reconhecimento. Que nosso espelho seja o das águas fluindo, recíproco, vivo. Reflorestar nossa imaginação, nossas relações, é parte fundamental do restabelecimento da saúde”.
No estilhaço do tempo, damos de cara com as mesmas pontas soltas, as mesmas urgências de encontro com a autoimagem e de reescrita de nossas histórias. Há uma instância iminente em todo corpo negro e indígena, no corpo sapatão, nos corpos dissidentes. Navegamos em maré alta no vislumbre por requerimentos de criação, historicização, arquivamentos e documentações que deem conta do legado imagético que desejamos conjurar.
Fincada em suas heranças, a artista Gê Viana afirma presente as memórias de todos os tempos, que sempre existiram, mas que foram ocultas pela heterossexualidade compulsória ou anuladas pelo eficaz projeto de embranquecimento em voga no Brasil, que não reconhece a possibilidade da existência indígena em meios urbanos. No processo de criação de inventários, por meio da colagem, fotografia, performance e dança, a artista integra ao repertório iconográfico da arte narrativas de vida aos corpos que no decurso de uma História da Arte eurobranca foram representados como subalternizados e exotizados. Sua obra é a conquista da imagem, um mecanismo de recomposição tanto físico e material quanto simbólico e espiritual.
Criando memória de futuro
Paridade é uma série de fotomontagens em grandes dimensões, desenvolvida desde 2017 para execução, preferencialmente, no formato lambe, estabelecendo o diálogo com a rua como parte inerente à sua concepção. Isso porque o trabalho opera como testemunho explícito de um reconhecimento identitário indígena, evidenciando os amplos efeitos do necroprojeto colonial, que em seu plano de genocídio da população indígena, somado à falácia do programa da miscigenação brasileira, saqueou o direito de um pertencimento enquanto povo, enquanto etnia. A obra é baseada na sobreposição de retratos de pessoas fotografadas pela artista em diversas localidades do Maranhão, que são colocados em paridade com fotografias de lideranças indígenas, evidenciando a presença constante de fenótipos indígenas em centros urbanos e rurais.
A trama etnocida reside em uma complexidade tamanha. Desde o confinamento forçado dos povos indígenas, que são apartados dos centros de poder e de tomadas de decisão, ora por incompatibilidade ambiental com suas cosmologias, ora por terem sido juridicamente cerceados pelo Estado. As implementações de ideias racistas e epistemicidas conduzidas por um projeto de embranquecimento da nação e que são aprovadas pela miscigenação implementada como estratégia política. Até a associação do corpo racializado, comumente designado como pardo, restrito a uma concepção birracial em que se pressupõe sempre a presença do branco, sequestrando um entendimento epistemológico afroindígena, por exemplo, quando as racialidades contêm muitas nuances insubmissas ao pensamento binário ou homogêneo.
Dessa forma, Paridade é retomada ancestral que se instaura como um pacto na prática artística de Gê Viana, ao fortalecer processos coletivos por meio do movimento de reivindicação de sua identidade afroindígena, viabilizando os povos e a cultura do território nominado como Maranhão. Gesto ritualizado em Retiro de caça, subsérie que integra Paridade e que, por meio da ficcionalização de lendas e segredos populares maranhenses, se torna um conjuro de proteção a milhares de mulheres indígenas e negras violadas sob a égide da narrativa de terem sido “pegas no laço”, romantizada pelo sistema patriarcal.
Também mecanismo de proteção e defesa, Sobreposição da história consiste na paramentação ritualística de mulheres negras e indígenas retratadas em ambientações de influência afrofuturista, como parte de fotoperfomances em composição com imagens históricas de pessoas negras em canaviais, em situações de escravização ou em condições de trabalho precário. A partir da semelhança visual entre a cana de açúcar e o cristal selenita, Gê cria uma relação histórica, que também se movimenta em diferentes temporalidades, entre dois dos principais contextos de escravização no Brasil – os canaviais e a mineração. As propriedades curativas do uso medicinal dos cristais em comunhão com os ritos de caracterização instaurados na preparação das fotografias, a confecção dos escudos, ferramentas e armas com elementos vegetais e minerais, conduzem a obra em um processo de regeneração das feridas decorrentes dos traumas coloniais. O trabalho, idealizado como instalação para a exposição no Museu da Pampulha, Belo Horizonte, decorrente da residência artística Bolsa Pampulha 2019, contempla as fotomontagens impressas em sacos de ráfia, os processos performáticos em vídeo e selenitas em grandes dimensões.
