Buscando aprofundar e informar ainda mais a discussão sobre arte contemporânea brasileira, este ano decidimos pedir aos críticos de arte Comitê de Indicação e do Conselho do Prêmio PIPA 2018 que contribuam para o site com textos críticos (leia mais aqui). O primeiro texto crítico a ser publicado é “A bela, a fera, e o desejo do mundo”, de autoria da artista Leda Catunda. Um dos maiores nomes da chamada Geração 80, ela foi membro do Júri de Premiação 2017, além de ter participado do Comitê de Indicação desta edição do PIPA. No texto, originalmente concebido como uma introdução para a mostra “A Bela e a Fera”, exibida na Central Galeria em 2017 com obras de Bruno Dunley, Erika Verzutti, Luiz Roque, Sofia Borges e Pedro França, Leda investiga os conceitos de beleza e feiúra ontem e hoje.
A bela, a fera, e o desejo do mundo
Leda Catunda
O mar do Caribe é lindo, ninguém pode negar. Ainda que nunca se tenha ido até lá – e a imensa maioria de nós nunca foi e nem nunca irá – mesmo assim, dá para ver pelas fotos e vídeos. O azul, azulzinho… Ou melhor, as três faixas horizontais de cor, a areia branca, o azul esverdeado da água em contraste com o azul intenso do céu com sol, a figura dos coqueiros debruçados sobre o mar. A transparência da água parece se destacar como signo fundamental na composição geral. Na cena toda, a transparência parece sugerir a possibilidade de uma existência especialmente leve e suave, num mundo cálido, envolvente e acolhedor. Há uma sugestão de paraíso na terra, além da associação comum que relaciona o estado de felicidade ao contato direto com a natureza, gerada por uma sensação de pertencimento ao planeta, muito comum entre os surfistas. Dentre os motivos que contribuem para o enaltecimento da imagem do mar do Caribe como algo inegavelmente belo está o seu caráter irreal, se pensarmos do ponto de vista do modo como vive a maioria das pessoas. Desde meados do século XIX, populações acumulam-se nos grandes centros urbanos, vivendo em espaços exíguos, privadas de qualquer possibilidade de avistar o horizonte ou até mesmo de ver o céu, a não ser por estreitas brechas entre os edifícios. O contraste das realidades certamente favorece a associação positiva, reforçada pelo aspecto exótico daquela paisagem.
Interessa pensar em que momento e sob quais circunstâncias na existência, na infância ou juventude, o belo incide sobre nós, quando o enxergamos pela primeira vez, numa determinada experiência, e somos assim tocados pelo desejo. Uma vez capturados, nos tornamos eternamente reféns da visão que despertou o desejo. Esta passa a ocupar um lugar privilegiado na memória, impulsionando toda sorte de ações no intento de promover a reprodução da experiência. O que há no signo do belo que tão fortemente desperta o desejo, que nos coloca num leve estado de transe, uma espécie de hipnose, e permanece constantemente atraindo atenção? Para além da imagem do mar azul claro e transparente, aqui também poderiam estar pessoas, o rosto da pessoa amada, múltiplos elementos da natureza ou mesmo melodias. Assim como as imagens, sons podem alcançar um alto nível de encantamento. Ainda, outros incontáveis contextos, incluindo narrativas, estórias ou mesmo vagos estados espirituais podem ser geradores da experiência de beleza. Muitas vezes a complexidade do evento se efetiva pelo fato de estarmos geralmente absortos em funções cotidianas, desprevenidos do porvir, quando somos subitamente capturados pelo belo. O inesperado agrega à experiência um caráter de exaltação, na promoção de um instante glorificado, de um momento sublime com o poder de nos remover da mesmice do esforço diário, numa elevação vertiginosa para um estado especial, condição sui generis. Estado de consciência ampliada na noção clara de que de fato existem mais coisas para além da racionalidade, uma espécie de comprovação efetiva do mistério.
Os componentes necessários para a ignição do belo estão certamente dentro de cada pessoa, relacionados a seu histórico pessoal e cultural. Atualmente, o que é belo para uns não vale para outros, não sendo mais, de modo algum, um conceito-chave, como válido para os teóricos do século XVIII. Alguns signos mais potentes como a lua cheia ou o pôr-do-sol ainda podem servir como noção de beleza comum, no entanto qualquer tentativa mais séria de unificação do gosto tende a falhar. Muitas coisas interessantes se tornaram belas e muitas coisas belas se tornaram estranhas em sua pretensão de universalidade, como por exemplo: a pessoa bonita. A beleza padronizada pela mídia nas últimas décadas está desgastada e a classificação de belo hoje abandona a noção naif de modelo. Não há mais modelo a seguir, o contexto é o que importa. O contexto cultural e político nunca antes alcançou tanta importância e parece natural que assim o seja, uma vez que se considere a irreversibilidade do acesso às mais diferentes culturas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. A beleza agora é informada. O feio também, quase tudo que já foi considerado feio agora pode ser igualmente belo, dependendo do ângulo pelo qual se pretende enxergar.
O conceito de feio, assim como o de beleza, sofre atualmente violentas alterações dependendo do contexto, como por exemplo: a feiura da injustiça, à qual associamos a noção de maldade. O feio, muito mais do que uma imagem feiosa, parece estar ligado a sensações ruins, valores éticos e morais, podendo ser também o tedioso, o enjoativo, como uma forma de castigo visual de algo que nunca muda e se repete eternamente.
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Ser artista é concentrar energias e organizá-las em torno de uma intenção única, ligada à criação. Fazer escolhas para afinar essa intenção é o desafio básico do percurso, para assim definir o que se pretende realizar e como fazê-lo. Escolher é abandonar, deixar para trás o que não interessa e arriscar apostando numa visão particular e pessoal do mundo e da existência. Ainda que esta visão pareça uma verdade improvável, é necessário correr o risco de errar para poder acertar. É fundamental potencializar a poética, torná-la contundente, eficaz, ou seja, produzir arte com qualidade, entre tentativas, cálculos e elucubrações, estabelecimento de critérios e escolhas. Desta forma o artista organiza o desejo do mundo. Lidar com o desejo em geral – o próprio e o de todos – é lidar com o apetite do mundo, ânsia pulsante e inexorável por mudanças, transformação continuada para a obtenção de satisfação, deleite, sonho, prêmio, realização, redenção ou o que seja.
Numa suposta atribuição momentânea de poderes especiais ao artista, poderíamos considerar que ele possa, a um só tempo, enxergar dois mundos distintos. Lançando um olhar para o mundo real, como ele é, somando-o a outro, um segundo mundo imaginado e aperfeiçoado a sua maneira. O artista então se torna capaz de, através deste olhar duplicado, antecipar uma coleção própria de futuros possíveis, projetando imagens inéditas de seu universo próprio naquilo que produz. Futuros possíveis, em que desejos e realidades se misturam, beleza e feiura se confundem e se transformam, oscilando em favor de uma efetiva renovação do real.
SOBRE A AUTORA
Leda Catunda é artista visual, considerada um dos maiores talentos da chamada Geração 80, e acadêmica. Em 2017, participou do Júri de Premiação do Prêmio PIPA. Em 2018, foi membro do Comitê de Indicação do Prêmio.
O convite para a publicação de textos está aberto aos membros dos Comitês de Indicação, Conselhos e Júris de Premiação do Prêmio PIPA de todas edições. Vale ressaltar que o texto não necessita ser exclusivo. Para a publicação, basta enviar um email para premiopipa@premiopipa.com.