Salva, igreja! Fé da noiva!
Já conhece as expressões mais famosas de Maxwell Alexandre, um dos quatro finalistas do PIPA 2020? Quer conhecer mais trabalhos do artista carioca? E tem curiosidade em saber quais são seus futuros projetos?
Bem-vindo à Ocupação dos Finalistas 2020! A cada semana, um dos quatro artistas abre a porta de seu atelier para o público virtual do Prêmio PIPA, com vídeos, fotos e textos exclusivamente elaborados para a Ocupação. Na semana passada, Randolpho Lamonier compartilhou conosco como está a participação na residência artística da Cité Internationale des Arts, em Paris, entre outras novidades sobre seu trabalho. Agora, até o dia 31 de outubro, Maxwell Alexandre ocupa o site e as redes sociais do Prêmio com conteúdo original. A cada dia, um novo material será disponibilizado. Fique de olho e nos acompanhe também nas plataformas Instagram, Twitter e Facebook.
A ideia de criarmos uma mostra online surgiu por conta deste período em que estaria em cartaz no Paço Imperial a exposição dos finalistas do Prêmio PIPA 2020. De 19 de outubro a 13 de novembro, nossas plataformas vão estar recheadas de conteúdos realizados pelos artistas. Não temos o objetivo de substituir a exposição que foi adiada por conta da pandemia, com previsão para acontecer em 2021, mas criar um encontro possível entre finalistas do PIPA 2020 e o público virtual ainda este ano.
Dia 6: No dia 1º de maio deste ano, Maxwell lançou seu quarto dízimo para a Igreja do Reino da Arte, o álbum “Anjo Maxwell”. Esse foi o primeiro trabalho musical solo do artista, que ele considera um dízimo “à noiva e à altíssima arte”. No álbum, o artista utiliza referências do rap e do pop, gêneros musicais que aparecem como estética e representação em outros trabalhos.
A Noiva – Igreja do Reino da arte já tem quatro templos na Rocinha. Ela reúne signos tanto do universo da arte como da religião e permite que artistas que não estão incluídos no circuito tradicional possam expor trabalhos. A Igreja organiza peregrinações, cultos, retiros e possui profeta e fieis. Os artistas, com suas obras, oferecem dízimos à noiva. Um dos objetivos de Eduardo de Barros, Raoni Azevedo e Maxwell Alexandre, os fundadores da Igreja, é questionar os poderes do cristianismo que está articulado com a política atual.
Dia 5: No quinto dia de Ocupação, Maxwell divulga o texto crítico inédito sobre sua carreira artística, escrito por Hélio Menezes. “Desvio para o pardo negro” foi produzido exclusivamente para o catálogo do PIPA de 2020, que ainda não foi lançado. No texto, o autor pontua algumas das maiores referências culturais e estéticas percebidas nos trabalhos de Maxwell, como o rap, o pop, a cultura preta carioca e internacional. Menezes também ressalta como Maxwell realça o “protagonismo de sujeitos que foram tratados de modo secundário por tempo longo demais para ser perdoado”, uma transformação de objetos para sujeitos humanizados.
Veja o texto inédito e completo abaixo:
Maxwell Alexandre: desvio para o pardo negro
Viver pouco como um rei ou muito como um zé?
Essa eu ainda não sei responder
O porco com a lei e eu seguindo na fé
De que ele nunca vai me prender
Nunca vou me submeter
Nunca vão me deter
Éramos as cinzas e agora somos o fogo
E não há nada que eu não possa fazer
A vontade de potência, a consciência e recusa da posição socialmente esperada de subjugação à polícia (“pig”, como nas letras de rap afro-americano) e às leis pretensamente definidoras do certo; a alternância de registro da voz entre eu (“ainda não sei”) e nós (“agora somos o fogo”), tornando indivíduo e coletivo lugares intercambiáveis de enunciação; a fé como elemento de linguagem e de salvação; a reversão do tido por vencido em combustível renovado da própria ignição: os versos de Quadros (2016), do rapper BK, ecoam de modo poético e pungente uma concatenação densa de questões que vêm informando a prática de Maxwell Alexandre nos anos recentes, servindo de boa pista ao universo desse artista prolífico, inquieto, original.
Nascido no Rio de Janeiro, MW, como assina, vem trasladando e incorporando (no sentido mesmo de dar corpo) às suas composições uma articulação absolutamente singular de elementos biográficos e de autoficção, mesclando referências da vivência na Rocinha, do rap (são vários os trânsitos entre a produção do artista e a cena do rap contemporâneo), do pop e cultura preta, com dados da complexa, violenta e profusa paisagem sócio-estético-racial de uma cidade rachada, maravilhosa e excludente, em ponto constantemente prenunciativo de ebulição.
Em vídeos, performances, objetos, peregrinações, fotografias e pinturas, a prática de Maxwell Alexandre se desenvolve num método deliberado de reflexividade com seu entorno. O artista retira do olho da rua, da qualidade do descarte, todo tipo de material conversível em tema e superfície de criação. Desse modo, lonas de piscina, esquadrias em desuso, portas desgastadas, papel para embalar, pedaços reaproveitados de produtos, entre coisas e restos considerados desnobres, são tomados como meios diletos para suas composições. Essa dimensão peripatética, de um pensamento e prática engendrados nas e pelas andanças, atravessa toda sua produção. Das primeiras pinturas abstratas, realizadas em graxa a partir de manobras de patins sobre tela; passando pelas pinturas e objetos da série Patrimônio, cobertos por pedaços de plástico, cordas e correntes e guardados em espaços públicos, onde são deixados à própria sorte; as peregrinações em forma de cortejo artístico-religioso, promovidas pela Igreja do Reino da Arte, fundada por artistas cariocas, entre eles Maxwell Alexandre; e sobretudo em pinturas figurativas de grande escala, linguagem pela qual o artista vem se tornando mais enérgica e internacionalmente conhecido.
