Eleonora Fabião é, definitivamente, uma artista ímpar. Amante das ruas (que, confessa na entrevista, leva consigo aonde quer que vá) e performer nata, sua poética nasce do encontro com outras pessoas e o desconhecido. Acostumada a desafiar convenções sociais, ela também inverte as expectativas de sua entrevista a Luiz Camillo Osorio, concedida via email e transcrita abaixo. Eleonora escreve ao crítico e curador do Instituto PIPA em um formato epistolar, ora interrompendo o fluxo das respostas narrando acontecimentos a sua volta, ora tomando para si a posição de entrevistadora. “O que você acha, Camillo?”, ela indaga.
Conversa com Eleonora Fabião, por Luiz Camillo Osorio
Eleonora, sua formação inicial como atriz deslocou-se para um mestrado em história social da cultura e depois convergiu para os estudos da performance na NYU onde você fez outro mestrado e o doutorado. Vejo seu trabalho hoje como professora, pesquisadora e artista agregando estas etapas e constituindo um tipo de atuação nesta fronteira da academia e do mundo da arte. Dois universos um tanto distintos, porém complementares. Via isso muito comigo quando estava na curadoria do MAM-Rio e na universidade, em que tinha que trocar a cada dia o tempo interno do meu estar no mundo, variando entre o tempo concentrado da universidade e o tempo disperso da função curatorial, onde se lida com tudo, especialmente no caso do MAM-Rio. Como você vê esta dinâmica? Como ela te compromete no engajamento cotidiano com sua poética, com seu trabalho de arte? Como carregar isso para academia e como incluir isso no Lattes? Queria te ouvir sobre essa nossa subjetividade partida.
Em primeiro lugar Camillo, muito obrigada por me convidar para essa conversa, por me enviar essas perguntas. Estou numa casinha em Fredrikstad na Noruega. Estou diante de uma janela, tudo nevado, escrevo daqui.
Te digo que experimento mais uma subjetividade associativa, multiplicativa até, do que uma subjetividade partida. Experimento a sala de aula como um espaço performativo e o trabalho pedagógico como um fazer artístico. Ano após ano fui entendendo (e praticando) a universidade como mais um espaço de criação, fui articulando “teoria” e “prática” como fazeres indissociáveis. Fato é que há um tipo de ação performativa que me interessa muito e só pode ser realizada na longa duração do semestre, em encontros semanais de mais de 3 horas com um mesmo grupo de pessoas – é arte de lugar específico, temporalidade específica e grupo específico. Você se lembra de uma carta da Clark para o Oiticica onde ela diz que trabalhando na Sorbonne havia finalmente encontrado condições para desenvolver as proposições? Ela explica que os encontros continuados permitiam tocar no que ela queria, acessar o que a interessava, distanciar-se do espetacular. É uma carta de 1974 onde ela descreve a Baba Antropofágica e a Cabeça Coletiva. Escuto e compreendo o que ela diz.
Na UFRJ leciono cursos teórico-práticos de 90 ou 60 horas na graduação em Direção Teatral e na pós-graduação em Artes da Cena. Entendo cada aula como a realização de uma ação e, ao longo do semestre, concebo e proponho programas performativos para os participantes. Aqui seria melhor escutar uma aluna, um aluno que trabalha comigo, e ver o que pensam, como percebem a sala de aula quando entendida como espaço de performação e o programa do curso como um programa performativo. A proposta é nos indagarmos permanentemente sobre aquele espaço e tempo. A proposta é investigar minuciosamente um conjunto de materiais selecionados e articula-los (textos, conceitos, arquivos de imagens, proposições psicofísicas); experimentar como conceitos produzem energia e corpo (e vice-versa); trabalhar pensamento, sensação e ação articuladamente; convidar os participantes a relacionarem-se por meio dos materiais estudados; valorizar a contribuição de cada um e o fazer em grupo, as singularidades dos corpos e o corpo coletivo. E fora da universidade não é muito diferente. Algumas vezes participo de festivais propondo a realização de ações conjugadas: trabalhos na rua + fala + workshop. Assim cheguei a ideia dos trípticos. O “Tripthyc Miami” aconteceu semana passada na Living Together Series (Museum of Art and Design, Miami Dade College).