A visibilidade do corpo fluido no campo imagético da arte é escancarada em duas séries de colagens: Atualizações traumáticas de Debret (2020) e Sapatonas (desde 2018). A primeira traz releituras anticoloniais das aquarelas impressas em litogravura entre os anos 1834 e 1839, como parte do álbum Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de autoria do pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret. O conjunto iconográfico retrata o cotidiano de negros, indígenas e da corte portuguesa no Rio de Janeiro do início do século XIX e foi o responsável pelo repertório imagético que atribuímos ao período colonial, construindo consequentemente o imaginário e memória visual que embasam a constituição do país enquanto nação. Com a linguagem da colagem em seu alto rigor técnico e de simples execução, Gê Viana desmonta cirurgicamente um dos maiores ícones do discurso colonial e da não representação e realiza uma série de remakes das cenas, fazendo uso de ferramentas da ficção especulativa e alcançando a libertação desses corpos, seus momentos de alegria, descanso e conquistas.
De forma semelhante, em Sapatonas as colagens feitas para diferentes suportes reescrevem cenas e acontecimentos corriqueiros de casais lésbicos para sugerir outras narrativas possíveis, desconstruindo as vivências baseadas na dor comumente atribuídas às existências sapatões. Justapondo cenas românticas, onde inicialmente havia imagens de casais héteros, Gê manipula as histórias de amor criando registro e arquivo em confronto com as pautas patriarcais de controle das subjetividades regidas pela heteronormatividade e heterossexualidade compulsórias.
Tendo em vista que os campos de disputa simbólica são delineados por parâmetros coloniais, onde o patriarcado se faz presente na constituição do sujeito, as identidades que fogem do aprisionamento da normatividade, somado aos tensionamentos entre raça, classe e gênero, são encaradas como corpos passíveis de descarte e se veem incisivamente violentadas por inúmeras formas de aversões como misoginia, lesbofobia, sapatãofobia, transfobia, travestifobia, que nada mais são que mecanismos de medo empregados em nome de uma pretensa ordem e vigilância.
Sapatonas quebra o jogo perverso da invisibilidade ou dos espelhos turvos, nos quais as repetidas representações de sofrimento sequestram possibilidades de vida contrárias, ou melhor, a possibilidade de viver fora do espectro da dor não se reflete como uma opção viável. E é no embalo desse discurso que o corpo sapatão ganha a maldição, aos moldes do catolicismo, da infelicidade, mortes físicas e simbólicas, solidão. Entretanto, Gê nos ensina a construir rotas de fuga, acessando a inteligentibilidade ancestral do corpo, ao disseminar referências de vida, de cura e cuidado.
Gê Viana dispara certeiro, sem desvios. Parente de capelobo, ganha como herança sua rapidez, pois nosso tempo grita. Sua produção é dispositivo imprescindível para que histórias omitidas ou não contadas se tornem condutoras na reinvenção de epistemologias, em novas metodologias de reivindicação e nos esboços de cartografias inéditas, onde o desejo colonial não incida no afastamento de nossas ancestralidades fluidas, em nossas vivências pelas encruzilhadas.
Beatriz Lemos
Dia 5: Após conhecer as fotomontagens de Gê, conheça agora séries de colagem digital da artista. Na primeira série a seguir, Atualizações traumáticas de Debret (2020), ela faz releituras anticoloniais das aquarelas impressas em litogravura entre os anos 1834 e 1839, como parte do álbum Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de autoria do pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret. No conjunto, ela reinterpreta o discurso colonial idealizado da escravidão e remonta as cenas, libertando corpos negros e indígenas que foram explorados pelos europeus.