Trata-se de obras que, em igual medida, vão decalcar a mesma vida comezinha das ruas, cheias de referências familiares e comunitárias, realçando o protagonismo de sujeitos que foram tratados de modo secundário por tempo longo demais para ser perdoado – na vida social mais amplamente, e no elitista e branquíssimo mundo restrito das artes, como sinaliza o conjunto de trabalhos desse artista vivenciado e atento às desigualdades que corroem nosso tecido social.
Na fronteira da indiscernibilidade entre suporte e conteúdo narrativo, as obras de MW bebem assim de valores e signos que regem a vida das encruzas, na favela, na urbe; retira das posturas marrentas, do porte cariocamente altaneiro, matéria-prima para a criação de poderosos mosaicos de referências visuais bastante diversas, arroladas contudo por um campo semântico afim. À maneira de colagens, mas pintados a óleo e graxa, em suas composições figuram monumentos, retratos de personalidades negras, como Elza Soares e Beyoncé, cotejados a figuras anônimas em poses de orgulho e autoestima; brinquedos de criança, carros, jóias e fuzis dispostos entre logos comerciais – signos, por certo, de status e desejo, significantes a seu turno da abismal desigualdade de classes no acesso a bens e consumo. Personagens dos álbuns da própria família, oriundos de propagandas, videoclipes e pinturas, alheias ou do próprio artista, não raro reaparecem alocados em contextos especulados, descritos em músicas ou inspirados por outras fontes, quando não hauridos diretamente da carne do real.
O artista, assim, se faz também uma espécie de cartógrafo, mapeando uma nova configuração na qual os moradores da favela, da juventude preta e periférica do Rio, tão romântica e/ou dramaticamente retratados numa certa tradição da pintura e fotografia brasileiras, marcada pela hipersexualização e reencenações de subalternidade, saem da condição de objetos do olhar adventício para o de sujeitos ativos. Autores da própria representação – de si, dos seus e de seu território de pertencimento. Em todo caso, à exceção de elementos pontuais, os personagens de Maxwell Alexandre são sempre e inequivocamente negros, com roupas e símbolos de imediato reconhecimento aos olhos que vivem no tempo presente. Ostentando cabelos descoloridos como os do autor, são todos eles, quem sabe, extensões transfiguradas do próprio artista, traduções aloiradas de uma estética suburbana, jovem, preta e sarcasticamente altiva.
É este o caso de Éramos as cinzas e agora somos o fogo (2017-2018), pintura de escala mural que, inspirada na estrofe que faz acima as vezes de epígrafe, reúne a imponência do manto de apresentação de Bispo do Rosário à beca de universitários negros diplomados, desenhos de Jean Michel-Basquiat, viaturas capotadas, Nina Simone e James Brown com cenas de pura autonomia e triunfo afrodiaspórico. O fundo de padrões ondulados, decalcados de lonas de piscina e presente em outras obras de sua lavra, é bom exemplo do exercício de autocitação reincidente em seus trabalhos, uma reiteração que resulta num corpus orgânico e engendra um léxico próprio, uma rubrica. Tal como o ato, prenhe de potencial formal e político, de pintar sujeitos negros em cores puras, não matizadas, diretamente sobre o papel pardo – suporte que dá título à série (Pardo é papel) da qual esta imagem faz parte.
O pardo aqui é duplamente apropriado pelo artista: primeiro como cor, na exploração formal do fosco amarelado que perpassa e se faz ubíquo a um conjunto vasto de sua produção – exemplo maior é o desvio para o pardo, à Cildo Meirelles, de envelopamento de todo um espaço expositivo na forma de uma instalação que recobria paredes, teto, pisos, portas e objetos do mesmo papel (na exposição O Batismo de Maxwell Alexandre, 2018). E logo também como signo, um desvio político para o negro, em referência à imprecisão do termo ‘pardo’ que, no Brasil, tem servido ideologicamente à desmobilização e fragmentação das identidades negro-descendentes, alimentando um discurso de falsa igualdade pretensamente lastreada no “encontro” (tão colonialmente desencontrado!) de raças e cores.
Integrante da mostra Histórias Afro-Atlânticas (2018, com curadoria nossa, Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Lilia Schwarcz e Tomás Toledo), a obra ocupou um lugar-chave no argumento geral da exposição – e também na carreira do jovem artista que despontava. Localizada à entrada da sala expositiva no MASP, a obra de MW dava as boas-vindas aos visitantes à medida em que lhes prenunciava o tom de reversão de estereótipos raciais na representação pictórica e na representatividade autoral, mote simultaneamente animador da prática de Maxwell e do conceito que edificava a exposição. Os entraves ao empréstimo dessa obra à individual do artista, realizada no ano seguinte no Museu de Arte do Rio, resultou numa pintura nova, substituta mas com mesmo nome, composta pelos elementos da anterior e alguns novos, como o significativo acréscimo do sufixo -diss ao título (em referência a disrespect, na língua vernacular do rap).
Neste novo trabalho, agora em formato tríptico, foram adicionados elementos densamente alegóricos, como o prédio em chamas do antigo Museu Nacional contrastado ao bloco inteiro de concreto e vidro do MASP; um retrato de Marielle Franco, identificável não pelas feições de seu rosto, borrado por pinceladas enérgicas, como o de todos os personagens de MW, mas por sua pose, seu jeito de corpo; bem como cenas do “batismo” do artista – um proposta de performance coletiva, realizada no espaço público e em forma de rito, marcando a passagem de MW ao mercado de arte, à ocasião de sua primeira individual numa galeria.
