Luiz Camillo Osorio conversa com Randolpho Lamonier

A conversa entre Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, e Randolpho Lamonier, um dos quatro finalistas do Prêmio PIPA 2020, vai estar disponível no catálogo, previsto para ser lançado em dezembro. Segue abaixo a entrevista completa, em que Camillo o questiona sobre sua trajetória, além das maiores influências artísticas, escolhas estéticas e dimensões políticas de seu trabalho.

Luiz Camillo Osorio conversa com Randolpho Lamonier

1 – Como se deu sua formação como artista?

Minha formação rolou de um jeito meio enviesado, cheio de curvas. Venho de uma família de operários- majoritariamente trabalhadores da indústria, do comércio e da construção civil- e cresci na periferia de Contagem, cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na minha casa não tínhamos uma agenda cultural nem haviam aparelhos públicos de fomento e acesso à arte em nossa comunidade, então meu contato com a cultura foi muito restrito ao que chegava até mim pela TV, pelo cinema e pelo rádio. Apesar da monstruosidade que foi a programação televisiva brasileira nos anos 90, consegui apreender algumas referências que me influenciaram significativamente, como Castelo Rá-Tim-Bum da TV Cultura, o programa da Xuxa Verde, alguns filmes trash da Sessão da Tarde e boa parte da programação da MTV, em especial os programas dedicados a exibir videoclipes.

Aos 15 anos fiz um curso livre de artes visuais com Fernando Perdigão e Henrique Dias no Centro Cultural de Contagem. Aos 16 entrei para o Grupo Roda Viva, um laboratório de pesquisa em artes cênicas cujo professor e diretor foi Marcelo Veronez, hoje expoente da cena musical e teatral de Belo Horizonte. No Roda Viva desenvolvemos um corpo de trabalho à luz do Teatro Físico e criamos um espetáculo a partir de textos de alguns autores do Teatro do Absurdo como Samuel Beckett, Eugène Ionesco e Fernando Arrabal. Pouco tempo depois, paralelo ao Teatro Físico, comecei a trabalhar com teatro educativo e empresarial para companhias de Contagem e BH. Fazíamos peças sobre tudo: preservação ambiental, higiene bucal, palhaços alcóolatras, vermes e piolhos, sexo na adolescência, DSTs, folclore, bullying, depressão na terceira idade kk, era uma loucura. Nessa época comecei a experimentar com a fotografia criando cenas, intervenções no espaço e ações performáticas para a câmera com a galera do teatro. Considero este período seminal para as investigações nas quais eu iria me aprofundar anos depois na universidade. Aos 18 anos estudei no Teatro Universitário da UFMG, mas larguei o curso na metade. Logo na sequência tive uma curta passagem pelo Grupo Oficcina Multimédia, dirigido por Ione de Medeiros, cuja pesquisa cenográfica e visual me influenciaram fortemente. Ao longo dessa minha primeira formação tive vários empregos convencionais que eu ia mesclando com minha produção artística. Era meio absurdo: às vezes eu trabalhava de dia como cobrador de ônibus e ia me apresentar no teatro à noite. Ou, apresentava um espetáculo à tarde e na saída do teatro ia panfletar espetáculos de outros colegas. Era tudo muito na tora, e fazendo sem saber fazer, eu estava ali mesmo encontrando as minhas questões, improvisando com o absurdo e buscando potência na mais franca fragilidade. Foi um período muito feliz, intenso de descobertas, de conflitos de identidade, de incertezas e, sobretudo, cheio da presença vibrante de muito(a)s amig(a)s que assim como eu tinham se jogado de peito aberto no exercício de coragem que é viver de (e para a) arte. Aos 23 anos ingressei na Escola de Belas Artes da UFMG e me mudei para Belo Horizonte. Isso definiu um marco para o meu trabalho porque na universidade fiz outro(a)s grandes amigo(a)s que influenciaram e apoiaram o meu caminho e com o(a)s quais encontrei ressonância e uma noção mais clara de força coletiva. A partir daí passei a dedicar todo o meu tempo às artes visuais e enquanto estudava fui aos poucos participando da cena cultural de Belo Horizonte. Acredito que parte crucial da minha formação se deu lá atrás, em Contagem, misturando Nirvana com o Xou da Xuxa e Samuel Beckett com Patati Patatá. Tem uma atração pela improbabilidade que me acompanha desde sempre. Acho que eu gosto mesmo dessas equações complicadas, cagadas. Eu gosto muito de aprender no risco.

2 – Seu trabalho tem uma relação direta com a cidade, ou melhor, com as margens da cidade. Como foi se dando essa apropriação e esse diálogo? Como é a circulação entre esse público periférico, você tem esse retorno?

O retorno é muito imediato e direto já que o público periférico com o qual dialogo em meu trabalho é quase sempre a minha mãe, meu pai, meus amigos mais próximos e eu mesmo em primeira, segunda ou terceira pessoa – “ele” vem às vezes calado, às vezes barulhento: “Randolpho Super Estrela da Vitória”, “Randolpho Trocador”, “Randolpho Bixa retorna à escola pra se vingar e tocar o terror”. Não tem alteridade. É uma conversa muito emocional, sem taras antropológicas. Acho que eu converso pouco pela via da diferença, e mesmo quando vou por aí, costumo tomar logo um partido e o papo vira qualquer coisa falada de perto, num tom emocional ou em primeira pessoa.

