Em suas trajetórias, os artistas Guilherme Vaz e Cecil Taylor ampliaram as fronteiras no campo das artes visuais. Apropriando-se da linguagem sonora, o brasileiro e o norte-americano trouxeram para o campo da reflexão questões como a imaterialidade do som, e sua condição enquanto suporte artístico. Vaz faleceu nesta quinta-feira, 27 de abril, aos 70 anos. Deixa sua obra como legado – assim como Taylor, que também nos deixou no início do mês. Hoje, lembramos os dois com um texto crítico escrito por Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, por ocasião das exposições “Guilherme Vaz: uma fração do infinito”, no CCBB do Rio, e a de Cecil Taylor, no” Open Plan” do Whitney de Nova York. Artistas-músicos com diferentes formações, os dois carregavam consigo, nas palavras de Camillo, “o compromisso experimental, a artesania musical, a estratégia conceitual e a improvisação radical”.
A visualidade do som: Vaz e Taylor
O lugar da música no século XX é visceral. Ninguém entenderá o que se passou na cultura moderna e no seu impulso contra-cultural (não no sentido de rejeição, mas de transgressão) se não passar pelo universo musical – do atonalismo ao punk e à música eletrônica; passando, claro, pelo samba, pelo jazz e pelo rock. A revolução operada nas formas de ouvir e fazer música mudou a sensibilidade de toda uma época e isso só foi possível, creio eu, pela capacidade singular de juntar, sem nenhuma cerimonia, tradições populares e eruditas. Talvez a gastronomia e o cinema cheguem perto.
Mais recentemente, o campo das artes visuais (nem tão recentemente assim se pensarmos em Russolo, Satie, Schwitters, Smetak ou Cage) viu-se atravessado por uma série de intervenções sonoras – esculturas e instalações – fazendo uso da música, do ruído ou do som. Creio que essas interferências e suas distinções implicam uma discussão à parte – música e som não são necessariamente a mesma coisa, nem toda apropriação sonora nos deixa falar em música. Digo isso, sem querer purificar nada, apenas percebendo diferenças nas formas destas manifestações ocuparem o território da visualidade e se expandirem espacialmente. Entre parênteses, cabe destacar aqui a contribuição crítica e teórica de Seth Kim-Cohen em livros como In the blink of an ear, de 2009, defendendo a dimensão conceitual da apreensão sônica, as interferências extra-musicais, como constituintes da experiência alargada da música contemporânea.
O que me interessa aqui, diferentemente do que assinala Kim-Cohen, é perceber como o uso da potência sonora invadiu o campo ampliado da arte e fez atravessar nele uma materialidade sensível que havia sido esvaziada pela reviravolta conceitual. Não se trata de opor esses polos, da materialidade sônica e da arte conceitual, pelo contrário, mas de perceber sua interação e intensificação recíprocas. Duas exposições recentes me levaram a pensar e escrever sobre isso. Especialmente, tendo em vista o que nelas me foi revelador do que estou chamando de repotencialização do legado conceitual na arte contemporânea. Como a música, pela sua tonalidade afetiva originária, liberou o conceito de sua reclusão cerebral, entregando-lhe uma materialidade ao mesmo tempo invisível e corporal. Refiro-me à exposição de Guilherme Vaz no CCBB do Rio com curadoria de Franz Manata e a mais recente de Cecil Taylor, no Open Plan do Whitney de Nova York, com curadoria de Jay Sanders e Lawrence Kumpf.
São dois artistas/músicos com formações distintas, mas que carregam consigo o compromisso experimental, a artesania musical, a estratégia conceitual e a improvisação radical. O primeiro, discípulo da Universidade de Brasília (antes de 1968) e depois de Smetak na Bahia, deslocou a música para o pensamento plástico-visual e vice-versa. Parte de sua operação conceitual teve a ver com sua vontade de extrair de dentro do pathos musical uma estrutura originária de nosso sentir-pensar-inventar-estar no mundo – daí seu flerte constante com a antropologia. Já Cecil Taylor, representante máximo do jazz experimental, desconstruiu o piano para dar à corporeidade do gesto musical uma inteligência performativa e uma entonação melódica particular. Nos dois casos, improvisação e concepção caminham juntas.
