Éder Oliveira, Sem título da série "Arquivamento", 2017

“Arte é a única opção contra a violência”, reflete Orlando Maneschy sobre Éder Oliveira

Para escrever sobre seu trabalho para o texto crítico que integra o catálogo do Prêmio PIPA 2017, Éder Oliveira, ganhador do PIPA Voto Popular 2017, convidou o pesquisador, professor e artista Orlando Maneschy. Contextualizando a obra de Éder no cenário sóciopolítico do Brasil e ressaltando sua importância num momento em que a arte sofre retaliações no país, Orlando elucida as relações existentes entre identidade, mídia e poder presentes no trabalho do artista. “A Amazônia não é para os fracos”, parafraseia o curador, apontando a complexidade política do tema.

Orlando fala sobre a pesquisa de Éder acerca da identidade do homem amazônico e o lugar social que ocupa, fazendo um paralelo entre a bagagem individual do próprio artista e a dimensão política do seu trabalho. Também aborda sua metodologia, o amadurecimento da produção do artista e seu trabalho com cores, que resultou, hoje, nas enormes pinturais monocromáticas de rostos anônimos e marginalizados.

Em tempos difíceis, a arte é a única opção contra a violência

Orlando Maneschy 

A Amazônia não é para os fracos, diz uma frase corrente no norte do Brasil. Distâncias extremadas, estradas precárias, locais de difícil acesso… Barco é um dos poucos veículos em fluxo contínuo pelos rios… voos são caros ou mal planejados dentro da região (em alguns casos têm que se deslocar para Brasília e de lá voltar a outro estado do norte). Falar da arte produzida na Amazônia nos leva a pensar sobre dificuldades diversas, processos de exclusão, abandono e violência, fatores que historicamente perpassam por esta região, e insistem em delimitar espaço, calcinando a vida da população menos favorecida. Grandes latifúndios… a floresta sendo destruída e substituída por pastos e plantações de soja, hoje maior fator de desmatamento com enormes impactos ambientais, e cuja produção em cerca de 80% é voltada para ração animal, em um cenário injusto no qual praticamente 100% é de origem transgênica.

A escassez de água que alarma o país já era anunciada em pesquisa divulgada em 2014, revelando a crescente destruição das florestas, em relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE. Bilhões de toneladas de água circulavam para nordeste e sudoeste pelas nuvens, mas as constantes queimadas e desmatamentos mudaram os padrões de pressão atmosférica causando um declínio na umidade circulante. Qual o futuro nesse caos?

Na Amazônia, a exploração é continua. A destruição das florestas em prol do tão decantado “agro”… exploração de madeira ilegal… conflitos fundiários, desrespeito, violência contra as comunidades tradicionais, que expropriados ou expulsos das terras se veem sem os meios de subsistência, com sua dignidade maculada. São inúmeros os assassinatos que ocorreram e sucedem, na exploração dos mais fracos, oprimidos e expostos a todo tipo de abuso, em que tudo se tira e nada de bom se oferece.

É sobre o habitante desta região que Éder Oliveira irá lançar sua visão aguda, ímpar; sobre um ambiente em que possibilidades de futuro digno se apresenta de maneira rarefeita. Artista que não se comove com o sucesso, mas busca, com atenção e humanidade, encarar a realidade que está ao seu redor, e que insiste em conclamar a atenção para os processos de eliminação que ocorrem neste território.

Conheci o artista no despontar de suas primeiras fagulhas criativas na universidade, que já discutiam identidade, revelando a intensidade de questões que vieram adensar o trabalho que se desvelou a partir daí. Ele era, então o próprio personagem, sujeito da reflexão na busca de se perceber. Imagens similares de um documento de identificação… Seu olhar intenso fitava o espectador em uma delicada impressão sobre papel artesanal. De lá para cá, um caminho sólido se constituiu, repleto de crítica, em um embate vivo com sua história, com a história social dos habitantes de uma Amazônia que é bem distinta da imagem que se divulga ainda de maior floresta tropical do mundo, repleta de rios, num verde sem-fim. Não, essa Amazônia exótica, paradisíaca e bela não existe mais foi devastada pelos pastos, pelos plantios, pelas hidrelétricas e pelos garimpos.

A Amazônia arde febril e já nem se permite tal imagem, porque tudo o que é visto, inclusive na mídia, são atentados às reservas ambientais e aos autóctones. São dissipações de cepas em objetos contaminados, lançados na selva para dizimar os indígenas… são emboscadas, incêndios, chacinas de pequenos agricultores, entre outros métodos perversos de exclusão e genocídio.