Quanto ao Currículo Lattes, e incluo também a Plataforma Sucupira, são desafios para o campo das artes as categorizações que vem das ciências exatas. Por exemplo, artigos publicados nas revistas de maior destaque na área pontuam tanto quanto um livro – e sabemos o trabalho que é, na maior parte dos casos, compor um livro em nossa área. Categorizar performances cujos modos de produção e circulação não são tradicionais, que acontecem fora de circuitos mercadológicos e institucionais, também é desafiador. Assim como percebo, o importante é seguirmos debatendo e afinando critérios pois os programas de pós-graduação ganham incentivo de acordo com contagens feitas a partir dessas plataformas de dados. O campo de pesquisa em artes está crescendo com força e, como faço parte de muitas bancas de mestrado e doutorado, vejo a qualidade e quantidade de trabalhos em andamento. A contribuição de artistas-pesquisadores, seus modos específicos de reflexão e ação são importantíssimos para diversas comunidades. Apoiar e estimular o crescimento da pesquisa em artes tornou-se fundamental.
Mas, concluindo a resposta, trabalhar na universidade, numa universidade pública brasileira preciosa como a UFRJ, é uma forma de contribuição pedagógica, artística e política extremamente significativa para mim (muito mesmo) que vem possibilitando encontros, debates, trocas inter-geracionais, pesquisa continuada, além de ser uma fonte de renda que ampara meus processos por vezes pouco convencionais de criação e circulação artística.
Qual a genealogia por trás de sua poética, com a qual você se identificaria? Fico pensando, em termos de arte brasileira, nas “experiências” do Flavio de Carvalho ou nas deambulações poéticas do Artur Barrio, como “4 dias, 4 noites”, mas nelas o ato poético se dá mais pela diferença do que pela identidade com o povo da rua: não é por acaso que a “caminhada” do Flavio de Carvalho é na contramão da procissão e a deriva do Barrio é feita na suspensão da consciência, um sair de si absoluto, um devir-outro pelo desencontro. Como você se vê dentro desta genealogia?
Vou pensar um pouco em voz alta, ok? Vou comer pelas bordas para então me perguntar sobre a genealogia do trabalho. Pois. Quando digo “rua”, o que exatamente você visualiza? Não entendo a rua como um suporte para as ações que realizo, mas como um campo denso, ou ainda, um cosmos mesmo. A escala é humana mas a extensão é cósmica. Para mim a rua não é um lugar a ser ocupado, mas uma zona altamente carregada, um campo de forças múltiplas e muitas vezes conflitivas, a se mover com. Na rua move-se com a rua, move-se a rua e se é movido por ela. Nesse turbilhão, as matérias não são ocupantes inertes, são parte das correntezas sociopolíticas e histórico-afetivas que atravessam aquele espaço (trans-temporal) que elas mesmas (todas as matérias humanas e não-humanas) formam em suas metamorfoses contínuas. A questão é como estar a altura disso. É como meter-se no meio disso. Como meter-se já pelo meio porque um monte de coisas já estão acontecendo e continuarão a acontecer. A questão é o salto, como pular dentro e, então, aderir a quais matérias e resistir a quais outras (matérias objetivas e subjetivas). Se deixar fazer (receptiva) e fazer coisas acontecerem (agenciamentos). A estética é meu meio de entrada (e de saída). A ação poética é aquilo que suspende o conformado, abre as coisas, toca, estranha, deflagra relações raras, rearranja (revela as intra-ações co-constitutivas entre tudo e todos, entre tudo e todxs, entre txdxs). Que afetos e (de)composições uma ação performativa será capaz de deflagrar? Que afetos e (de)composições será capaz de bloquear? Porque todo o tempo, o tempo todo, há pertencimento e despertencimento, há consenso e dissenso, há consonância e dissonância. A performance, em geral, não quer fazer sentido ou deixar de fazer sentido; ela performa o sentido como um fazer, o fazer coletivo dos sentidos. Os modos de atritar e aderir do Flávio de Carvalho e do Barrio nessas peças que você mencionou estão informados por momentos históricos específicos – Flávio de Carvalho em 1931 (ano pós Revolução de 30, mesmo ano em que Artaud publica o primeiro manifesto do Teatro da Crueldade) e