Na terceira série de trabalhos, Sapatonas (a partir de 2018), as colagens sugerem novas narrativas possíveis para corpos lésbicos que muitas vezes são estigmatizados com preconceito e sofrimento. Nos trabalhos, a perspectiva romântica imprime amor e liberdade aos casais homossexuais. Todas as colagens restituem vida e emancipação a corpos historicamente invisibilizados.
Veja as séries de colagens de Gê Viana:
- Gê Viana, “Homens cultivam plantas e cogumelos em sua moradia. Com o forte cheiro das plantas em torno passarinhos se aproximam tentando aproveitar do licor das flores”, da série “Atualizações traumáticas de Debret”, 2020, colagem digital
Dia 4: No vídeo exclusivo que Gê Viana preparou para a Ocupação, a artista apresenta um encontro com a experiência de cura herdada da família. A prática de fabricação de remédios caseiros faz parte da cultura ancestral indígena presente ainda dentro dos terreiros, segundo as memórias de sua avó sobre o povo Muypura do Rio Parnaíba, no Maranhão. Gê quer trazer histórias de dentro do território indígena, como o caso de São José de Ribamar que antes da colonização era São José dos Índios. Ela conversou com Sr Honório Carvalho, regente do Terreiro de Tambor de Mina Nossa Senhora de Sant’ana, que fala sobre a experiência dos ascendentes pajés nesses terreiros.
“É a história do Brasil, do Maranhão, dessa terra gamela” – Gê.
Edição do vídeo: Laryssa Machada
Assista o vídeo completo:
Dia 3: No terceiro dia de Ocupação, Gê divulga a entrevista dada ao curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio. Na conversa, eles discutem a revisão das práticas coloniais no Brasil através da arte, as possibilidades da arte de rua e do pixo e a cena artística na região Nordeste do país.
Leia a entrevista completa abaixo:
Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Gê Viana
1 – Fale um pouco da sua formação: ela se deu em São Luiz? Em uma Escola de Arte?
Minha formação acontece no ensino público no interior do Maranhão. Pouco depois minha mãe consegue emprego doméstico migrando para capital e aí tive a oportunidade de fazer formação técnica em Teatro, onde tive mais contato com História da arte, que já achava mais gostoso do que interpretar. Me formei na Universidade Federal do Maranhão – UFMA cursando Artes visuais.
2 – Como é a cena artística no Maranhão? Como é o circuito institucional? Quais as potências e as dificuldades deste contexto periférico?
O Maranhão é um grande assentamento, tem produções que vem de manifestações e festas como o bumba meu boi, quando mestres cantadores compõem toadas, outros criam objetos escultóricos das máscaras de cazumbá e bordados das roupas. As manifestações religiosas, os quilombos, as festas populares, as riquezas da nossa cultura geram muitos artistas emergentes na criação de narrativas, intercambiando linguagens diversas das artes visuais ao audiovisual, a dita arte contemporânea quanto nas manifestações e festas. Tenho observado que a nossa geração continua nesse legado de registrar o cotidiano do nosso povo pela necessidade de mostrar a beleza e denunciar. A gente tem se misturado e criado iniciativas independentes, como o Reocupa, o Chão, NUPPI que atuam no circuito, na falta de políticas públicas. Há ajuda de editais, mas os recursos são limitados e essa é a grande dificuldade. Pela natureza de nossa história, o conceito de periferia daqui carrega outras características – a periferia é zona rural, mas o centro também é. Para a gente talvez seja diferente, temos outras bases de conhecimento, dos indígenas, dos quilombos, dos terreiros, é preciso abrir os olhos sobre os discursos que caracteriza a gente como periferia. A potência vem dos nossos processos coletivos, porque a gente se alterna nas funções e fazemos as coisas organicamente, superando a falta das condições ideais, mas produzindo ações na cidade.
3 – Sua relação com a rua foi e é muito importante. Como você vê a relação entre o pixo e a performance? Como você enxerga a relação e o embate com o público?