A semelhança entre o vocabulário religioso e elementos de sua obra (onde abundam termos como “peregrinação”, “igreja”, “batismo” e “fé”) não é mera coincidência. Essa conversão de elementos evangélicos em motes de sua produção responde, antes, a uma movida que toma de empréstimo a linguagem e ritos próprios ao pentecostalismo, segmento cristão de grande penetração nas comunidades da Rocinha e no seio familiar do artista, em franca expansão no mercado religioso de fiéis (e eleitores) no Brasil.
Maxwell Alexandre faz parte de uma geração “insatisfeita com o tamanho do mundo”, para retomar o título de um de seus trabalhos (por sua vez derivado de um verso de Baco Exu do Blues). Recusando-se a viver como um zé, o artista tem trazido sopro novo à cena da arte contemporânea, reintroduzindo questões candentes do uso da cor (sobretudo o amarelo), de raça, classe e suas inflexões no gênero do retrato; sobre quem pode entrar (e de que o modo o faz) nos espaços de prestígio, incidindo igualmente numa recusa ao modelo “cubo branco” de montagem – seus trabalhos são quase sempre pendurados, como elementos da arquitetura no espaço expositivo, deixando à vista o remendo, as imperfeições da avesso, sem chassi ou moldura. O artista faz questão de escancarar, trazendo para o primeiro plano o que é tido por sem valor, inacabado, ruinoso. “O lixo vai falar, e numa boa”, como prenunciou Lélia Gonzáles, ainda em 1984. Ou, como profetiza hoje BK, na música que abre esse texto: “De um quadro grave faço quadro de arte / Rimando a vida somos a voz da cidade”.
Hélio Menezes
Dia 4: Quer saber o que Maxwell Alexandre tem produzido este ano? E quais são as próximas exposições e residências que o carioca vai participar?
Veja o vídeo abaixo e saiba todas as novidades do artista!
Dia 3: Um dos trabalhos mais conhecidos de Maxwell Alexandre é a série “Pardo é papel”, que o artista começou a desenvolver em 2017. Nesse conjunto de pinturas, Maxwell Alexandre realiza um ato político e conceitual ressignicando a cor parda. “Pardo” é não apenas o nome do papel que ele usa para pintar retratos de sua infância na Rocinha, como também o termo – por vezes pejorativo – referente à cor de pele negra, que oculta a negritude. Segundo Marcelo Campos, curador da individual “Pardo é papel”, exibida em 2019 no Museu de Arte do Rio, “Maxwell estava diante de um ato político: pintar corpos negros sobre o papel em cujo nome, ‘pardo’, também se caracterizava o distintivo racializado. Com isso, os estigmas são assumidos e revertidos. A cor da pele negra, confundida com a cor do papel, retorna como condição de resistência, como reação: ‘pardo é papel’. Congregam-se, assim, arte e cultura, forma e subjetividade, em devolução aos conceitos e preconceitos”.
“Maxwell Alexandre se dedica a pensar o retrato. (…) As relações configuradas por MW nas cenas das pinturas se adensam, justamente, no jogo entre reconhecimento midiático, cenas comuns na TV, no Youtube, nos memes, no Facebook e no Instagram, e outras cenas, do cotidiano da Rocinha, das práticas de subversão dos valores capitalistas e do excesso de signos do dinheiro, a ostentação. Lembremos que o capitalismo configura um lugar para o excedente, o lucro. Contudo, em uma camada mais cool, desinteressada, blasée, essas marcas do excesso caminham em suave discrição como prerrogativa da inventada elegância, da indiferença, a nonchalance. Nas pinturas de Maxwell Alexandre, o excesso, o luxo, a festa se dão a ver com sublinhada carga de exibição, tudo está sob holofotes ou à luz do sol, das limusines às lajes. Maxwell Alexandre pensa a arte global”, Marcelo Campos.
Veja abaixo imagens de Pardo é papel (“Pardo é Papel”, 2019-2020, Museu de Arte do Rio)
Dia 2: Após a divulgação dos finalistas do PIPA 2020, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio conversou com os quatro artistas sobre o caminho profissional, os desafios e as escolhas do mundo da arte. A conversa com Maxwell vai estar disponível no catálogo de 2020, previsto para ser lançado em novembro. Segue abaixo a entrevista completa, em que Camillo o questiona sobre a formação acadêmica em design, a infância e juventude na Rocinha, e a agora internacional carreira do artista.
Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Maxwell Alexandre
1 – Fale um pouco da sua formação. Você fez Design na PUC-Rio, fale como foi o caminho para se tornar artista?
Quando pequeno eu escutava os adultos me chamarem de artista, porque meu desenho já era bastante desenvolvido. Eu era viciado em videogame e animes, e conseguia mimetizar com uma destreza considerável meus personagens preferidos. Na escola faziam filas para verem eu desenhar e ganhar algum rabisco. E eu vim de berço evangélico, onde dentro da igreja tem essa cultura muito forte da profecia, do “escolhido de Deus”. Isso era algo que minha mãe martelava em minha cabeça, sempre repetindo que Deus havia me dado o dom de desenhar.
A ideia de estudar, crescer, trabalhar, casar e formar família, parecia comum demais para mim naquela época. Eu queria ter uma vida de aventura, daí aos 14 anos de idade eu comecei a andar de Patins Street, que é uma modalidade de patinação que ressignifica o espaço urbano através de manobras. O que mais me influenciou a ir nessa direção foi um personagem de videogame, um porco espinho preto que tinha um patins futurista, Shadow o nome dele. Eu era muito fã e queria ser esse personagem.