Artur Barrio em 1970 (ano da copa do México, “anos de chumbo” no Brasil de Emílio Garrastazu Médice, tempos do “milagre econômico”). Aprendo muito com os trabalhos deles, presto muita atenção nos modos como as “experiências” e as “situações” transitavam e seguem transitando hoje quando evocamos elas, nas dobras poéticas e políticas que fizeram e fazem, nos seus modos específicos de estranhar e (de)compor; no corpo que a contramão do Flávio de Carvalho faz e que o estado alterado de consciência do Barrio desfaz, nos sistemas de relação-rua, sensação-rua e pensamento-rua que deflagram. Mas buscando aqui pensar contigo sobre genealogia, ou desejando genealogia da maneira mais despretensiosa do mundo, quem me vem em mente, porque admiro o trabalho imensamente, é William Pope.L. Conheço o William e aprendo muito com ele. O jeito como ele está disponível para um certo tipo de contato com o mundo (vide os rastejamentos e as permanências nas calçadas), o jeito dele de tocar de corpo inteiro o corpo social. Seus instrumentos são a bizarria, a estranheza, a susceptibilidade. A aventura. Há ali uma espécie de minimalismo de raiz (rindo aqui com essa ideia). Ele faz experimentalismo com ternura de base. Há humor, causticidade e extrema lucidez. Inteligência de tambor. Ele é poeta da ação. Você viu a bandeira dele? Um trabalho de 2015 chamado “Trinket”?
Quais outras referências você citaria como influência/diálogo para as suas Ações?
Aí é um mundo de coisas – todo tipo de coisas – gente, livros, conceitos, trabalhos, histórias. As coisas humanas e não-humanas que me ensinam e me motivam a agir. As redes de solidariedade e de militância pacifista, txdx que desconstrói lógicas de violência e dominação. E os meus amores. Arthur Bispo do Rosário e o arquivo de tudo o que existe no mundo. Lygia Clark e sua trajetória correnteza. Hélio Oiticica, sua paleta, palavras, vida, imaginação política. Tehching Hsieh e seus tempos todos, experimentação psicofísica, precisão. Yoshi Oida, com quem aprendi sobre sensação e postura e, a partir daí, pude desenvolver a teoria da “nervura da ação”. Adrian Piper é um sol. Meg Stuart, Pina Bausch e Lia Rodrigues porque suas danças fazem chão. As muitas mulheres performando trabalhos incríveis nos anos 60, 70, 80, algumas muito ativas hoje. Aqui a lista é vasta. Joan Jonas, Valie Export, Mierle Laderman Ukeles, Lygia Pape, Letícia Parente, Sônia Andrade, Léa Lublin, Ana Mendieta, Antonieta Sosa, Rebecca Horn, Yayoi Kusama, María Teresa Hincapié, Simone Forti, Yoko Ono, Carolee Schneemann… e muitas mais, elas abriram muitos caminhos. Meu ninho de livros – sobretudo em estudos da performance, estudos do corpo e filosofia. Aprendi demais sobre corpo estudando o trabalho de Wilhelm Reich e sendo tratada por terapeutas reichianos. O Departamento de Estudos da Performance da NYU, onde fiz meu doutorado e lecionei como professora convidada, ampliou minha percepção e possibilitou encontro com o experimentalismo norte-americano. Os autores que escreveram textos no livro “Ações”: Adrian Heathfield, André Lepecki, Barbara Browning, Diana Taylor, Felipe Ribeiro, Pablo Assumpção B. Costa e Tania Rivera. Minha vida com o André Lepecki, com quem tenho uma filha, e com quem converso, troco, faço diariamente. E os tantos artistas contemporâneos que acompanho, com os quais dialogo de perto ou de longe, Ronald Duarte, Rodrigo Braga, Rivane Neuenschwander, Ricardo Basbaum, Marcio Abreu, Grace Passô, José Fernando Azevedo, Antonio Araújo, Adriana Schneider e Bonobando, José Celso Martinez Correa e Uzyna Uzona, Guillermo Gómez-Peña, Lía García La Novia Sirena, Crack Rodriguez, Janine Antoni, Maria La Ribot, Lucia Russo, Marcela Levi, Gustavo Ciríaco, Regina José Galindo, Tim Etchels, Elevator Repair Service, Every House Has a Door, Thomas Lehman, Vera Mantero, Paulo Nazareth, Tatiana Altberg, Oficina Experimental de Poesia, etc…
As suas “Ações” acontecem impreterivelmente na rua. Seu livro é dedicado ao povo da rua. Neste espaço de fluxos, deslocamentos e contaminações suas intervenções procuram e promovem intervalos. Criam situações nas quais o ordinário e o extraordinário misturam-se incessantemente. Como se deu esta opção pela rua?