A pixação foi o primeiro contato de arte que pude ter no meu bairro. As pessoas em sociedade compartilham ideias, interesses comuns e divergem. Eu vejo a pixação sempre fora desse corpo preso do comum. É da nossa natureza esse querer divergir. Quando eu saio para pixar já é colocada aí uma ação performática em conjunto, mas é tudo às escondidas. Não existe um protagonismo nos nossos corpos. A marca é deixada, isso que importa. A pixação por si só já tem uma carga subversiva. Quando Marcia e eu saímos para corpografar esses símbolos chamamos atenção para esse ambiente levantando questões políticas dentro de uma cartografia de cidade. São duas mulheres que põem seus corpos em risco na complexa dança de tags, assim como o pixador risca esse lugar de perfeição do espaço de apreciação. Eu acredito que quando performamos frente aos pixos colocamos a população comum à prova de uma tradução da linguagem. O indivíduo busca o agradável, a pixação majoritariamente vai de encontro a um ideal de bom gosto, de beleza e de admiração socialmente partilhada. Ela não desperta prazer, mas quando estamos nesse trânsito as pessoas começam a refletir sobre esses corpos pixador e performático.
4 – Sabendo-se da voltagem política da sua poética, quais as diferenças para você entre a circulação na rua e nas instituições de arte?
Não foi uma escolha, quando eu pensei em criar algo com a fotografia pensei; se não for a rua onde vou projetar meu trabalho? Sem contar que as dinâmicas de interação são outras, as instituições seguem regras e padrões que vem desde o início da história da arte grega ainda que muita coisa tenha sido mudada e atualizada. As instituições têm um ambiente importante pelo valor na preservação da nossa memória oral imagética e escrita. Porém na rua há um descontrole, não conseguimos dar conta das reações e questionamentos quando a população passa e aprecia os lambe-lambes. Hoje no Brasil quais são as pessoas que tem acesso constante a museus e galerias? eu quero que os indivíduos que estejam nos meus trabalhos possam circular e se ver, isso é lindo e entra noutra dinâmica social expositiva. Porém você não precisa deixar de por sua arte na rua porque recebeu o convite de uma galeria ou museu, a rua que me leva para esses lugares institucionais.
5 – A montagem é um instrumento importante nas suas series Sapatona e Paridade. Há uma sobreposição de corpos e tempos heterogêneos. Como é o processo de produção destas séries? A impressão é fundamental? Você tem uma produção artística ligada às redes sociais?
Tem muito sentimento nas duas series porque foi o despertar da minha identidade étnica e de gênero e isso se amplia num resgate histórico. Eu gosto do termo usado pela poeta indígena Márcia Wayna Kambeba quando ela trata das retomadas e cita “o caminho da volta” nas Paridades, é uma volta para histórias esquecidas não contadas. Eu desenho com imagens na fabricação de um tempo que acontece dos encontros. Se você me pedir mais de 20 imagens eu não vou ter, porque eu não saio de casa com uma câmera na mão e digo vou fotografar uma Paridade hoje. Há uma maturação das relações, só depois vem o retrato e a montagem final. Na série Sapatona eu faço um recorte a “fação” nas imagens de casais heterossexuais. Sentia medo de beijar minha namorada em lugares públicos pois já sofremos agressões e não tivemos como nos defender. Essas reações lesbofóbicas me fizeram pensar em cenas de felicidade e prazer. Sempre vejo reações de preconceito e racismo com esses corpos, então imprimir e colar são gestos que chegam para demarcar o nosso lugar indígena e sapatão nos espaços públicos. A internet ajuda na divulgação desses processos e numa mudança de percepção.
6 – Quantos corpos habitam um corpo? Vejo uma relação muito forte entre a afirmação de corpos estranhos à norma e a fabricação de imaginários históricos alternativos, ou seja, entre o presente e o passado, entre os corpos e as imagens. Isso faz sentido? Como você pensa isso?