O Patins Street se tornou minha bandeira por 12 anos, e foi a partir desta cultura que eu pude sair da favela e viajar para competir e me juntar a outros grupos sociais. Eu passei a me dedicar tanto a esta modalidade que já não desenhava diariamente como na infância, embora meu desenho tivesse se transformado em ferramenta de serviço para fazer marcas de roupas de patins, organizar campeonatos, fazer troféus… Comecei a ter contato muito forte com vídeo e fotografia também, para me promover enquanto atleta, na internet, e tudo isso daria substância ao meu trabalho em artes mais tarde. Inclusive, meu interesse na academia se deu na medida em que entendi que não existia uma indústria forte de Patins Street, por ser um esporte impopular. Foi a partir disso que eu decidi estudar design, em 2011, logo após deixar o exército, e fui procurar pelo curso na PUC-Rio. Minha intenção era me profissionalizar e voltar com conhecimento para ajudar a construir a indústria da cultura que eu tanto amava. Quando ingressei no curso, vi que não era apenas sobre desenho industrial, mas sobre projeto, antropologia, história, filosofia, etc. Isso me surpreendeu muito, além de ter disciplinas que eu já tinha familiaridade, como cinema, fotografia e serigrafia. O que eu não esperava mesmo era uma disciplina de plástica que fazia parte do currículo obrigatório do curso, e foi no terceiro período que eu fiz essa matéria com o pintor Eduardo Berliner. Esse encontro e essa disciplina mudaram minha vida. Foi meu primeiro contato com arte contemporânea e eu nunca tinha me sentido tão em casa. Eu já estava bastante satisfeito com a possibilidade de trabalhar como designer no futuro, mas foi na arte que encontrei domicílio certo, por ser um campo que melhor comportava a fragmentação de toda minha prática, minha bagunça, meus improvisos e minha multidisciplinariedade.
2 – Muito se fala dos conflitos e dos problemas da Rocinha, que são reais, mas toda uma energia criativa, que também é real, fica invisível. Como se o enfrentamento de uma não passasse também pela descoberta da outra. Fale desse contexto onde você nasceu, cresceu e segue vivendo.
Pois é. Eu sempre fico pensando em como que eu cheguei até aqui, porque quando eu olho para minha infância, vindo de onde eu venho, ser artista plástico não era uma opção. Então eu penso nas barreiras que eu tive que transpor para estar onde estou. E eu arrisco pensar sobre isso pelo conceito da predestinação. Aquilo que eu falei na pergunta anterior sobre o “escolhido de Deus” ou a teoria da prosperidade para o evangélico, de um caminho que foi traçado para você seguir. Porque a arte contemporânea não é um valor aqui na comunidade, não faz parte dos códigos daqui e ninguém aqui tá interessado se eu sou artista, ninguém liga pro meu trabalho. Se eu chamar um cria daqui para ir em alguma exposição num museu ele vai dar risada da minha cara, porque não faz parte do mundo dele. Ainda mais se for de pintura abstrata, não tem tempo para essas coisas no tempo da favela. O interesse aqui é pragmático, eles teriam que saber o valor de uma obra minha para ser fisgado. E eu venho desse lugar, então pensa o quão louco foi ingressar na faculdade e perceber que lá artistas eram reverenciados… Enquanto Jesus, que é a referência máxima na comunidade, era negado. Quando mapeei essa inversão de valores eu entendi que ser artista era lugar de prestígio, de passe livre na alta classe, mas para navegar na favela eu ainda precisava guardar o evangelho que me ensinou. Consciente dessa inversão de valores, eu fui manipulando os códigos dos dois mundos e flexibilizando minha postura de acordo com cada ambiente. Por exemplo: quando terminei a faculdade eu comecei a andar descalço pelo morro, numa tentativa de repatriar, porque durante o período acadêmico eu fiquei muito distante da favela, mentalmente falando. Neste período eu também costumava desenhar e escrever em canvas que eu espalhava pela laje da casa de minha mãe. Catar lixo para fazer trabalhos era uma prática diária também. Esse tipo de comportamento fragiliza a normalidade daqui, e podia ser perigoso caso alguém achasse que eu estava endemoniado. Eu podia ser taxado de louco, mas se achassem que eu estava com o diabo eu poderia ter problemas de verdade.
Essa dicotomia me faz pensar que tudo é fé, religião, igreja. Na universidade o acadêmico cheio de conhecimento e superioridade negava Jesus mas rendia para a figura do artista, e se emocionava perante uma obra de arte. Agora eu te pergunto, quem pode se emocionar diante de uma obra de arte? E eu te respondo, quem foi iniciado neste meio, quem aprendeu os códigos mínimos para se relacionar com um objeto artístico. A experiência do sublime a partir de uma obra de arte é aprendida. Quem entrega a experiência do sublime na favela é a Igreja Universal. Já foi numa sessão do descarrego às 19h da noite numa sexta feira? Já participou de uma vigília pentecostal na Assembleia de Deus? O que eu quero dizer com isso é que a arte institucionalizada tal como a conhecemos é elitista. Ela serve como ferramenta de distinção social mesmo entre os ricos, uma vez que todos já possuem bens materiais como iates, piscinas, helicópteros, o que determina o mais sofisticado nesta comparação, é o capital intelectual, é quem pode compreender Mark Rothko ou Duchamp.
A universidade foi uma Igreja que me trouxe novos dogmas e deuses, me fez deus de mim mesmo. Mas assim como a primeira fé cristã que precisei romper para acessar o novo, eu tive que me desligar da academia para florescer enquanto artista.
3 – Como surgiu a Igreja do Reino da Arte? Descreva suas atividades e seus “rituais”? Aproveito e pergunto: em um país que vem sendo marcado pelo recrudescimento religioso como você enxerga politicamente o papel desta Igreja da Arte?