Foi muito significativo para mim as poucas vezes que minha família pôde se deslocar da periferia para o Centro para visitar algumas das minhas exposições ou me assistir no teatro. Mas a difusão do meu trabalho entre as pessoas da cidade onde eu cresci, entre pessoas que eu não conheço, é praticamente nula. A situação da cultura em Contagem teve uma grande melhora entre a primeira e a segunda década dos anos 2000, mas hoje em dia já não tem quase nada acontecendo, não tem incentivo à cultura, não tem preservação do patrimônio histórico/cultural da Cidade. O Cine Teatro de Contagem, onde me apresentei pela primeira vez, está perto de ser demolido. E o bairro São Luiz, onde cresci, até hoje não tem praça.

3 – Não obstante lidar com as tensões urbanas e com o imaginário dos movimentos sociais, sua poética, por conta da costura, do bordado, da trama da linha no tecido, tem uma temporalidade mais dilatada e lenta. É como se seu trabalho tivesse um conteúdo estridente e uma forma mais silenciosa. Esse contraste é intencional?

No começo não era intencional, não pensei muito antes de começar a trabalhar com tecido. Essa relação com o pano e com a costura veio de família. Meu avô paterno foi alfaiate no interior de Minas, minha avó materna sempre costurou em casa e minha mãe foi costureira na indústria automotiva por mais de 20 anos, até se aposentar. Eu nunca tinha pensado em costurar, na verdade a costura me dava uma certa aversão, acho que por eu ter acompanhado desde criança o desgaste físico e emocional ao qual minha mãe se submeteu trabalhando numa linha de produção- foi um processo restritivo intelectual e emocionalmente, sem espaço para qualquer tipo de autonomia. Não me lembro exatamente quando comecei a lidar com a costura, mas isso surgiu aos poucos, primeiro como elementos de cenografia ou figurinos para as minhas fotos, e depois foram surgindo uns remendos, umas palavras bordadas. Logo eu quis usar a máquina de costura e minha mãe foi me ensinando o básico, a escolha da linha, o caminho que o fio percorre entre a bobina e a agulha, rebobinar o carretel, arrematar. E de repente ela estava envolvida. Começamos a costurar juntos e foi um processo importante pra gente; muitas vezes ela se assustava com os assuntos que os trabalhos iam apresentando, e achava graça de outros. Minha mãe ficou impressionada com o fato de que a gente podia costurar as linhas tortas, eleger o avesso do pano, evidenciar a rasura, o remendo, a mancha, o retalho, a sobra. Não tinha um jeito certo e nem um jeito errado, a costura não seria inspecionada, revisada, e nem tinha que atender a nenhuma função, que não ao nosso próprio desejo. Durante muito tempo fiz a rota Belo Horizonte – Betim levando os tecidos que eu precisava costurar na máquina da minha mãe. O caminho pela BR 381 é cheio de paisagens que eu amo – a Cidade Industrial de Contagem, os viadutos podres entre o bairro Amazonas e o Carrefour e as montanhas do entorno sendo fatiadas como um bolo, todos os dias. Nessas idas e vindas os temas surgiram de uma maneira muito espontânea, eu não costumo seguir nenhum tipo de critério em relação às questões com as quais vou trabalhar, mas naquele início de contato com a costura o meu principal assunto foi sem dúvida a minha relação com Contagem, uma espécie de medição do tamanho do meu corpo em relação a essa cidade. Fui encontrando aos poucos a minha maneira própria de costurar. Saquei logo que eu precisava que essa costura fosse pessoal, passional, precisava que ela fosse instrumento de afirmação de identidade e de individualidade. Mas precisava também que ela fosse porosa, sensível ao seu contexto, que estivesse disponível para conversar com o seu tempo. Pensando agora na forma como a costura se apropriou da minha vida e do vocabulário da minha obra, sinto que estou em alguma medida vingando a história da minha mãe – e talvez a minha própria, por antecipação.

Em 2016 comecei uma série de bordados sobre tapetes chamada “Crônicas de Retalho”. Acho que ali entendi definitivamente que eu tinha muito a tratar com a costura. Aos poucos passei a tematizar os meus dilemas e fui misturando os assuntos tal como eles se apresentam na minha vida – urgentes, absurdos, pedindo tudo de mim. Hoje esse contraste na relação entre técnica e linguagem, mídia e conteúdo já não é casual. Às vezes é deliberado exercício de linguagem, às vezes é puro deboche, mas sempre faz algum sentido pra mim.

4 – Percebo em sua poética um jogo constante entre a palavra e a visualidade dela; entre o efeito político e o afeto lírico. Acho que quanto mais tensionada essa relação, menos explicitado o efeito, mais potente é o trabalho. Prefiro a “Profecia” que a “Promessa”; gosto mais do “Som ao redor” do que de “Bacurau”. Como você vê isso?

Gosto de jogar com as oposições e polaridades da palavra, arriscar equilíbrios improváveis, alimentar estranhamentos. Sempre tive dificuldade pra escrever, pra construir uma linha lógica ou pra narrar eventos lineares, causais, através da escrita. Minha concentração é ruim e minha atenção é super difusa, então a escrita não foi algo que esteve sempre presente na minha prática de trabalho. Mas houve algum momento, talvez no primeiro ano da faculdade, em que comecei a coletar pequenos textos no fundo dos cadernos, atrás das minhas pinturas, um monte de coisas fragmentadas que sozinhas não faziam muito sentido nem para mim mesmo, mas que ganhavam outra forma e outra força quando apresentadas em relação a algo. Assim entendi que eu me comunico melhor organizando fragmentos, construindo o léxico com uma porção de informações aparentemente assimétricas, incongruentes, muitas vezes quase nonsense. Ter assimilado e incorporado um método de pesquisa que a princípio tentava suprir uma deficiência, acabou se tornando uma estratégia e logo em seguida, linguagem. Quando uma palavra surge no meu trabalho estou interessado em tudo que ela tem para dar:  sentido, forma, ritmo, sonoridade. Às vezes até o bagaço da palavra pode interessar a um trabalho: sua decomposição quando diluída no jogo imagem x sentido, sua antítese quando tensionada em seu contexto até o limite do seu próprio sentido, sua corrupção quando despossuída de sua razão semiótica em função de um outro gesto puramente formalista, composicional ou estético. A palavra é muito poderosa. Ela pode muitas vezes sozinha, na forma de um título ou de uma legenda, mudar completamente a leitura de um trabalho, como uma trilha sonora pode carregar nas costas o sentido inteiro de uma cena. Há muito tempo a palavra vem ganhando protagonismo em meu trabalho e isso exige de mim cada vez mais atenção. É quase um paradoxo, uma equação delicada onde busco potencializar a força discursiva das mensagens que estou transmitindo, ao mesmo tempo em que espero que elas estejam abertas a outras possibilidades e a outros níveis de interpretação. Quando faço um trabalho espero sempre que ele seja maior que eu –  quero dizer, espero que ele consiga receber através do contato e da relação com o público tudo o que não tenho para dar. Fico feliz quando um trabalho toma autonomia e vai para além das minhas fronteiras, quando me escapa e me diminui diante dele.

5 – A dimensão fabulatória e alegórica entra em sua obra como uma espécie de ficção política, misturando o delírio e a luta. Quais artistas você toma como aliados?

Esta questão é muito importante para mim agora. Penso que nunca foi tão fundamental um exercício ativo de imaginação política, um exercício da nossa capacidade de fabular e de mirar outros caminhos possíveis- ou impossíveis. A realidade está esmagando a gente com a retórica da falta de saída, com um niilismo que nos imobiliza e nos desarticula mesmo diante das piores atrocidades. O neoliberalismo com sua agenda de extermínio quer matar a gente de dentro pra fora, quer destruir os nossos desejos e as nossas subjetividades, por isso a cultura e a arte no Brasil estão sendo combatidas com tanta violência. Nesse cenário de terror, eu encontro coragem e disposição para a vida e para o trabalho nas pessoas queridas que me acompanham. São muitas e não dá pra citar todas aqui, infelizmente, mas há um grupo de companheiro(a)s que seguem comigo desde os primeiros trabalhos da época da faculdade, amigo(a)s que me ensinam e me fortalecem na troca e na convivência –  e também em um diálogo direto entre os nossas linguagens e nossas narrativas: Victor Galvão, Rosa Maria Unda Souki, Dayane Tropicaos, Sara Mosli, Sara Não Tem Nome, Lúcio Honorato, Dani Maura, Desali , Marta Neves, Julia Baumfeld, Paola Rodrigues, Pedro Saldanha, Bruno Rios, César Machado, Malu D’ângelo, Cristina Madeira, Hugo Honorato, Jonas Filho, Daniela Pedrosa, Ian Gavião, Daniel Pinho, Julia Rebouças, Raphael Fonseca, Patrícia Azevedo, Brígida Campbell, Bruno Vilela, Gui Cunha – e Violeta Parra.

6 – Seu trabalho tem circulado recentemente por instituições internacionais. Como tem sido essa recepção?

Vem acontecendo aos poucos. Desde a época da faculdade eu já vinha participando de festivais internacionais de fotografia, cinema e videoarte, sobretudo na Europa, mas foi no ano passado que essa circulação se intensificou um pouco mais. Participei pela primeira vez de quatro exposições coletivas nos Estados Unidos, e em Setembro vim para a França onde apresentei um trabalho na mostra “Jeune Création Internationale” na 15º Bienal de Lyon. Agora, morando em Paris, estou tendo acesso a um circuito que antes me parecia muito distante e o retorno tem sido positivo. No momento estou trabalhando para exposições agendadas para esse ano e para o ano que vem, se a crise do covid-19 permitir.

7 – Como você imagina e deseja um futuro para sua obra?

Sinceramente, não sonho futuro nenhum para a minha obra; espero que ela continue imprevisível até o fim.



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