Após se sentir instigado com as colocações de Luiz Camillo Osorio no texto “Arte, não-arte e a partir da arte”, Guilherme Gutman – integrante do Comitê de Indicação em 2016 – escreveu um texto traçando uma reflexão e um diálogo com última coluna de Camillo. Se em seu texto o curador do Instituo PIPA discute a influência de novos campos de pensamento e saber no estatuto da arte, Gutman, psicanalista e professor do departamento de psicologia da PUC-Rio, articula aqui as aproximações entre arte e psicanálise – “Quando colocamos a psicanálise face a face com a arte, o que será que obtemos de um lado e de outro?”
A arte que não espera o Carnaval chegar
por Guilherme Gutman
Luiz Camillo Osorio, em algumas de suas mais recentes reflexões no texto Arte, Não-Arte e A Partir da Arte me convocou novamente ao debate. Suas duas últimas frases foram performativas ao convidar outros campos do pensamento e da ação — psicanálise, filosofia, antropologia e outros — a colocarem os pés na grande cena da arte contemporânea brasileira. Diz ele:
“Não é fácil trabalhar na fronteira entre saberes. Antes de discutirmos o que é arte, deveríamos aprofundar o debate em torno do que fazemos quando dizemos (e sentimos) que algo é arte e em que medida isso interfere nas nossas formas de pensar e agir” (todos os grifos em negrito são do autor).
A psicanálise, deve parecer óbvio, se interessa vivamente pelas “nossas formas de pensar e de agir”. Em sua vertente clínica, o pensamento freudiano propõe, de algum modo, um acontecimento que é a experiência de ser atravessado por uma análise.
Quando colocamos a psicanálise face a face com a arte, o que será que obtemos de um lado e de outro?
O que pode ser uma sessão de análise? O que será toda uma análise? Uma análise de uma vida toda pode ser interminável; ou durar tanto tempo quanto a própria vida ou o desejo durarem. Aproximar-se da psicanálise significa inclinar-se a dizer sim ao convite desta experiência, experiência de roteiro pouco claro; como 8 1/2 (“Oito e Meio”) de Fellini. Em uma análise nunca se sabe, de saída, para onde se vai, o que muda e o que não muda, o quanto se muda, em que ritmo se anda e até onde se chega. Nada me parece menos afeito aos tempos de hoje, do que uma posição ética desta natureza.
Este “até onde”, me lembrou o trabalho Em Profundidade (campos minados), Série Camboja, de Alice Miceli, onde ela “fotografa e examina campos minados em lugares como Camboja, Angola e Colombia, ainda infestados com minas terrestres. Seu objetivo é evidenciar visualmente no espaço as consequências da contaminação das minas e de outros resquícios explosivos de guerra nos mais variados contextos de regiões gravemente afetadas”. A propósito deste trabalho, disse Miceli:
“Em minha pesquisa sobre diferentes espaços pelo mundo tomados, até hoje, por contaminação causada por minas terrestres, que permanecem ativas e letais mesmo décadas depois que o conflito em sua origem tenha cessado –, o que me move são os limites que essas situações me obrigam a desafiar, fazendo-me cogitar que imagens poderiam ser passíveis de representar estes espaços negativos, tomados por algo que parece fugir à compreensão.” [Conversa com Alice Miceli, por Luiz Camillo Osorio]
A psicanálise e a arte se interessam, afinal, por até onde se pode ir, palmilhando campos minados e transitando pelos seus “espaços negativos”. Para obter as suas imagens, nas circunstancias descritas, Miceli experimenta e nos faz experimentar um entre, onde um passo à frente ou um passo atrás podem ser decisivos e jamais livres de algum risco.
É frutuosa a “expressão premonitória” de Lygia Clark: “trata-se de percebermos estados de arte sem arte” e, numa aproximação com a produção contemporânea, esses “espaços negativos” em campos minados, de Miceli, seriam um exemplo desta condição particular de um estado de arte sem arte. O reconhecimento de algum parentesco de família (1) é autorizado por esse ponto de contato que pode ser representado pelo desejo de olhar para a arte, já de fora dela. Ao pensar sobre a trajetória de Lygia Clark, Ferreira Gullar diz:
“Dando curso à participação do espectador na obra de arte — elemento fundamental da arte neoconcreta —, (ele) chega à conclusão de que pode ele ir além, de espectador-participante a autor da obra, bastando, por exemplo, cortar papel ou provocar em si mesmo sensações táteis ou gustativas. Assim atingimos, diz ela, o singular estado de arte sem arte. De fato, esse rumo tomado por alguns artistas resultou da destruição da linguagem estética e na entrega a experiências meramente sensoriais, anteriores portanto a toda e qualquer formulação”.
Será que Gullar entende que Clark também teria seguido “o rumo tomado” por outros artistas e, assim, promoveu a “destruição de sua linguagem estética”? (2) Não vejo problema algum em que se passe da arte a esta outra coisa “sem arte”, como formulou Lygia. Por essa razão, a questão de Gullar perde parte de sua importância, adquirindo relevância por outra trilha. Se em sua crítica ele pode ter considerado a mudança de rumo de Clark — que entra no mundo da clínica —como uma saída do mundo da arte, talvez ele tenha mirado no que viu, mas tenha revelado uma outra potencialidade no que não viu. Uma de nossas apostas — no sentido forte da palavra — é a de que a psicanálise, sobretudo em seus enroscos com a arte, ainda nos pode levar além; dentro de uma perspectiva clínica, a psicanálise também pode ser pensada a partir de algo obtido no trabalho com a arte.