Diante destas duas mostras nos deparamos também com a questão fundamental de como expor obras/poéticas musicais. Qual a materialidade e a visualidade cabíveis para se “ver-ouvir-pensar” a música? Ambas as exposições foram felizes nas suas estratégias expográficas. No caso do Guilherme Vaz, combinar material de arquivo, extratos de textos do artista, instrumentos musicais e etnográficos, uma seleção de gravações e de filmes, ajudaram a revelar o artista-plural, o pesquisador de mundos ancestrais que se deixam revelar por dentro do empobrecimento da sensibilidade moderna. Seu contato estreito com as artes visuais – foi criador junto com Frederico Morais, Cildo Meireles e Luiz Alphonsus da área experimental do MAM-Rio em 1969 – permitiu-lhe perceber que a visualidade (ou a sonoridade) não se mostra imediatamente aos sentidos, mas vem sempre mediatizada e transtornada pelas projeções conceituais de quem faz e de quem ouve-imagina-percebe.
A exposição de Charles Taylor, por sua vez, disseminou-se pelo espaço aberto e sem colunas do que é conhecido como o open plan do novo Whitney. A grande tela projetando imagens de performances do pianista reverbera pelo espaço. A expografia neste caso foi mais convencional, do ponto de vista de uma exposição de um músico. Há material fotográfico amplo sobre o músico em ação, estações com monitores mostrando entrevistas e várias performances do pianista, muitas capas de discos e posters de concertos, algumas partituras-desenhos deslumbrantes, sem falar na excelente ideia de colocar alguns sofás ao fim da sala, diante da janela escancarada para Manhattan, com vários áudios com músicas de Taylor. Entretanto, o mais importante desta exposição parece-me ser a convocação da própria dimensão musical e performativa para dentro do espaço expositivo com uma programação mais que significativa agendada ao longo das duas semanas de exposição. Entre as várias performances, cabe destacar o concerto de abertura com o próprio Cecil Taylor, acompanhado por Tony Oxley e pelo coreógrafo japonês, parceiro de outras épocas, Min Tanaka.
O que as duas exposições revelam (junto a inúmeras outras de arte sonora que temos visto nas últimas décadas) é o quanto o campo das artes visuais está sensorialmente tonificado pelo extra-visual e semanticamente atravessado pelo inespecífico (aquilo que escapa à especificidade do meio expressivo, mas que é constituinte de uma forma singular de ser arte daquilo que se apresenta). Falo aqui em artes visuais e não apenas em arte – apesar desta diferença não me interessar – pois a inserção no espaço museológico e as referências à história da arte acabam interferindo em nossa forma de ver e nomear as coisas. Ambas as exposições e os dois artistas em suas trajetórias particulares, apostam nesta dimensão ampliada do fazer artístico, combinando sentidos, referências, geografias e materialidades plurais.
Para terminar, passo a palavra aos dois artistas, pois ambos fazem frequente uso do texto, articulando neles fluência poética e contundência crítica. Especialmente no caso do artista brasileiro, cuja escrita ainda merece análise mais cuidadosa. No formulário preenchido e enviado ao MoMA quando da realização da exposição Information, em 1970, Guilherme Vaz escreve que sua obra ali apresentada “teria muitas camadas de sentido e que elas intercalariam o antes, o durante e o depois da exposição: palavras, fotos, toque, calor, caminhadas, barulhos de Manhattan, o museu etc (…)”. Ao fim, pede ao curador que “utilize os diagramas enviados e, qualquer dúvida, improvise sobre as prescrições”(1). Na mesma direção de uma experiência alargada da arte, escreve Cecil Taylor, em uma anotação presente na exposição, que a música, além de salvar a sua vida, o levou “à literatura, à dança, à arquitetura, às pessoas (…) se nos engajamos em uma arte começamos a perceber que não há uma única arte, quando nos misturamos a diferentes tipos de arte, nos alimentamos delas. Se formos agraciados pela fortuna, elas expandem nossa capacidade de conhecer.” É dessa expansão que as duas exposições falam. Há algo de mágico aí, mas isso já seria outra história…
SOBRE O AUTOR
Luiz Camillo Osorio é curador do Instituto PIPA, conselheiro e um dos idealizadores do Prêmio. É professor e atual diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Foi curador do MAM-Rio entre 2009 e 2015.