Os corpos entrelaçam as memórias de cada indivíduo numa história de apagamento e morte. Nunca estivemos sozinhos. Os corpos pretos e indígenas que Debret congelou em suas litogravuras são atualizados em cenas de amor. Indígenas, negres, casais sapatão não são imagens estranhas. Essa visão é fruto da colonialidade, fomos educados a pensar assim. O trabalho ressalta esses corpos porque desejo que a população consiga transcender o pensamento racista, para que a gente tenha respeito. Eu busco trabalhar com a autoestima, tomando cuidado com as imagens do nosso povo.
7 – A revisão da iconografia brasileira do século XIX tem interessado a muitos artistas jovens. Especialmente no esforço de desconstrução simbólica do nosso passado/presente colonial e escravocrata. Debret hoje é quase tão “citado” quanto Oiticica. Qual a importância destas releituras e quais os limites desta revisitação?
A modificação das litogravuras é para atualizar algumas cenas corriqueira desse banco de dados da história, as que modifiquei foram poucas, as mais visitadas, elas carregam muita crueldade e sofrimento. Eu desejo para nós um presente feliz onde a população de maior vulnerabilidade possa ter o poder de falar, de se representar, de estar vivos. Há problemas nesse olhar estrangeiro que até hoje corre nos livros educativos. As atualizações traumáticas de Debret é para exaltar a auto estima do nosso povo. A educação sempre sustentou o entendimento da nossa história, se eu tenho ferramentas que posso remontar, remixar esses sofrimentos então eu o faço. A limitação está no desejo e na urgência.
8 – Como você imagina e deseja um futuro para sua obra?
Meus trabalhos tratam dos traumas da colonização. É provável que há três gerações passadas minha tataravó praticava fazeres cotidianos dos Anapurus Muypurá. Depois de tanto tempo isso ainda é presente quando tia Raimunda produz azeite de côco babaçu, quando minha avó isolava a cozinha para não desandar a feitura do sabão de côco. Ela afirma que sua bisavó era indígena, porém se ausenta dessa origem e isso é o reflexo da destruição de nossas tradições, da nossa cultura. Falo desses detalhes porque as obras que crio não se fecham na imagem final. É uma compreensão da vida. Eu desejo que minha arte chegue cada vez mais nas escolas públicas e privadas, para gerar reflexões em torno das políticas identitárias, sociais e de gênero do presente.
Dia 2: Um dos trabalhos de fotomontagem de Gê é a série Paridade, em que a artista coloca no mesmo plano fotografias de indígenas ancestrais com registros – feitos por ela – de corpos indíos contemporâneos. Nesse recorte imagético, ela aproxima o passado do presente e nos coloca para encarar as semelhanças, as origens e as raízes de nossa história.
“Numa perspectiva antropológica e artística, podemos pensar o que antecede o estado de ‘paridade’ como um exercício de alteridade, um encontro de reconhecimento com o ‘outro’. Diante desse outro, voltamos e nos tornamos díspares porque somos complexos!
Paridade é um trabalho de vida para colocar no mundo esses corpos remanescentes gerado pelo processo colonialista. É uma retomada ancestral, evocação que ultrapassa a ideia de igualdade e semelhança, reconhecer a oralidade com o ancião da família, estabelecer laços afetivos e revirar o que se perdeu durante o percurso familiar. Paridade vem para falar das diferenças e semelhança desse povo, dessa parte do Brasil”. (site de Gê Viana)
Dia 1: Gê Viana, artista de origem indígena nascida em Santa Luiza, Maranhão, tem como um dos objetivos de seu trabalho apresentar uma arte decolonial. Ao recortar, editar e manipular fotografias e pinturas históricas brasileiras, do século XVIII ao XX, Gê repensa o cotidiano das grandes metrópoles, guetos e povos tradicionais. Com essa releitura, ela cria uma identificação da população com os povos originários. Sua pesquisa busca destacar corpos marginalizados e invisibilizados por meio da “ideia de denúncia”. Segundo ela, seu trabalho passa pela pesquisa da “imagem precária” e os meios de apropriação das fotos históricas de fotojornalistas, já que na maioria dos seus trabalhos analisa o uso de outras camadas fotográficas.
Veja a entrevista completa de Gê Viana com a produtora Do Rio Filmes gravada este ano.