No novo texto crítico, Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, discute o “lugar da arte”. Analisando as possibilidades de experiência estética, Camillo argumenta que a perspectiva do espectador deve ser de deslocamento, de “sair de si em direção a um não saber”. Nesse deslocamento, portanto, há uma inclinação do indivíduo para um outro-saber que é apresentado e proposto pelo artista. Somente dessa forma podemos nos deparar com o “espanto diante de gestos desconcertantes dos artistas que introduzem o inesperado revelador”.
“Isso é arte? Sei lá.”
Comecemos esclarecendo o título. Ele não é cínico, tipo desqualificando a questão. Ele é sim ambíguo, propositalmente. Em uma primeira leitura, o sei lá significaria que não sabemos responder a esta pergunta quando ela nos é colocada de forma tão taxativa. Não há critérios objetivos ou qualidades formais a priori que garantam a segurança de nossos juízos estéticos. Realmente, nesse sentido, sei lá e não sei se equivalem, explicitando uma dificuldade intrínseca. Entretanto a ambiguidade do sei lá é que aponta também para um saber que se dá em outro lugar, fora do que convencionalmente denominamos de condições de possibilidade do conhecimento. Neste outro lugar, lá, eu sei. Ou melhor, não se trata de um eu que constitua o saber, mas de um saber que se faz em mim.
Em uma bela passagem do seu livro Tens de mudar de vida – abordando o poema de Rilke O torso arcaico de Apolo de onde saiu o título – o filósofo Peter Sloterdijk trata da relação entre a experiência poética (e religiosa) do ponto de vista do embaralhamento das noções de sujeito e objeto. Segundo ele, “a religiosidade é congruente com certa promiscuidade gramatical. Onde ela age, sujeitos e objetos trocam de lugar elasticamente.” Onde se lê religiosidade, lê-se também experiência estética. Ser afetado esteticamente é ser deslocado do seu lugar, ser convidado a sair de si e ir, pela experiência, em direção a um não-saber que abre caminho para a instalação de um outro-saber. Experiência estética aqui não é só o arrebatamento, é também o movimento interno de espanto diante de gestos desconcertantes dos artistas que introduzem o inesperado revelador. O desamparo que se produz diante do silêncio do Cage ou dos cavalos do Kounellis ou do Rauschenberg apagando um desenho do De kooning ou da sinfonia de papel do Guilherme Vaz ou do Cruzeiro do sul do Cildo; todos, ao meu ver, entram nessa categoria de um saber que se faz lá, no ato de ser surpreendido pela poesia, pelo silêncio, pelo desconcerto.
Isso tudo parece muito abstrato ou teórico, mas é o que se passa quando de fato somos afetados pelo acontecimento estético e, consequentemente, pela arte. Produz-se esse movimento para um saber lá onde eu tenho que me colocar para constituir um saber, que também é um sabor, possível. É uma forma de “mobilidade hermenêutica”. Saímos de si por um afeto que nos transporta para lá onde as coisas são de outro modo. Em vez de dizer são de outro modo, o melhor seria falar estão de outro modo. A ontologia aqui é mutante. Como diria a Lygia Clark é o “estado de arte sem arte”, algo que em determinada circunstância devém arte sem com isso deixar de ser outra coisa além da arte.
Trago dois exemplos pessoais para tentar elucidar estes enunciados. Um saído de uma polêmica produzida por um texto crítico meu no Jornal O Globo e outro a partir de uma vivência minha como crítico no ateliê de um artista-caçador no Acre. O que interessa aqui, diferentemente dos exemplos acima, é que há neles uma convergência radical da arte e da não-arte, uma recusa deliberada do princípio da não contradição, em que a coisa é e não é arte simultaneamente.
Comecemos pelo primeiro. Uma crítica escrita há uns 20 anos no Globo sobre uma exposição de Bispo do Rosário. O título desta crítica, dada por quem editou o texto no jornal, dizia algo um tanto provocativo – que a obra de Bispo não era arte. Não estava exatamente errado do ponto de vista do que estava escrito na crítica, mas não era, tampouco, toda a verdade do texto. Foi o suficiente para gerar uma enorme polêmica, que no calor dos ataques acabava por reduzir meu argumento à negação do valor artístico de Bispo; como se um crítico pudesse calar aquela potência. Nunca foi esse o ponto. Certamente, se escrevesse hoje, escreveria de outro modo, com mais atenção aos detalhes e à complexidade do tema. Mas o núcleo do texto segue valendo e creio que nos remete para esse saber lá propiciado pela experiência estética. Em certa medida, esse era o ponto, limitar o que vemos na obra de Bispo a ser arte, parece-me pouco.