Estamos em fevereiro de 2018 e não sei se as “ações acontecem impreterivelmente na rua”. O “Ações” foi publicado em 2015 e ali tudo acontece mesmo na rua, nua e crua, ou, no caso da “Linha”, também em casas de desconhecidos. Em 2016 trabalhei na fronteira entre a rua e a galeria – no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica e arredores. Era uma ação coletiva chamada “MOVIMENTO HO” com curadoria de Izabela Pucu e Tania Rivera. Ali experimentei circulações dentro-fora que passaram a me interessar muito. 4.700 tijolos foram utilizados para fazer pontes e, por fim, construir o quarto andar da Casa das Mulheres da Maré. As janelas do Centro foram abertas, a eletricidade desligada, uma parede pintada de amarelo 100%, a cor rebatendo dentro-fora. Antes desse trabalho, em junho de 2016, realizei com um grupo grande de colaboradores uma série de 5 ações/5 caminhadas pelas ruas da Colônia Juliano Moreira no dia da abertura da exposição “Das Virgens em Cardumes e a Cor das Auras” no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, curadoria da Daniela Labra. O nome era azul azul azul e azul. Ali também o dentro-fora do museu, as entradas e saídas com 3 obras do Bispo (que foram reencontrar as ruas da Colônia 28 anos depois de sua morte, em andores e protegidas com cúpulas de acrílico em horas de baixa luminosidade), aquela circulação me marcou. No dia seguinte desta ação, te conto essa intimidade, tinha a sensação de ter uma tatuagem na garganta. Quero dizer, ganhei, desde então, uma tatuagem: um triângulo azul com a base no chão do pescoço. Enfim, penso que neste momento, o “impreterivelmente na rua” está flexibilizado. Entendo, isso sim, que levo a rua comigo onde quer que eu vá. Está no meu corpo, nas minhas velocidades e modos, na tendência composicional que tenho de não achar que estou exatamente começando nada, que já estamos no meio.
