Finalista do Prêmio PIPA em 2013, quando também arrematou o PIPA Voto Popular, Camila Soato transformou em ateliê um lugar inusitado durante o mês de abril: a Casa de Cultura da América Latina da Universidade de Brasília (CAL/UnB). O motivo era a edição inaugural do projeto “Grande Vidro”. Uma parceria dos Amigos da CAL com a Galeria Alfinete, a iniciativa busca aprofundar a experiência expositiva, programando debates e exibindo, a olho nu, o processo criativo de artistas selecionados. Aqui, Ana Avelar, curadora da mostra – intitulada, na linha irreverente que é típica de Camila, de “Virilha Suada” –, escreve sobre o trabalho da artista e o conceito de “fuleragem” que ele propõe.
“No Grande Vidro: a pintura das fuleirices”
Ana Avelar
Na Brasília contemporânea de Camila Soato, evidencia-se a convivência improvável dos signos da capital idealizada, como na citação aos azulejos de Athos Bulcão, com a vida como ela é dos bares das superquadras. A indicação dos percursos frequentes dos habitantes, entre o plano-piloto e os arredores, é sugerida pela placa indicativa de Planaltina, Goiás, e pelas traseiras de caminhões que seguem seu curso. Personagens são apresentadas em cenas descontraídas, às vezes atravessadas por uma erotização sem ornamentos; o movimento é conferido por pinceladas rápidas em torno delas, lembrando a visualidade eficiente das HQs. Os cenários podem ser apenas desenhos indicativos; há silêncios no espaço pictórico; listras verticais sugerem profundidade (e remetem à rigidez de algumas pinturas modernistas), a tinta escorre das formas que parecem se dissolver junto à história heroica da capital. Soato aposta que nós, espectadores, somos bons entendedores e não está interessada em entregar todas as pistas.
A elegância da cidade ideal – conferida por suas edificações modernas ordenadas em escala monumental – cai por terra. No lugar dela, a rebolada do dia a dia. Essas pinturas podem ser vistas como cenas de costumes pintadas à óleo, com um pé na tradição, e outro – o esquerdo – no grotesco como procedimento simbólico e formal. A reunião de supostos contrários como esses orienta a produção da artista.
Nesse sentido, o conceito de “fuleragem”– que, na linguagem popular, reúne significados variados, desde o comentário sobre uma sexualidade sacana até aspectos de uma produção mal acabada ou de mau gosto – é entendido por Soato como princípio de organização do trabalho. É inusitado como o termo congrega acepções de naturezas tão distintas; ao mesmo tempo, como diz respeito ao amálgama da cultura brasileira, podendo ser encaixado na família de seus semelhantes: a gambiarra, a malemolência e a ginga.
Se, por um lado, a fuleragem – ou fuleirice? – traz uma emancipação para a pintura de Soato, incluindo-se aí uma comicidade evidente, por outro, o processo de produção é bastante elaborado, tanto em termos conceituais como naquilo que diz respeito à fatura. Ao escrever sobre as etapas do trabalho, a artista explica como monta um banco de imagens coletadas. A partir desse banco, acessa diferentes situações do cotidiano, para então cruzar essas imagens, promovendo alterações de todos os tipos. Apenas, então, projeta-as sobre a tela que será pintada. A reunião desses elementos díspares gera resultados provocadores, embora acabem fazendo sentido dentro de uma poética que procura elaborar o contemporâneo e, simultaneamente, falar de outros tempos. Como pontua Giorgio Agamben, a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”.
Sobre a Autora
Ana Cândida de Avelar é crítica, curadora e professora de Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília (UnB). Tem realizado exposições no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC/USP, Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH) e Casa Niemeyer (Brasília). Em 2017, foi finalista do Prêmio Marcantonio Vilaça e membro do comitê de seleção do Programa Rumos Itaú Cultural.
O convite para a publicação de textos está aberto aos membros dos Comitês de Indicação, Conselhos e Júris de Premiação do Prêmio PIPA de todas edições. Vale ressaltar que o texto não necessita ser exclusivo. Para a publicação, basta enviar um email para premiopipa@premiopipa.com.