Diante de obras de Artur Bispo do Rosário fazemos sempre a mesma pergunta: o que é isto? Não dá para dizer apenas que se trata de arte. É ao mesmo tempo mais e menos do que arte. É menos no sentido em que falta àqueles objetos uma articulação ao jogo de linguagem da arte, tal como nós a conhecemos desde o começo do século XIX. Esse pertencimento é algo específico à nossa noção de arte, é o que nos orienta, minimamente, quando dizemos que algo é arte. Não que coisas que não são feitas como arte, não possam tornar-se, sob certas condições, arte. Ou melhor, assumam um “estado de arte”. Mas para isso, há que se deslocar essas coisas para dentro de um campo de sentido artístico. Fora dele, ela segue vida própria.
No caso do Bispo, isso é mais complicado, pois suas peças são um universo aberto de sentido e existem como força bruta de invenção, como passaporte para o contato com o divino. O fazer artístico de Bispo nega o diálogo histórico. Exigir dele essa “consciência” é simplesmente cegar-se diante de uma evidência. A necessidade de inventar e revelar é mais forte do que a consciência e salta dos seus objetos. De fato, mais do que consciência de arte, há ali uma potência da natureza, um quê de não intencionalidade intensiva que é o núcleo da sua força estética, de sua capacidade de nos tirar do lugar, de nos colocar no meio do desconhecido, do maravilhoso, do inquietante, do estranho. Ou seja, da arte anterior ao artístico, à consciência.
É como se Bispo pegasse o coeficiente de arte do Duchamp – a soma entre o que o artista quis fazer e não conseguiu expressar com o que foi expresso sem querer – e rearticulasse tudo, fazendo da intenção, da expressão, do acaso e do querer uma coisa só, que fica queimando na nossa frente e nós não conseguimos agarrar e reconhecer, apenas admirar. Está ali o que interessa da experiência estética, desse sei lá que faz disso arte. O artista não sabe, mas a obra sabe e nos convence disso, diante dela, com ela, sabemos que há ali um sentido. Sentido esse que nos obriga a “interpretá-lo”, mas este trabalho fica sempre definitivamente inacabado, potencializando nosso espanto.
O segundo exemplo é mais prosaico. Passou-se quando fui ao Acre em um projeto da Funarte (na época do Ministro Gilberto Gil e seus magníficos Pontos de Cultura) e a ideia era fazer workshops e visitar artistas locais. Fiz essa viagem na companhia de dois queridos artistas que também faziam workshops – Cabelo e Paula Paes. Uma das minhas visitas deu-se em um ateliê meio fora de Rio Branco. O artista acreano – que esqueci o nome, nunca mais nos falamos, infelizmente – disse que depois da visita iria preparar um tatu para o almoço. Já gostei! Chegando lá, comecei a ver as esculturas dele. Eram figuras femininas pequenas feitas em ferro, em um pedestal, pré-Degas. Respirei fundo, perguntei-lhe como ele começara sua trajetória de artista, evitando ter que comentar diretamente. Daí vi num canto uma peça arrojada, com ferro, corda, tensão – parecia um Zé Resende em miniatura. Olhei melhor e vi no outro cômodo mais 3 dessas peças, diferentes, mas igualmente bacanas.
Surpreso, perguntei-lhe: por que você não mostra essas esculturas? ele riu, meio surpreso e respondeu. Isso não é escultura, são minhas armadilhas para caçar. Aí mudou o papo. Ficamos conversando sobre porque armadilhas não poderiam ser esculturas, como ele as fazia, as formas que elas adquiriam, a precisão, a complexidade, tudo ali poderia ser visto tanto pela função-armadilha como pela função-plástica. Não precisava separar tanto. Não sei se o convenci, ele queria aquelas dançarinas de ferro, eu queria as armadilhas.
Tanto as armadilhas, como as peças do Bispo do Rosário, guardadas, claro, as diferenças de força e intensidade, são arte na medida em que nos levam para uma forma de apreciação do aparecer das coisas que nos tira do modo pelo qual sabemos vê-las. Produzem formas de sentir e de pensar heterogêneas. Nos arrancam do que já sabemos para nos levar para um outro lugar do saber, onde ao mesmo tempo sabemos que o que vemos é auto-suficiente, impactante, mas também não sabemos como nomear o que estamos vendo. Neste jogo entre saber e não-saber, começamos a trabalhar o sentido, a falar sobre o que não sabemos em busca de outras formas de saber. Nos colocamos assim, na pista da expressão, do falar inaugural que precisa comunicar e que está sempre no risco da não comunicação.
A arte é assim, de fato, uma armadilha e uma loucura. Ela está pronta a nos agarrar inesperadamente e a nos tirar do saber. Isso é arte.