As práticas de violação não mudaram muito desde o período colonial, no momento em que a divisão se desenhava entre Estado do Grão-Pará e Maranhão (1621) e Estado do Brasil, apenas “se sofisticaram” em termos de perversidade…

Mas afinal de contas, o que isto tem a ver com a arte de Éder Oliveira?

Nascido no nordeste do Pará, num vilarejo junto a pequena cidade de Nova Timboteua, filho de um professor e uma dona de casa, o artista se criou na zona bragantina, entre natureza, escola e desenhos, e não percebia claramente, então, que seu município de cerca de 15 mil habitantes era um ambiente em que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), apresentava-se em decréscimo; nada diferente de outras localidades da Amazônia, que detém baixíssimos índices de crescimento educacional, de saúde e de fonte de renda.

Em sua cidade natal, esse garoto mestiço já desenhava e era solicitado para fazer pinturas em muros ou ilustrações em trabalhos estudantis. Ao se mudar para Belém, para completar os estudos, estabelece uma ruptura com o que se delineava para vários de seus colegas que não conseguiram sair da vila. Vivendo na periferia da metrópole, observou tantos outros migrantes que vem à capital em busca de chances de melhoria de vida, que trabalham, constroem a cidade, mas que não tem voz frente aos que decidem os rumos e os projetos para a urbe. Reencontra nas expressões dos rostos a mistura que compõe o típico homem amazônida, que o atraem pelos traços acentuados, de expressão intensa e cor marcante.

Oliveira, com coragem, optou pelo curso de Educação Artística, entrou na universidade pública e, em meio a diferenças culturais, teve que se adaptar à vida na capital do Pará.

Ao deparar-se com as inúmeras produções e todo o universo da arte se apresentando aos seus olhos, e ao começar a se dedicar à pintura, descobre (algo que não percebia), uma forma peculiar de enxergar as cores. A percepção de alguns tons era deficitária e então descobriu que tinha um certo grau de daltonismo. O que poderia se transformar numa decepção e no abandono da linguagem, levou-o a adquirir mais vigor: ao olhar para sua vida, passou a desejar representar os personagens da periferia, mestiços como ele, que por questão de cor e de características físicas, muitas vezes são postos à margem do mercado de trabalho e das oportunidades. Assim, sua “deficiência” passa a ser incorporada enquanto linguagem, optando pelos monocromáticos entre vermelhos, marrons, azuis e verdes.

A cor ultrapassa o sentido da visão para chegar à cor da pele, a personagens que vivem em situação-limite, que só encontram destaque nas páginas policiais dos jornais da capital. Suspeito, culpado e vítima misturam-se nesse contexto. Quem é o real responsável pelos condicionantes que empurram esses sujeitos para situações de violência? Que visibilidade é esta que expõe, muitas vezes, o mais fraco nas páginas policiais antes de um julgamento? Entre ficar em uma cela inóspita por suspeita de pequeno crime e desaparecer no meio do caminho, como no recente caso do ajudante de pedreiro Amarildo, conduzido da porta de sua casa em direção a Unidade de Polícia Pacificadora e que nunca mais foi visto e tornou-se símbolo do abuso e da violência policial no Brasil. Somos todos Amarildos, Josés, Marias e L.A.B. que, mesmo menor de idade, ficou presa numa cela, (em 2016 no Pará), com homens sofrendo toda sorte de abusos.

É, a Amazônia não é para os fracos! O Brasil não é também. A supressão dos direitos parece ser algo iminente. No campo vemos diversas situações de escravidão.

Éder Oliveira expõe a ferida aberta, traz à luz esse habitante marginalizado, acossado, empurrado para o fracasso, num limiar entre vítima e predador, pairando em uma espécie de “estado de exceção” simbólico que o próprio Estado parece conduzir. Quantos homens e mulheres vem se deslocando do interior para a cidade grande neste país… Um movimento que se expandiu nas últimas décadas. Para muitos, o sonho de uma vida melhor se confronta com a frustração, a pobreza e a segregação.

É para este cidadão, caboclo, brasileiro como ele, como vários de nós, mestiços, que o artista aponta seu radar. Transporta, por meio da pintura mural, esses retratos realizados sem permissão pela mídia, para um outro local, mais humano, mais digno.