A Noiva ou Igreja do Reino da Arte surgiu em 2017 a partir da reunião de mais dois artistas: Edu de Barros e Raoni Azevedo. Somos contemporâneos ali da faculdade, inclusive tivemos um coletivo juntos com mais outro integrante, o Gabriel Moraes. O coletivo se chamava Gregário, mas também era conhecido como Pato de Banheira. A nossa ideia em grupo era atuar como um escritório de design para fazer dinheiro, já visando investir em recursos para nossas experimentações em arte. Rapidamente o período de escritório se dissolveu enquanto nossa produção artística crescia, e muito por conta de uma ocupação que fizemos em 2015 em um edifício abandonado, o Gávea Tourist Hotel, que fica na Estrada das Canoas.
No final da graduação a gente já estava muito inclinado para o campo da arte e tentando buscar de várias maneiras algum tipo de inserção no circuito, mas sabíamos que precisávamos de alguém de dentro que legitimasse nossa produção. Mapeamos rápido que não era sobre ter um trabalho de qualidade apenas, mas sobre relações. Como não conhecíamos ninguém de dentro disposto a olhar para o que estávamos fazendo, criamos a Igreja, que seria em sua essência um lugar de encontro e comunhão dos artistas. A ideia era não depender dos agentes do circuito para movimentar a cena de arte, seja do crítico, mecenas, curador, colecionador ou galerista. No entanto, diferente do Gregário, a gente não queria criar um coletivo novo, mas um lugar que fosse marcado pela soma coletiva de ideias, pensamentos e liturgias, embora tudo isso pudesse ser usado individualmente pelos fiéis. Para além dessa característica, a Igreja é marcada principalmente pela ideia da arte como religião.
O objeto de arte dentro da Noiva não é a coisa mais importante, mas o seu processo de criação, que é o que vai gerar autoconhecimento no fiel, e autodivinação também. O objeto é apenas testemunho do processo, onde ancoramos nossa experiência. E no final, ele é oferecido para a entidade máxima que chamamos de Espírito Santo da Arte. Essa é a chave da arte na Noiva, ter o objeto artístico em condição de oferenda, porque vários novos fiéis que ainda não se sentem maduros para mostrar ou elaborar um trabalho, encontram espaço na Igreja quando entendem que não é sobre qualidade, que o objeto no culto não é como um objeto na galeria, passivo apenas de contemplação, crítica, etc. O objeto opera nos templos onde acontecem os rituais na condição de oferenda, oferta do artista, que produziu e entregou, ou seja, ofereceu. Trabalhamos na Noiva com ideias congruentes às que Rainer Maria Rilke pregou na carta a um jovem poeta, onde diz que há lugares em que as palavras de crítica não tocam, e que uma arte é boa quando nasceu por necessidade.
Outra coisa que fazemos por aqui é atuar na rua, porque dentro do circuito ouvimos muito sobre arte como “salvação do mundo”, ou mesmo a máxima de “arte para todos”. Porém o que temos na prática são artistas integrados produzindo dentro de seus ateliês e mandando seus trabalhos paras as bienais, feiras, galerias e museus. Mas quem frequenta esses espaços? Quem detém os códigos desse circuito para se relacionar com a arte dentro desses limites? Normalmente as igrejas são instituições que conseguem acessar o popular. Então quando a gente faz os cultos de Oferenda no centro do Rio em um dia de semana, nos deparamos com transeuntes que não estariam em contato com esse tipo de manifestação. Eles param, perguntam, em alguns casos oferecem algo também. A Oferenda é basicamente um culto onde é gerado no chão, um amontoado de objetos de arte em que os fiéis vão colocando um por cima do outro. Nesse ritual a escultura desce do pedestal, a pintura sai da parede e da moldura e vai para o chão também. Tanto o pedestal quanto a moldura são delimitações que separam o objeto sacro do mundo, é o que indica categoricamente que a obra de arte não é um objeto banal. Quando a arte aparece fora da galeria, amontoada no chão, nessas condições, a postura do público na rua é menos condicionada e mais irreverente ao se relacionar com aquilo. Não tem mão no queixo, mão para trás, braços cruzados… Eles apontam, falam o que não gostaram, colocam a mão no objeto, é muito mais direta e franca a reação. Isso nos interessa bastante.
E temos vários outros tipos de cultos: as Peregrinações que são caminhadas pela cidade carregando os trabalhos e fazendo paradas para pequenos rituais. O Pecadão é a festa da Noiva. Os Dízimos são entregas individuais, em que os artistas oferecem simbolicamente 10% de sua produção no altar. A Santa Ceia são entregas coletivas, onde a gente se reúne e cada um leva seu trabalho à mesa. Chamamos qualquer produção na Igreja de oração, e os espaços onde os cultos acontecem são chamados de templos, sejam eles nossas casas, ateliês e a própria rua. Ou seja, qualquer lugar onde acontece o culto.
4 – Você surgiu no circuito artístico com uma pintura vigorosa que já saltava para fora da parede. Era como se os corpos retratados precisassem circular e ganhar mundo. Como você vê esse movimento no interior da sua obra, culminando agora com o lançamento de um disco intitulado Anjo Maxwell?
Penso que transgressão é uma palavra precisa para determinar a minha postura dentro de minha prática. No dia primeiro de abril de 2019 eu me casei dentro da Igreja do Reino da Arte e eu nunca tinha namorado antes. Eu ainda não tinha formalizado um pedido de namoro a minha parceira e a gente já foi direto para o casamento, que foi nessa data que é considerada o dia da mentira. A partir desse gesto, a data ficou marcada para mim como um dia em que eu me jogo num lugar novo.