Mas quero te contar, querido Camillo, sobre o meu encantamento, sobre a minha fissura pelas ruas. É assim. Sorrindo aqui. Procurando palavras pra conseguir dizer. Neste momento estou num trem. Tem um cara me olhando porque estou sorrindo com você. O que eu faço na rua é corpo. Atrás de mim tem uma moça falando aos berros no celular numa língua que não entendo. Não entendo nem uma palavra. Tarequeque curdo ba targa dastêêê. Pode estar falando em se matar ou matar alguém e não entendo nada. Passou o funcionário que recolhe os bilhetes. Onde guardei o bilhete meu deus? Deus com maiúscula ou minúscula? Um problemão isso de deus com maiúscula ou minúscula. Acontece d’eu guardar tão bem algumas coisas que acabo perdendo. E hoje é manhã azul com lua no céu. Gosto demais dessas manhãs com lua. Bom. Bueno. Bueno, le dijo la mula al freno y si fue. A rua é um lugar onde regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes. A rua é um lugar de ação direta, de confrontação direta, o que acontece ali é urgente, o tempo é ali (não haverá outra ocasião para endereçar o que precisa ser endereçado ali). O que passa passa, é mesmo radicalmente móvel e mutante. O cosmos-rua. Uma constelação em movimento. Constelações em movimento. Via láctea terrestre. Ontem sonhei com um colar que tinha como pingente um retângulo com um pouco da via láctea. A rua é um lugar de negociação permanente. De vulnerabilidade e força, ou seja, de potência. De potencialidade. Potencialidades. A rua é furta-cor. Prismática. Caleidoscópica. Estroboscópica. Tantos sons. Tantos cheiros. Os estímulos sensoriais são intensíssimos. Supra-sensorialíssimos. Espiritualidade aberta, manifesta, mundana. “O sensorial”, me disse um amigo, “é o caminho de acesso ao espiritual”. Nunca esqueci. Consenso, dissenso, contrassenso, senso, non-sense, silêncio. Tudo se fazendo, ali. A olhos vistos. A olho nu. Gosto demais disso. Na “cena” que se faz na rua a vibração paradoxal é muito forte (por isso coloquei as aspas, “cena”, para mostrar que a palavra ali vibra muito: “““cena”””). A moldura da ““““““cena””””””” se espatifa e o que você vê são os cacos no ar, suspensos ali, ao longo do dia todo de trabalho, os pedaços todos suspensos, flutuando como se. Ali, naquele tempo-espaço, quando tempo e espaço são performados, potencialidade se abre como uma flor se abre. Te digo. Sentido em suspensão. E mais múltiplos sentidos disparando simultaneamente. É cena-não-cena. Estado de arte-sem-arte como dizia o Mário Pedrosa. Paradoxo. Gosto mesmo de me esfregar na rua. Acho graça até de coisa que agarra no meu cabelo – era pra ficar aporrinhada com aquilo que nem sei o que é, que gruda e chateia, mas não fico. Faz parte – o que quer que aconteça faz parte. Eu faço parte. Tudo faz parte. A rua é o lugar de todos. Talvez o único lugar de todos. A diferença é de todos. E tem de tudo. A multiplicidade é de todos. Tem tanto e, ainda assim, a probabilidade é que aconteça muito mais. Claro que as ruas variam muito de lugar para lugar. Agora pouco, quando estava em Fredrikstad, saí para um passeio. Tudo o que vi “fora do lugar”, fora de sua trama ontológica mais óbvia, foi uma luva caída num descampado – alguém perdeu mas deve voltar pra buscar pois sabe que ela estará lá, esperando – e uma cadeira de escritório quebrada encostada numa lata de lixo – não cabia na cacimba. A rua acha graça da arte e faz arte o tempo todo. Basta prestar atenção. Talvez seja isso – a rua convida a prestar atenção, senão… Fato é que a pulsão de vida é muito forte; de tão forte é quase fatal.
Sigo pensando, olhando pela janela do trem. Meu intuito é fazer um movimento que evidencie a corrente estética que está circulando ali, que está atravessando txdxs, uma ação que evidencie essa eletricidade. Um desafio é buscar a justa medida entre quebrar e articular, empurrar e puxar, algo que só se faz no movimento, na precariedade, na relação.
Te passo aqui também uma citação da Adrian Piper. Ela escreve nos anos 70, na época da “Catalysis Series”: “Art contexts per se (galleries, museums, performances, situations) are becoming increasingly unworkable for me. […] They preserve the illusion of an identifiable, isolatable situation, much as discrete forms do, and thus a prestandardized set of responses. Because of their established functional identities, they prepare the viewer to be catalyzed, thus making actual catalysis impossible”. [“Contextos artísticos per se (galerias, museus, performances, situações) estão se tornando cada vez mais impraticáveis para mim. […] Eles preservam a ilusão de uma situação identificável, isolável, como formas discretas fazem, e assim um conjunto de respostas predeterminadas. Por conta de suas identidades funcionais estabelecidas, eles preparam o espectador para ser catalisado tornando impossível a real catálise”.]
O que você acha Camillo?
Te mando também 3 fotos de uma série recente chamada “singelas” tiradas pelo Felipe Ribeiro (ruas do Centro do Rio de Janeiro, agosto e setembro de 2017). Tinha acabado de voltar do pós-doutorado e precisava mesmo chegar na cidade.

Eleonora Fabião, “singela – mergulho na Rio Branco” / Felipe Ribeiro

Eleonora Fabião, “singela singela – 2 espelhos de 20 cm de diâmetro e 2 pop sockets” / Felipe Ribeiro

Eleonora Fabião, “singela singela singela – taca-cata” / Felipe Ribeiro
Tendo em vista a temporalidade expandida da arte há que se impregnar a contingência dos encontros em momentos poéticos de maior duração. Mais que isso, te interessa a passagem do ato em obra, ou seria a obra dissolvida na experiência contingente da performance?
Se há alguma obra, a obra é a própria vida. Entendo o trabalho como um modo de existir no mundo; e de criar o mundo onde quero estar e a vida que quero viver. E convidar outros a viver. E convidar outros a inventar. É fundamental fazer com os outros e ser feita pelos outros senão a vida se esvai. Agenciar escutando, sempre. Lá no sempre da rua. No sempre imediato da rua (mesmo que estejamos num palco ou num museu).
Desdobrando a pergunta anterior, como você imagina “expor” estas Ações no futuro? Qual o estatuto dos registros? Que outros resíduos do momento rua são deslocáveis para o espaço expositivo? Seria o livro uma exposição?
Não entendo as imagens dos trabalhos como registros documentais das ações. As imagens são desdobramentos das ações com suas próprias materialidades e temporalidades. A lógica não é a do arquivo que guarda, que conserva, da fotografia que reproduz e preserva, mas da multiplicação e da partilha das matérias. A pulsão é performativa. Faz um tempo me dei conta que o pixel é um elemento. Água, ar, terra, fogo, pixel. Descobri que a palavra é a união de “pix” (contração de “picture”) + “element” = pix-el. Ou seja, é mais um elemento que faz parte da coisa toda. A entrada deste novo elemento no circuito permite que o trabalho siga trabalhando com novos interlocutores, em outros espaços e tempos, por meio de outras dinâmicas e dimensões performativas. A questão é: seja lá articulando que elementos e meios, como manter a vibração performativa do trabalho pulsando? Eis a questão.
Agora estou num bar na estação esperando uma amiga para um café rápido e depois pego outro trem rumo ao aeroporto. O wi-fi é grátis, a música é americana com swing caribenho. Na mesa da frente 5 senhores conversam – todos imigrantes e, certamente, encontram-se aqui com frequência. Também não entendo uma palavra do que dizem. Tiro uma foto mental deles e guardo comigo. Volta e meia escolho cenas e coisas para nunca mais esquecer. Os fotógrafos e cinegrafistas que trabalham comigo são colaboradores importantíssimos. Porém te digo que saio diversas vezes para performar sem estar acompanhada por nenhum fotógrafo. A matriz é mesmo o corpo, o corpo como questão. Fazer corpo, partilhar corpo, conceber arquivo como corpo, arquivo performativo.
Além dos pixels e do corpo, as letras são outro elemental. Água, ar, terra, fogo, pixel, corpo, letras. Assim como considero as imagens parte da coisa, também o são as palavras. Os programas performativos que escrevo quando imagino as ações são parte das ações e não antecedentes. O programa dispara, norteia e move a experimentação. Ou seja, são muitas as materialidades e as temporalidades em questão. O livro foi um caminho que encontrei, que me pareceu coerente com o trabalho – aquele livro, com aquele tamanho e peso, muito amarelo, em cuja capa está escrito: “A venda deste livro é proibida. Ações foi feito para ser dado, recebido, trocado, perdido, achado, perdido de propósito, doado, presenteado, emprestado, passado adiante. Nem vendido, nem comprado. […] A proposta é dar continuidade à movida performativa iniciada nas ruas. Interessa a arte da iniciativa”. Ele não é vendido, não se entende como mercadoria. Ele é um presente e, assim sendo, não é possível roubá-lo. Ele não é nem vendível nem roubável. Ele tem lá o jeito dele de existir e trabalhar. E volta e meia chegam noticias. Outro dia recebi um e-mail onde uma moça me contava que sua família leu o livro reunida. Eram três gerações conversando em volta do livro-fogueira! Fico nem sei como.
Quanto a possíveis exposições, tudo dependerá das circunstâncias, das condições, da situação. O objetivo é inequívoco: o trabalho só poderá seguir trabalhando potentemente, integramente (integradamente e integralmente), se suas nervuras estiverem ativas. As convenções precisam ser permanentemente suspensas para ver, durante a suspensão, como os elementos se rearticulam e, quando caem no chão, que constelações se formam. A questão é: que novos desejos o trabalho passará a desejar performar diante de novas circunstâncias?
Os encontros na rua falham? Como as coisas podem desandar? Seria a falha incorporada e performatizada?
Não associo encontro e falha. O encontro pode ser encontrado ou desencontrado, bom ou ruim, mas falhar, não funcionar conforme planejado, não vejo como. Isso porque não planejo nada além de encontrar. As coisas andam e desandam o tempo todo, as correntezas podem ser violentas mas estou enraizada na determinação da realização da ação que, penso, precisa ser realizada, deve ser realizada. Outro dia até chamei uma série de “Things That Must Be Done Series (TTMBDS)”. A base conceitual, estética e política é muito sólida e, seja lá o que aconteça, seja lá que acontecimento aconteça, ele será o trabalho do momento, ele será material para novas reflexões, para futuros trabalhos, para seguir realizando. Fui tomar um copo d’água. Já estou no avião. Voltei e te digo que caso haja alguma violência incontornável serei parada. Porém, nunca aconteceu assim. Todas as violências foram contornadas. Não, contornadas não. Foram elaboradas e transformadas.
Como nascem suas performances? Você faz alguma diferença entre performances e Ações?
Tenho preferido chamar o que faço de ações – me parece mais simples, mais direto, mais condizente com a prática. Porque Camillo, entendo o trabalho como uma prática, um conjunto de práticas. Como estou em diálogo direto com a história e a teoria da performance, me chamo de performer. Admiro imensamente o trabalho de muitos performers e penso na arte da performance como um componente da maior importância no mundo contemporâneo, um modo de abrir, tocar e rearranjar como disse antes, um modo de vida e de viver a vida. O performer Guillermo Gómez-Peña escreveu o seguinte: “Los artistas de performance somos un constante recordatorio para la sociedad de las posibilidades de otros comportamientos artísticos, políticos, sexuales y espirituales; y esto, debo decirlo con vehemencia, es una función extremadamente importante. … [porque] ayuda a otros a reconectarse con las zonas prohibidas de su psique y de sus cuerpos, y a reconocer las posibilidades de sus propias libertades. En este sentido, el arte del performance puede ser tan útil como la medicina, o la ingeniería; y los artistas de performance son tan necesarios como las enfermeras, los maestros de escuela, los sacerdotes, o los taxistas. La mayor parte del tiempo ni siquiera nosotros mismos somos conscientes de estas funciones”. [“Os artistas da performance somos um constante lembrete para a sociedade das possibilidades de outros comportamentos artísticos, políticos, sexuais e espirituais; e isso, devo dizer com veemência, é uma função extremamente importante. […] [Porque] ajuda outros a reconectarem-se com as zonas proibidas de suas psiques e seus corpos, e reconhecer as possibilidades de suas próprias liberdades. Nesse sentido, a arte da performance pode ser tão útil como a medicina ou engenharia; e os artistas de performance são tão necessários como as enfermeiras, os professores, os sacerdotes ou os taxistas. Na maior parte do tempo, nem nós mesmos somos conscientes dessas funções”.] Escuto e aprendo com o Gómez-Peña. E penso que é uma questão de, por meio da estética, ampliar imaginação política e potencializar a performatividade do corpo para dinamizar relações, fazer cidade, gerar vida.