Em 2018, tivemos uma experiência interessante no MAM-Rio, que nomeamos de “O Banquete dos Mendigos”. Neste “Banquete”, Auterives Maciel Jr e eu — ambos professores da PUC-Rio — iniciamos uma aula, que propositalmente tornou-se uma “quase aula”, “uma outra aula”, ou um “para além ou aquém de uma aula”, porque o que estava então em jogo, era uma certa ultrapassagem da aula pela entrada da música.
Na medida em que a aula progredia, propositalmente sob a forma de um diálogo platônico, os dois personagens em cena desenvolviam ideias com espontaneidade. Duas vozes, duas perspectivas em contraponto. E pouco a pouco, um a um, subiam os músicos no palco: Bernardo Ramalho, Cabelo, Peu, Siri e Sheik. Fomos guiados pela ideia de que em uma experiência de transmissão, como a que se passa em uma aula, o pensamento consciente, racional e arrumado, está longe de irradiar boa parte daquilo que a tal experiência tinha a oferecer. A música foi tomando a aula, penetrando-a e amalgamando-se ao discurso que circulava, promovendo uma outra experiência, na qual a música escorria pelo circuito das palavras, pela cadeia da língua; pelas frestas entre significantes.
Em 2019, bem em breve, um novo grupo proporá dois cursos em sequência: “Se som local tiver sido feito use-o em algo pro futuro”, na EAV – Parque Lage e “Ouvindo vozes”, no MAM-Rio; 4 encontros, aos sábados, para cada um dos cursos. Nestes cursos, as aulas serão atravessadas pela música ao vivo e por visualidades, em especial fotos e filmes.
O primeiro dos cursos recebeu seu nome de uma frase de Helio Oiticica, em uma de suas muitas especificações para a realização de cada uma das nove Cosmococas programa in progress, série realizada ao lado de Neville D’Almeida. Há nesta frase de Helio afinidades de seu pensamento à de uma “utilidade” para arte, como sugere Tania Bruguera (3).
Todos aqueles que leram a correspondência entre Helio e Lygia sabem da proximidade de ambos e da qualidade da troca entre eles. Arrisco aqui uma hipótese: ambos trabalharam com a arte, passando em certo momento de suas respectivas trajetórias, a cercar esse “fora da arte”.
A aproximação da arte e da psicanálise, se dá por esse vôo de “anjo torto”; vôo gauche, esse modo de saída da arte, por via da arte.
São assuntos da psicanálise e são assuntos da arte. Se a “autonomia da arte só interessa na medida em que é constantemente posta em risco”, se a arte busca “ser outra coisa além de arte”, é exatamente aí que deve incidir o trabalho; o novo trabalho de uma clínica da arte, ou mesmo o de uma outra clínica, a partir da arte.
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(1) Como Camillo em seu texto faz referência aos “jogos de linguagem”, me sinto autorizado à minha citação do pensamento de Wittgenstein. Entendamos aqui esta expressão, “parentesco de família” como fruto do deslizamento permanente da linguagem que permite que artistas e trabalhos tão diversos possam se articular.
(2) Em 2014, houve uma grande exposição de Lygia Clark no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), assim apresentada: “Com mais de 300 obras, além de um catálogo alentado e uma intensa programação paralela, a mostra Lygia Clark: o abandono da arte, 1948-1988 (MoMA) inaugurou no último mês de maio uma antológica exposição dedicada à obra de Lygia Clark. Com mais de 300 obras, além de um catálogo alentado e uma intensa programação paralela, a mostra Lygia Clark: o abandono da arte, 1948-1988.
São apresentados vários momentos-chave em seu percurso, como a passagem do estudo do movimento centrífugo das escadas para a construção geométrica e abstrata da forma; a intensa e rápida participação em movimentos como o Grupo Frente e o Movimento Neoconcreto; a descoberta da linha orgânica, em meados dos anos 1950, quando expande radicalmente a pintura para além do limite da moldura; o intenso diálogo com a arquitetura e o estudo do espaço (“o que eu quero é compor um espaço e não compor dentro dele”, dizia); o questionamento cada vez mais profundo do estatuto do objeto de arte, do artista e do espectador; até chegar ao que ela mesma define como “o estado de arte, sem arte”. (Maria Hirszman. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/07/15/relevancia-de-lygia-clark/ ). A exposição foi curada por Luis Pérez-Oramas e por Connie Butler, que se posicionaram em relação à leitura crítica de Gullar; eles deixaram claro “que não compartilham da ideia – segundo eles canonizada pela interpretação corrente e baseada na leitura crítica de Ferreira Gullar – de que haveria dois momentos estanques na produção de Lygia, um artístico e outro simplesmente terapêutico. Seria portanto um equívoco apresentar uma fratura, considerar sua trajetória como proveniente de duas pessoas estéticas distintas. “Não importa quão radicalmente distinto seu trabalho possa ser do fenômeno que usualmente chamamos (ou chamávamos) de arte, ele permanece parte da arte”, escreve o curador.
(3) “Arte Útil roughly translates into English as ‘useful art’ but it goes further suggesting art as a tool or device. Arte Útil draws on artistic thinking to imagine, create and implement tactics that change how we act in society.” Disponível em http://www.arte-util.org/about/colophon/
SOBRE O AUTOR
Guilherme Gutman é psicanalista, médico psiquiatra, professor do departamento de psicologia da PUC-Rio e da EAV – Parque Lage. Crítico e curador independente. Autor de inúmeros escritos, entre eles, do livro William James e Henry James: filosofia, literatura e vida.