Um ano depois, no dia primeiro de abril de 2020, eu resolvi repetir esse processo de me atirar em uma outra área que não domino… Eu não entendo nada de música, e a minha relação com ela acabou se estreitando mais em 2017 a partir da série Pardo é Papel, quando eu comecei a separar os versos dos rappers Baco Exú do Blues, Bk’ e Djonga de seus álbuns que eu ouvia e que me inspiraram muito a construir o trabalho da série. Esses poetas estavam falando as mesmas coisas que eu estava tratando em minha pintura. E eu tive a chance de estreitar minha relação com cada um deles, podendo entrar no camarim, ver os bastidores dos shows, ir ao estúdio e prestigiar etapas da construção de suas músicas, desde a escrita, seleção dos beats até gravações, e isso me despertou algo.
Eu já havia gravado um álbum junto à Igreja do Reino da Arte. Intitulado Coral, foi o primeiro álbum de ateliê. O projeto foi todo gravado em meu ateliê aqui na Rocinha junto com outros membros da Noiva em apenas um dia. Essa era a premissa: criar tudo neste curto período de tempo, improvisando. O álbum está disponível no canal da Igreja no Youtube e Spotify. Essa foi minha experiência mais direta com música no sentido do fazer, e óbvio que a Igreja poderia me proporcionar isso. Muito difícil pensar em uma Igreja sem música, sem um coral.
Minha sensibilidade musical está sendo lapidada pouco a pouco com a convivência junto ao cosme sao Lucas, que é membro da Igreja também e um grande amigo, além de ser um de meus assistentes. Nós convivemos diariamente por conta do trabalho aqui no ateliê, e a mídia principal dele é a música. Ele tem uma relação muito forte com som. Foi a partir dele que eu fui percebendo que minha relação com esse tipo de arte é muito superficial, porque a música pra mim é mais pano “de fundo” das situações e não a coisa em si. Existem muitas sutilezas do som que eu não consigo ouvir ainda, sem contar minha dificuldade em me manter no ritmo. Eu estou aprendendo mais sobre isso nessa convivência com o cosme.
O álbum anjo Maxwell aconteceu dessa forma: Eu marquei a data de lançamento no dia primeiro de abril e a minha premissa era de fazer um projeto do zero. Mesmo podendo consultar o cosme, por ele estar do meu lado, eu desejei caminhar sozinho. Porque eu queria um resultado honesto da minha relação inicial com a música. Eu iniciei o processo visitando anotações antigas, já que essa é uma prática constante que carrego, a de escrever. Depois comecei a elaborar as letras, e fazer download de alguns beats livres na internet e editei no Final Cut mesmo, porque era um programa de edição de vídeo familiar para mim, considerando que trabalhei com filmes no passado. O álbum é meu 4˚ Dízimo pela Igreja do Reino da Arte. A parte mais intensa deste projeto aconteceu em duas semanas, e mesmo com todos os desafios eu fiquei completamente focado nesse período, porque na Igreja a gente tem esse compromisso de marcar a data e entregar. Isso é um dogma. A partir do momento que agendei para o dia primeiro de abril eu já não poderia mais voltar atrás. Se eu tivesse conseguido desenvolver apenas duas faixas, esse seria o lançamento.
A obra anjo Maxwell é um álbum para edificar fé de artista. Gosto desta conotação porque ela é precisa quando penso que o trabalho é marcado pelo início da quarentena, onde o isolamento social trouxe ansiedade e um futuro incerto para nós. São 10 faixas reunidas que o público pode acessar nas plataformas digitais. Eu quero fazer algumas unidades físicas também e colocá-las no mercado como múltiplos. Ainda não pensei na tiragem… Enfim, esse lugar da transgressão do qual eu tratei no início é ratificado com meu casamento e o álbum no sentido de me colocar neste tipo de situação desconfortável que venho descrevendo.
A pintura “Tão saudável quanto um carinho” da série Reprovados, que me lançou no circuito e no mercado da arte, também funcionou assim. Até então eu achava que não sabia pintar, mas quando o Carpintaria Para Todos, do edital da Carpintaria, espaço da galeria Fortes D’Aloia & Gabriel aqui no Rio, apareceu, eu estava trabalhando em pinturas pequenas e muito timidamente, e de repente tive que dar um salto de escala em minha produção, já que a minha ambição era reservar o maior espaço possível da galeria para mim. Foi a primeira vez que eu fiz uma pintura figurativa daquele tamanho, eu realmente estava lidando com algo fora de meu controle. Eu só sabia que precisava tomar um espaço grande na mostra e colocar uma pintura com aquele teor de acidez dentro da galeria. Eu lembro que na chamada aberta para esta exposição, diziam sobre não ter muitas regras, curadoria ou coisas do tipo, mas as medidas do portão de entrada eram mencionadas para que nenhum artista levasse uma obra muito grande a ponto de não conseguir entrar. Por isso eu segui trabalhando com papel, para não ter de me preocupar com as medidas do portão, uma vez que eu poderia dobrar meu trabalho e passar tranquilamente, e quando eu entrasse, era só abrir e exibir a obra. No primeiro momento isso gerou um susto nos organizadores da mostra, e o trabalho não foi aceito de primeira, porque ia tomar muito espaço e tinha mais de 300 artistas do lado de fora querendo entrar. Mas eu estava dentro das regras, dentro da galeria, a pintura já estava aberta no chão, e as pessoas começaram a rodear e perceber a potência daquilo. Naquela altura, eu já nem estava mais preocupado se eu ia poder instalar a obra ou não, as pessoas já me chamavam pelo nome, inclusive a dona e a diretora da galeria. Eu sabia que tinha criado um espaço garantido para além daquela mostra.
5 – Você fez uma exposição recente no Museu de Arte Contemporânea Africana no Marrocos. Como foi mostrar sua obra nesse contexto? Quais as surpresas? Que novas alianças foram mobilizadas a partir dos encontros surgidos ali?