Minhas performances nascem de necessidades corporais, sociais e espirituais. As necessidades vão crescendo em pensamento, planejamento e sonhos, e, quando chega o momento, viram ação no espaço público. Um espaço que se faz público porque corpos agem política e performativamente ali. A dimensão pública do espaço não é pré-dada, não está garantida, deve ser praticada. E a matéria dos sonhos, seja ela o que seja, é fundamental aqui. Daí então, uma vez realizada, uma ação sempre chama outra ação (ou sonha outra ação). Por isso, em geral, trabalho com séries (uma ação nunca é suficiente). E séries se sucedem em séries (uma série nunca é suficiente). E eu é que não paro de nascer por meio do nascimento delas.
Uma coisa que salta à vista é a combinação de um plano inicial, um protocolo poético, um conjunto de procedimentos, e a metamorfose da intenção em deriva pelo contato com as pessoas. No caso das caminhadas cegas, isso chega ao limite de você se pôr em risco. Intenção e entrega combinam-se e se misturam radicalmente. Fale um pouco sobre isso.
Então, o programa performativo é como se fosse um verso – assim estou entendendo nesse momento essa escrita. Um verso-ação. Agora, o que é um verso… daí precisaremos de muitos versos para pensar. E sim, Camillo, “intenção e entrega combinam-se e se misturam radicalmente”. Há mesmo uma determinação que sustenta o ato; há o ato de dar-se inteiramente ao ato. “Radicalmente” você diz. Sim, faço pactos radicais. Meus nortes são experimentação e determinação. Se acredito em alguma coisa nesse mundo de fascismos crescentes é na importância da experimentação (poética e política). E, para mim, experimentação e cuidado (consigo, com os outros, com o meio) andam juntos. Te digo que não me interessa o risco de vida pois isso interromperia o trabalho, a vida (não faria sentido na minha visão poética e política). Peço ajuda as pessoas na rua e muitas ajudam. Deixo claro que preciso de amparo e muitas amparam. Dar, oferecer, pedir e receber são ações recorrentes nas caminhadas cegas.
Voltando ao estatuto das obras-performances e das imagens. Creio que há Ações em que a fotografia ganha certa autonomia, penso na composição dos tijolos no CMAHO ou No meio da noite tinha um arco-íris. Elas ganham força poética para além de serem registro da performance. Isso é intencional? Você percebe isso ou é irrelevante?
Outro dia estava dando uma fala – que como já indiquei também entendo como uma ação – a convite da Oficina Experimental de Poesia no Rio. Um dos presentes, um homem muito bonito, uma pessoa muito sensível mesmo, disse assim: “Seu trabalho está virando pintura. Você percebe isso?” Meus olhos encheram d’água. Ele viu assim, viu isso. Deu um nó em tudo. Ou ainda, abriu tudo de uma maneira tão. A pintura, a performance, a fotografia, as ações, o olho, a boca, a palavra. Aquela fala entrou como uma flecha no meu coração e não respondi nada. Ficamos lá, quietos, pensando sentindo. Felizmente tenho 2 corações e continuamos. Nos últimos anos fui desenvolvendo outro coração para poder dar conta. Escuta, agora vou dormir um pouquinho porque estou muito cansada. Está apertado aqui nessa poltrona de avião mas vou dar um jeito. Beijo grande, Camillo. Até já, Eleonora.
Para outros textos escritos pelo curador para o site do Prêmio PIPA, acesse a Coluna do Camillo.
SOBRE O AUTOR
Luiz Camillo Osorio é curador do Instituto PIPA, conselheiro e um dos idealizadores do Prêmio. É professor e atual diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Foi curador do MAM-Rio entre 2009 e 2015.