Aquelas figuras estampadas para consumo imediato nas páginas de sangue dos jornais, ganham nova dimensão e mostram a precariedade das condições de violados pela midia, violentados nas suas próprias faces expostas no periódico, que depois embrulha as compras na feira. Ao pintá-los, Oliveira nos faz encarar a perversidade da sociedade e nos obriga a confrontar nossos próprios medos, nossos preconceitos, nossa insensibilidade ante o outro. Da vida para os cadernos policiais, para o mundo novamente, por meio de grandes pinturas que resignificam e redimensionam esse cidadão antes marcado para o apagamento. O artista o amplifica, fazendo-nos encarar aquela face exibida em um retrato realizado de maneira arbitrária, imposta, em condições pouco corretas. Indivíduos que estão, diariamente, expostos à invisibilidade. Nas telas e muros de Oliveira, aqueles olhares, ora contrariados, ora assustados, repletos de desalento passam a nos interrogar, a nos confrontar com nosso lado mais cruel.

E novamente a cor irrompe, entre azuis, ocres e vermelhos, seus personagens se materializam. O vermelho, pelo daltonismo, é a cor mais difícil de trabalhar e parece ser uma das que mais impacta no observador em suas obras. Vermelho… cor protagonista e perseguida nestes dias atuais no Brasil que se descortina para a censura e preconceitos. No entanto não é apenas o vermelho, mas diversos nuances compõem o amazônida. Na série Monocromos o artista chega à partícula mínima, ao pixel da imagem da pele daquele cidadão e o amplifica, colecionando os tons numa espécie de mapeamento daquele individuo cuja subjetividade não interessa às instituições, mas a sua cor de pele, suas características incomodam por não estarem de acordo com o padrão de beleza ocidental dominante.

Mas ora, estamos na Amazônia… Os índices revelam que são os sujeitos pobres, morenos, negros e caboclos os mais abordados em blitz e batidas policiais. Não interessa se a pessoa é honesta ou não. Já é suspeito em potencial, pois sua cor e forma o designa. Não é branco, não tem traços “finos”. É “mal encarado”. “Melhor tirar da rua”, “mais seguro prender”. É, a Amazônia não é para os fracos… e Éder Oliveira sabe bem o que é isto, essa ausência do Estado em relação ao outro… Sua obra expõe profundos processos de subjetivação.

Imagens não felizes: subalternidade, exceção social, anonimato; tráfico de drogas, grupos de extermínio e um dos mais altos índices de homicídios… conforme revela o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) com o seu Atlas da Violência 2016. E em meio a tudo isso, amalgamados na mesma massa cromática temos delinquente e vítima, todos frutos de uma violência atroz estabelecida na raiz da estrutura social que se presentifica na região.

Não são políticos, tampouco celebridades. Em sua pintura mural há uma subversão da lógica de poder, esgarçada ao limite. Entre suspeitos e policiais, todos se encontram em meio a um abismo que segrega e fere. Oliveira parte de certas condutas que poderiam figurar em uma pesquisa antropológica para, estando junto ao outro, convidá-lo a um campo de reflexão sobre o jogo de representações. Soldados e marginais figuram nesse desafio de contrários. Seria mesmo contrários? A história está aí e sabemos o que leva muitos jovens a encararem a polícia como profissão de sobrevivência, mas levam consigo todas as frustrações da exclusão que também está presente na vida dos supostos oponentes.

O convite que Éder Oliveira nos faz é fortíssimo e a sério. Um processo contínuo de alteridade e reflexão crítica acerca de nosso lugar. São imagens, palavras-imagens que nos chacoalham como que dizendo: Veja! Acorde! Tome posição.

Vivemos tempos sombrios, em que cores são perseguidas, em que a arte é acusada porque, no fundo, nos leva a pensar sobre nosso papel como seres humanos e temos que nos posicionar.

É urgente contrapor a imensa onda de violência que assola o Brasil e o mundo. Oliveira não se furta a atentar, com seu olhar daltônico, e distender a fronteira para dar conta da luta que percebe na vida e fazer uma pintura que, para além de sua qualidade técnica e estética, é conceitual e ética, e expõe a banalidade da violência cotidiana instaurada não apenas na Amazônia, mas no país todo. Debruça-se sobre o cidadão marginalizado que enfrenta estigmas diários. Moreno, pardo, caboclo, típico, índio, nortista, marajoara, camuflados no próprio dia-a-dia pelo racismo e pela discriminação, empurrado pela sociedade para viver à sua margem.

Ao sermos capturados pelas obras de Éder Oliveira temos certeza de que em tempos difíceis, a Arte é a única opção contra a violência.

SOBRE O AUTOR

Orlando Maneschy é pesquisador, professor, artista, crítico e curador independente. Doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Orlando é curador da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.



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