Essa exposição é fruto de um convite da curadora Marie-Ann Yemsi, que conheceu meu trabalho em um jantar ainda em 2018 aqui no Rio. Depois nos encontramos novamente ano passado durante a Art Basel na Suíça, e ali falamos desse projeto pela primeira vez. Marie-Ann é a mesma curadora que me selecionou para fazer a mostra individual ano que vem, no Palais de Tokyo em Paris.
O meu trabalho já tem circulado bastante fora do Brasil, especialmente na Europa, mas há um simbolismo forte em poder levar minha prática através de uma mostra como essa para o continente africano. Ainda mais que a proposta era de executar parte da exposição no local. Para esta ocasião eu apresentei Pardo é Papel: primeiro contato, que aborda 3 momentos da moda, sendo eles: o close, ou aquilo que eu chamo de posições contemporâneas de poder; a beleza, que eu tratei pela perspectiva da descoloração global; e o desfile, com uma obra vertical de quase 5 metros, representando uma passarela, que foi instalada na escada da instituição, conectando o primeiro com o segundo andar.
Grande parte desse show foi construído aqui em meu estúdio na Rocinha, junto de minha equipe. A parte final do trabalho que executei no local me trouxe experiências desafiadoras, porque eu estava em um momento estranho e confuso de meu relacionamento conjugal e do nada eu me vi sozinho em outro continente. Eu morei em um resort, em uma casa enorme. Assim que cheguei, eu resolvi entrar numa dieta rigorosa, podendo fazer apenas uma refeição por dia. Cheguei a ficar dois dias sem me alimentar. Adotei uma rotina de exercícios também, porque no resort tinha estrada para correr e uma quadra de tênis onde eu costumava andar de skate. Além disso eu gastava 15 minutos para ir de casa ao museu de bicicleta, e voltava de madrugada pedalando em uma estrada deserta, completamente escura, ouvindo um zumbido alto e abstrato que ficava oscilando durante todo o percurso. Depois descobri que o barulho tratava-se de uma oração coletiva da cidade. Fazia muito frio. Acho que esse trajeto, nessas condições, pode ter me colocado em um estado de fragilidade. Eu realmente não sei, e estou aqui pensando enquanto respondo. Penso que a distância de casa, meu relacionamento conjugal instável, a solidão, o frio, o jejum, o contexto africano, a casa grande, as orações em voz alta e o caminho escuro… O somatório disso tudo teve impacto em minha mente. Mas essa experiência que eu diria ser de tribulação serviu para ratificar a força que eu construí ao longo dos anos no sentido de não deixar que as coisas externas comprometam o meu trabalho. Então mesmo passando por esse momento, eu consegui fazer mais de 40 pinturas em pequenos, e diversos, tipos de formatos.
A minha pintura costuma ter a colaboração dos meus assistentes, que são pessoas de confiança, então desde o desenho até a tinta no suporte são elaboradas e discutidas com minha equipe. Por mais que o museu tenha me oferecido assistentes eu preferi trabalhar sozinho já que não se tratava de minha própria equipe ali comigo. Mas eu não abri mão de um produtor que me disponibilizaram, e que foi essencial para resolver questões locais, técnicas e de material. Mas o fazer mesmo foi executado somente por mim, desde o desenho até a tomada de decisão das narrativas e a pesquisa de personagens, conceito e por aí vai. Acho que foi um momento poderoso para eu poder voltar a trabalhar sozinho, que é algo que eu gosto bastante. Por mais que eu tenha uma equipe e tenha os assistentes, eu gosto muito da prática monástica, de ermitão mesmo, de chegar no atelier e fazer minha oração individual de cada dia.
Normalmente os desenhos das obras são executados pelo cosme sao Lucas, porque ele tem uma melhor noção de espaço do que eu. Ele é mais exímio e menos ansioso para o desenho. Eu já não desenhava havia muito tempo, mas na ocasião tive que fazer, e foi bom ver que meu desenho ainda tá no punho. Por ser ansioso eu crio distorções no traço, e acabo não sendo tão fiel à figura. É um desenho mais esquemático que dá um aspecto fresco para minha pintura.
Sobre novas alianças eu me relacionei mais com o Daniel Otero Torres, que é um artista colombiano e que fez um trabalho incrível. Eu gostei tanto de sua instalação que eu queria ter sido o autor… O trabalho ficava ao lado de um de meus espaços no museu, estabelecendo assim um diálogo direto com minha obra. Gostei de conhecer pessoalmente a diretora do museu também, a Janine. Eu senti uma energia boa nela, apesar de um primeiro contato meio estranho e tímido de ambos os lados, pois a relação até ali era apenas via email, e tivemos algumas burocracias que ficaram esquisitas, então acho que rolou um certo tipo de estranhamento que se estendeu até o final, embora a energia e vontade de se entregar um pro outro, sorrir sem desconfiança e fronteiras tenha sido genuína também.
Uma outra relação que aconteceu ali e que já existia um pouco antes foi com a Frances Reynolds, que foi me visitar. A Frances já é uma parceira e tem dado um grande suporte forte para o meu trabalho acontecer. A visita dela foi importante porque eu pude conhecer um incrível lugar no penúltimo dia da viagem. Saímos para comer algo à noite e eu tive que passar por uma praça muito grande e com muita gente. Foi fantástico ver aquela movimentação e perceber a força da cultura local em um lugar público onde as pessoas se reuniam como se fossem várias igrejas, com diversos tipos de rituais, jogos, brincadeiras e conversas. Esse foi o único dia em que saí na função de conhecer Marrakech mesmo, porque eu não sou muito de turistar. Sempre quando viajo eu deixo o trabalho me levar aos lugares, e gastei 13 dos 15 dias que eu tinha no Marrocos apenas trabalhando, nas delimitações do resort, de casa pro museu e do museu pra casa.
6 – Sua obra tem circulado pelo mundo recentemente. Como tem sido lidar com essa demanda tão vertiginosa e como você viu essa parada forçada pela pandemia? Alguma coisa mudou?
É uma doideira. Faz três anos que sou artista integrado, profissional, e eu não consegui respirar até agora. Neste ano a agenda estava realmente cheia. O ano começou já acabando em termos de projetos agendados. Eu tinha duas grandes exposições para fazer além dessa primeira, no Marrocos, que consegui executar antes da pandemia. Depois dela eu voltaria para o Rio e ficaria uns 15 dias para em seguida viajar a Paris e viver lá durante 3 meses, e produzir no local meu solo no Palais de Tokyo. Depois eu teria que voltar para o Brasil ficando mais dois meses para criar o meu outro show individual para a galeria David Zwirner de Londres. A pandemia tinha suspendido a princípio essa agenda. O Palais de Tokyo foi adiado para junho do ano que vem, mas mantivemos a David Zwirner. Inicialmente eu não sabia se ia acontecer mesmo ou não. Mas depois a situação foi melhorando na Europa e o diretor da galeria voltou a fazer contato para negociarmos a data ainda para este ano.
Assim que a pandemia se instaurou a minha equipe começou a trabalhar de casa. Então mais uma vez eu tive a oportunidade de ficar sozinho. E eu moro no mesmo prédio onde tenho um laboratório, galeria, acervo, escritório e ateliê, estou conectado com meu polo criativo o tempo inteiro, e isso me fez trabalhar com assiduidade mesmo na quarentena. A pandemia fez com que, pela primeira vez, desde quando passei a integrar o circuito, eu pudesse entrar no atelier sem uma demanda ou um “deadline”. Foi a primeira oportunidade que tive para fazer uma pintura mais pelo processo e menos por uma manifestação do pensamento. Foi um momento muito gostoso porque resolvi encarar a pintura a óleo. Eu já tinha feito pinturas assim no passado, mas era algo mais em uma condição de taquigrafia, de anotação, que eu acredito ser uma das características mais marcantes de minha pintura.
Esse período de trabalho solitário foi semelhante à minha residência no Marrocos, e foi um bom momento para operar sozinho e realizar todas as etapas do trabalho, desde subir uma tela na parede até fazer minha própria tinta, limpar os pincéis, e preparar o estúdio inteiro. Eu estava gostando desse ritual. Quando a David Zwirner voltou a manter contato comigo eu respondi com certa resistência, no sentido de adiar a exposição, porque eu queria continuar nesse processo íntimo da pintura a óleo que estava desenvolvendo. Eu já tinha até começado a criar um corpo de trabalho com uma densidade relevante e que falava justamente de distanciamento social. Eu vinha desenvolvendo narrativas da série Reprovados com esse tema – eu tô louco pra poder voltar nisso. E também não queria me comprometer em fazer uma exposição tão importante em um prazo curto com o limite que a pandemia trouxe, e não queria arriscar minha equipe também. Ao mesmo tempo, fiquei pensando na exposição de Londres no mesmo lugar do compromisso dos cultos na Noiva: marcou a data, então entrega. Mas o que mais me convenceu a ir adiante foi pensar que eu não teria outra chance de fazer um show num momento tão complicado do mundo. Fiquei seduzido com a ideia de fazer uma exposição que talvez ninguém pudesse ver, e tudo isso num espaço muito consagrado. Assim como Edu de Barros vinha fazendo na galeria Sé em São Paulo com sua exposição Cropped, que não pôde inaugurar por conta da Covid… Mesmo assim o artista seguiu morando e trabalhando na galeria até o final.
De certo modo a pandemia me deixou mais focado em trabalhar para uma exposição só, uma vez que o show do Palais de Tokyo foi adiado. Caso contrário eu estaria comprometido com duas exposições em dois lugares de alto prestígio. Isso ia me desgastar até a alma, pois eu não estava disposto a entregar qualquer coisa. Eu ainda estou no processo de solidificar o meu nome, e entendo que tenho que chegar nesses lugares com a potência máxima do meu trabalho. Enfim…para seguir com a produção com mais responsabilidade, eu chamei o cosme sao Lucas e o Renatinho, outro assistente, para morar aqui no prédio e cair pra dentro dessa empreitada comigo. Com a equipe reduzida começamos a trabalhar e essa é a próxima exposição que vou inaugurar em novembro deste ano na David Zwirner de Londres.
7 – Como você imagina e deseja um futuro para sua obra?
Espero que as pinturas em papel pardo perdure pelo menos o tempo de minha vida, para eu não precisar lidar com a frustração dos colecionadores que compraram essas obras, já que tão falando por aí que esse material não vai durar 10 anos. Fé da Noiva!
Dia 1: Maxwell Alexandre tem 30 anos, nasceu no Rio de Janeiro, vive e trabalha na favela da Rocinha, na Zona Sul da cidade. Criado em berço evangélico, o artista serviu o exército e foi patinador de street profissional durante 12 anos. Graduou-se em design por uma universidade católica, a PUC-Rio, no ano de 2016. Maxwell considera suas obras orações e seu ateliê um templo. Daí surgem muitas de suas referências e expressões, como “fé da noiva” e “Salva, Igreja”. O artista se apropria e faz uma releitura das práticas religiosas em suas manifestações artísticas.
Veja abaixo a entrevista completa dada à Do Rio este ano, feita para a edição de 2020 do Prêmio PIPA, em que Maxwell fala mais sobre essa relação entre a religião e a arte: